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Algumas fontes especulam que Donald Trump pretende se apoderar do canal diretamente. Voltaremos a 1903? (Charge: O Homem por Trás do Ovo (Craik, 1903 - Sunday Times, coleção Granger))

Da colonização aos “lobos de Wall Street”: 500 anos de violência, roubo e resistência no Panamá

A ofensiva imperialista de Trump no Canal do Panamá não é uma experiência nova para o país centro-americano; desde o início do século 16, o território é alvo de violentas disputas imperialistas

Olmedo Beluche
Diálogos do Sul Global
Cidade do Panamá

Tradução:

Ana Corbisier
  • Atualizado em 28/04/2025, às 11h19.

As constantes ameaças do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, contra o Panamá, provocam repúdio na maioria da população panamenha, cuja história é feita de lutas contra a espoliação estrangeira da rota de trânsito e do canal, nas quais interesses imperialistas coligaram-se com a casta oligárquica local para saquear nossos recursos e nossa força de trabalho.

Essa pressão chegou a um novo estágio em 10 de abril, quando o presidente do país, José Raúl Mulino, anunciou uma autorização para que agentes dos EUA se posicionem por três anos no território panamenho, incluindo aeroportos e instalações de defesa nacional.

Que agora, em pleno século 21, Donald Trump ameace apoderar-se do Canal do Panamá pela força não é novidade; já vivemos isso. Há pouco mais de cem anos, em 1903, o presidente Theodore Roosevelt invadiu o Panamá com suas tropas (10 encouraçados e milhares de soldados), ao mesmo tempo em que um governo ilegítimo, formado por empregados da Companhia da Estrada de Ferro do Panamá, declarava a separação do Istmo da Colômbia, colocava-se sob sua “proteção” e avalizava o nefasto Tratado Hay–Bunau-Varilla.

Trump invadirá o Panamá? Talvez nem precise fazê-lo, pois o governo panamenho de José R. Mulino está de joelhos e entregue. Mas se Trump invadisse, seria um retrocesso histórico; no entanto, o povo panamenho já tem experiência e voltará a lutar pela independência e pela descolonização. As experiências das gerações anteriores virão à mente do povo panamenho atual, para lhe dar força moral e continuar a gesta geracional pela soberania. O que narramos a seguir é parte dessa história.

O saque iniciou com a conquista e a colonização espanholas

O saque relacionado à posição geográfica do Istmo do Panamá teve início com a conquista e colonização espanholas. Uma história de estelionatos, roubos e violências sobre o Istmo do Panamá remonta ao início do século 16. Recordemos que o conquistador espanhol Vasco Núñez de Balboa, “descobridor do Mar do Sul”, tido como símbolo nacional pelo moderno Estado panamenho, saqueou, violou e massacrou as comunidades indígenas que povoavam o leste do Istmo do Panamá até o golfo de Urabá, hoje chamado Darién.

Sobre a base desse genocídio — que os historiadores calculam ter dizimado entre 100 mil e 200 mil pessoas que habitavam o istmo antes da chegada europeia, desaparecendo em menos de uma década —, impôs-se o modelo de exploração colonial baseado no controle da rota de trânsito Panamá–Portobelo, por onde passou toda a riqueza mineral saqueada do Peru durante 300 anos.

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Destruídas as sociedades pré-hispânicas do leste do Istmo, o sistema colonial espanhol impôs a seus habitantes (compostos por uma crescente população de pessoas escravizadas e mestiços) a função de servir ao comércio mundial. Essa economia colonial istmeña prosperou relativamente, baseada na oferta de alojamentos, depósitos, tropas de mulas e botes que navegavam o rio Chagres para cruzar do Pacífico ao Caribe, ou vice-versa.

No entanto, no início do século 18, o trânsito pelo Panamá entrou em decadência, prejudicado pelos ataques de piratas ingleses (como Henry Morgan) e pelo fim do sistema de frotas de galeões, desmantelado pelas reformas bourbônicas numa tentativa de modernizar as relações com as colônias americanas. Durante cem anos (1740–1850), salvo esporádicos momentos, a decadência econômica assolou o Istmo.

A Panama Railroad Company roubou a rota de trânsito

A modorra que afetava o Istmo foi abalada no final da década de 1840, quando, no processo de expansão do imperialismo norte-americano, mediante uma guerra, os Estados Unidos arrebataram do México metade de seu território, apoderando-se do que hoje se chama o Oeste Americano. Ao se apropriar da Califórnia, através do Tratado de Guadalupe Hidalgo (1848), o governo norte-americano passou a colonizar essa região, criando-se o mito da “febre do ouro”, que impulsionou a crescente migração da população anglo-saxã da costa leste.

Naquele tempo, a forma mais fácil de viajar entre as duas costas dos Estados Unidos consistia em embarcar em Nova York, viajar até a América Central (Panamá ou Nicarágua) em uma semana, cruzar o istmo em um dia e embarcar em outro navio até São Francisco, o que levava mais uma semana. Durante um breve período, essa migração propiciou uma pequena prosperidade para os habitantes do Istmo, que se dedicavam a trabalhar como estivadores, conduzir botes pelo Chagres, alugar alojamentos e vender alimentos.

Contudo, um acordo entre o governo da Colômbia e o empresário norte-americano William H. Aspinwall, dono da empresa de navegação Pacific Mail Steamship, permitiu a construção da primeira ferrovia transoceânica pelo Panamá. Essa empresa, denominada Panama Railroad Company, apoderou-se do direito de monopolizar a rota de trânsito. Assim, com a inauguração da ferrovia em 1855, todos os istmeños que viviam de serviços ligados ao trânsito de mercadorias e pessoas viram-se, de repente, despojados de seus meios de vida.

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Esta empresa, assim como outra similar na Nicarágua, de Cornelius Vanderbilt, trouxe a ambos os países flibusteiros, uma espécie de paramilitares da época, para impor suas medidas de segurança para o negócio de transporte. Um desses flibusteiros, William Walker, em 1855, assumiu o controle da Nicarágua e tentou anexá-la como parte dos Estados Unidos. A reação de todos os povos centro-americanos foi unir-se para expulsar Walker.

No Panamá, em 15 de abril de 1856, diante da chegada de um grupo de flibusteiros, ocorreu o chamado “Incidente da Fatia de Melancia”, episódio em que a população da cidade do Panamá se sublevou frente à recusa de um deles em pagar por um pedaço de melancia que havia tomado de um comerciante local. Ali explodiu o ressentimento pela miséria deixada pela perda do trânsito para os panamenhos, bem como o temor de que se repetisse o ocorrido na Nicarágua.

Os flibusteiros se entrincheiraram na estação da estrada de ferro, que foi cercada pela população. O resultado foi a morte de 16 norte-americanos e outros 15 feridos. Os Estados Unidos exigiram da Colômbia uma alta indenização (400 mil dólares) e, de fato, procederam à ocupação militar do Istmo.

O “canal francês” e a fraude com as ações da estrada de ferro e da Companhia Universal

Para não nos alongarmos além do necessário, concentremo-nos no “canal francês”, cuja construção foi pactuada pela Colômbia — da qual o Panamá era uma província — mediante o contrato Salgar-Wyse com uma empresa francesa em 1878, cujas obras começaram em 1880 e se paralisaram em 1888.

Geralmente se atribui a paralisação das obras às milhares de mortes causadas pelo mosquito transmissor da febre amarela e da malária. Também houve problemas de projeto, pois Ferdinand de Lesseps insistia num canal ao nível do mar, apesar de ter sido advertido de que deveria ser construído com eclusas. Mas uma terceira razão, tão poderosa quanto as anteriores, é que um grupo de executivos da Companhia Universal do Canal do Panamá desviou recursos milionários mediante diversas manobras financeiras e empresas fornecedoras. O filho de Lesseps, entre outros, foi condenado por isso.

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Podemos encontrar uma descrição pormenorizada das fraudes em torno do Canal do Panamá no genial livro do panamenho Óscar Terán, publicado em 1934, intitulado Do Tratado Herrán–Hay ao Tratado Hay–Bunau-Varilla, com um subtítulo muito esclarecedor que diz: “História crítica do atraco ianque mal chamado na Colômbia ‘a perda do Panamá’ e no Panamá ‘nossa independência da Colômbia’”. Livro que foi mantido como tabu neste país, mas que deveria ser referência obrigatória para quem queira conhecer a verdadeira história do Panamá e de seu canal.

O jogo com as ações da Companhia da Estrada de Ferro do Panamá

O primeiro “atraco” contra o país — Colômbia, da qual o Panamá fazia parte — ocorreu na própria gênese do contrato com a Companhia Universal do Canal. Recordemos que, antes do canal, desde 1855, existia uma moderna estrada de ferro que realizava o transporte de carga e de pessoas de um mar ao outro. Esta estrada de ferro era administrada por uma empresa de capital norte-americano, a Panama Railroad Co. (Companhia da Estrada de Ferro do Panamá, dito em bom português).

O artigo 6 do contrato com essa empresa lhe outorgava o monopólio sobre a zona transístmica por qualquer meio, incluindo um canal. Um adendo ou novo contrato, datado de 5 de julho de 1867, em seu artigo 2, inciso 2, indicava que, no caso de um acordo com alguma empresa para construir o canal, esta última deveria indenizar a Panama Railroad Co. (PRRC) pela perda do referido monopólio, pagando-lhe uma soma da qual 50% caberia ao Estado colombiano.

Com o objetivo de não pagar nem um centavo de compensação à Colômbia, os altos executivos ianques da Companhia da Estrada de Ferro, juntamente com os altos executivos franceses da Companhia Universal do Canal, decidiram que, em vez de pagar a compensação estabelecida, a empresa francesa compraria 68.887 ações (“pelo triplo de seu valor” — 20 milhões de dólares da época) das 70 mil que constituíam o capital acionário da empresa ferroviária.

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Dessa forma, nada foi pago à Colômbia, e a Companhia Universal do Canal do Panamá passou a ser coproprietária da PRRC, mas esta “não deixou de continuar sendo de fato e de direito norte-americana, tampouco seu equipamento, sua sede ou domicílio e todo seu pessoal dirigente”.

A quebra fraudulenta da Companhia Universal do Canal do Panamá

O segundo “atraco” foi contra os milhares de pequenos acionistas franceses que investiram suas pequenas fortunas em ações da Cia. Universal. Longe da ilusão que lhes haviam vendido — de que seus francos se transformariam em milhões graças à prosperidade comercial que passaria pelo canal —, de repente se inteiraram de que a Cia. Universal se declarara em falência em dezembro de 1888. “Tinha gastado, e em parte malversado, um capital de mais de $254.000.000 sem que o construído até então oferecesse outro aspecto senão o de terras meio removidas e escavadas por algum cataclismo”, nos diz Oscar Terán.

Terán especifica como foi gasto o dinheiro (254 milhões de dólares): 2.188.000 na compra da concessão ao sindicato Wyse e em pagamentos à Colômbia; 20.046.117 pelas ações da estrada de ferro; 88.616.000 pagos a fornecedores e contratistas; 3.906.000 em materiais e edifícios; e 140 milhões malversados sem proveito para a Companhia Universal (Págs. 21 e 22). Alguns desses fornecedores ou contratistas superfaturaram abusivamente até fazer enormes fortunas.

Até onde chegará o presidente Trump? Não está claro. Especialmente porque seus avanços sobre o Panamá contam com a colaboração cúmplice do presidente panamenho José Raúl Mulino, e da oligarquia comercial e financeira local (Charge: O Homem por Trás do Ovo (Craik, 1903 – Sunday Times, coleção Granger)

Um deles foi Philippe Bunau-Varilla, que junto com seu irmão Maurice criou a “Companhia de Culebra”, especializada em dinamitar e escavar o Corte Culebra. O superfaturamento e as manobras financeiras transformaram Bunau-Varilla de simples empregado da Cia. Universal em um potentado e em um dos principais acionistas da Companhia Nova do Canal (que a substituiu), desempenhando um papel chave na secessão do Panamá e na assinatura do Tratado em 18 de novembro de 1903.

A transfiguração enganosa da Companhia Universal na Companhia Nova do Canal

O terceiro atraco foi contra a Colômbia, novamente. Como o contrato original com a Cia. Universal do Canal vencia em 1893, ano em que o canal supostamente deveria estar funcionando, os financistas franceses conseguiram do governo colombiano uma prorrogação (a primeira de um ano e a segunda de dez anos, que vencia em 1904) em troca da constituição de uma nova companhia que teria como objetivo reunir capital suficiente para terminar a obra. Assim nasceu a Companhia Nova do Canal do Panamá (Compagnie Nouvelle), que substituiu a “Universal”, em 1894.

A fraude contra a Colômbia consistiu no fato de que seus dirigentes nunca tiveram o objetivo de terminar a obra nem conseguiram reunir capital suficiente, o que violava claramente o contrato. Seu objetivo desde o início foi vender ao governo dos Estados Unidos os “direitos” de construção, o que também violava o contrato.

Diz Terán que a Companhia Nova foi constituída com 650 mil ações de 100 francos cada uma; mas a esmagadora maioria das ações foi emitida contra faturas de cobrança e papéis especulativos e sem capital real, divididos da seguinte forma: 40.620.700 francos em mãos dos “acionistas do panóptico ou carcerários” (especuladores que tinham demandas por superfaturamento contra a primeira empresa e que tiveram permissão para se apresentar como “aportadores” na segunda para continuar lucrando); 10 milhões de francos em mãos de um grupo de bancos encabeçados pelo Crédit Lyonnais; 10 milhões em mãos do Sr. Eiffel; 8 milhões dos ex-administradores da primeira companhia; 12,6 milhões em mãos de Maurice e Philippe Bunau-Varilla e seus sócios; 3,4 milhões de seis mil pequenos acionistas, possuidores de entre 1 e 5 ações (que foram os únicos que, de fato, colocaram dinheiro); e 5 milhões em ações destinadas ao Estado colombiano.

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Sentencia Terán: “Somente os pequenos subscritores pagaram integralmente o valor das ações que adquiriram, somando algo mais de três milhões de francos”; todo o restante foi composto de “contas insolutas, recibos e outros papéis…”. O capital real que a Companhia Nova reuniu não excedeu os 13 milhões de dólares (65 milhões de francos). Assim, os financistas franceses violavam, conscientemente, o artigo primeiro, parágrafos 1 e 2 do Contrato de Prorrogação de 1890, que os obrigava a concluir a obra e reunir capital suficiente para tanto.

Entre os poucos bens de valor que a Cia. Universal possuía e que não foram transferidos à “Nouvelle” — pois foram objeto de outra tramoia —, estavam as 68 mil ações da Cia. da Estrada de Ferro do Panamá. Essas ações foram depositadas como garantia no Comptoir National d’Escompte de Paris, no acordo entre a “nova” e a “velha”, estipulando que só passariam à “nova” caso o canal fosse concluído; do contrário, a “nova” pagaria à “velha” 4 milhões de dólares (20 milhões de francos) pelas ações.

“Mas era preciso jogar terra nos olhos da Nação colombiana para que não visse a verdade, ou para que a dissimulasse de boa vontade; e assim a Companhia Nova do Canal do Panamá, daí em diante, limitou-se a conservar mal e mal o material existente no Istmo, implantou um acampamento para cerca de 3.500 trabalhadores no Corte Culebra e construiu o Cais da Boca”, diz Terán.

Como se fundiram os interesses dos lobos franceses com os dos lobos de Wall Street

A verdade que se escondia, e para a qual realmente foi constituída a “Nouvelle”, era o contrato com o influente advogado novaiorquino William N. Cromwell para que convencesse as autoridades daquele país a comprar a obra e os direitos, tirando ainda um lucro extra do negócio.

Em 1893, o agente da Cia. Universal nos Estados Unidos, Sr. Boyard, sugeriu ao advogado Cromwell que comprasse 1.113 ações que tinham ficado do lado norte-americano. Feito isso, de um só golpe, Cromwell tornou-se acionista decisivo da Companhia do Ferrovia, membro de seu Diretório, seu advogado e gerente, e sócio dos especuladores franceses da Cia. Nova.

Oscar Terán considera William Cromwell o cérebro maligno por trás de todo o jogo dos especuladores da Cia. Nova do Canal, pois um ano antes de sua constituição ele já fazia parte da trama. Trama que buscava estafar a Colômbia e os direitos sobre suas ações, e trama que pretendia também enganar os detentores de bônus da Cia. Universal, que tinham pago 20 milhões de dólares pelas ações da ferrovia, e que agora só receberiam, no máximo, 4 ou 5 milhões por elas (incluindo a parte correspondente às 1.113 ações do próprio Cromwell).

“Dessa forma, os interesses dos especuladores franceses abrigados à sombra da Companhia Nova do Canal do Panamá e os interesses norte-americanos protegidos pela Companhia da Estrada de Ferro ficaram amalgamados; uma mesma sorte daí em diante os conduziria ao sucesso financeiro ou à ruína pecuniária”, sentencia Terán.

Ficaram casados os interesses de Cromwell, E. A. Drake e os outros dirigentes da PRRC, junto com os Bunau-Varilla, os Eiffel, os Oberdoerffer e demais acionistas condenados, acrescenta. Relação que se aperfeiçoou em janeiro de 1896, quando a Cia. Nova contratou formalmente Cromwell como seu advogado em Nova York (Págs. 29-30).

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Não nos estenderemos demasiado na história que foi abordada em milhares de páginas (e em uma bibliografia elementar que referimos ao final) sobre como Cromwell, os lobos de Wall Street, o porrete de Roosevelt e os especuladores franceses tramaram a separação do Panamá, a imposição de um tratado perpétuo (Hay-Bunau Varilla) que violava o direito internacional, para tirar dele sua parte dos 40 milhões de dólares que o governo norte-americano pagou à Cia. Nova, além dos 4 milhões pelas ações da ferrovia.

As confissões do lobo

Para finalizar, basta citar extensamente o próprio William N. Cromwell, que descreveu em detalhe suas funções e explica como trabalham os “lobos de Wall Street” — ou, melhor dizendo, como funciona o sistema capitalista internacional ainda hoje (a confissão dispensa provas):

“Convém também explicar aqui que, em mais de trinta anos de ativa e extensa carreira profissional, a firma ‘Sullivan e Cromwell’ havia criado relações íntimas, passíveis de serem aproveitadas vantajosamente, com homens colocados em posições de poder e influência em todos os círculos e em todas as partes dos Estados Unidos; … que tinham chegado a conhecer e a poder influenciar, com vantagens, um número considerável de homens públicos atuantes na política, nos círculos financeiros e na imprensa. E todos esses prestígios e relações foram de grande utilidade e, às vezes, decisivos, sendo um enorme auxílio no desempenho de nossos deveres profissionais no assunto do Panamá… Não seria possível nem talvez conveniente detalhar e enumerar os inúmeros modos e maneiras com que foram aproveitados, no dito assunto, nossa posição influente e nosso poder… Isso não quer dizer que a remuneração por nossos serviços devesse basear-se unicamente nessa consideração, mas foi ela, em parte, que acrescentou peso e potência às nossas atividades profissionais, que contribuiu substancialmente para o resultado obtido e que nos permitiu, durante os momentos críticos enfrentados por essa grande negociação, afastar o que em várias ocasiões parecia o golpe de graça da empresa do Panamá, e transformar em vitórias decisivas os casos mais desesperados” (citado por Terán, Págs. 31 e 32).

Cromwell viria a ser cônsul-geral em Nova York da recém-criada República do Panamá, sob o protetorado dos Estados Unidos, em 1903, nomeado por um governo formado substancialmente por quem tinha sido seu empregado no Istmo, na Companhia da Estrada de Ferro (José A. Arango e Manuel Amador Guerrero), que, além disso, o nomearam agente fiscal para administrar os investimentos imobiliários na América do Norte correspondentes a 6 dos 10 milhões de dólares que cabiam ao Panamá, segundo o Tratado Hay-Bunau Varilla. Milhões que sucessivos governos panamenhos continuariam a reclamar 50 anos depois.

“Grupo Unidos pelo Canal” para estafar o Panamá com o terceiro jogo de eclusas

Tem-se uma sensação de “Déjà Vu” ao observar a evolução do conflito surgido entre o consórcio Grupo Unidos Pelo Canal (GUPC), encabeçado pela espanhola Sacyr, que construiu, entre 2009 e 2016, o novo jogo de eclusas (Aguaclara e Cocolí), com a direção da Autoridade do Canal do Panamá, em sua demanda para cobrar excedentes em relação ao contrato original de US$ 3,2 bilhões, por um valor superior a 5 bilhões de dólares, ou seja, quase o dobro do pactado.

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Apesar de a maior parte dessas demandas ter sido rejeitada pela Câmara de Comércio Internacional, com sede em Miami, Flórida, Estados Unidos, ainda estão em litígio 3,5 bilhões de dólares, quase 10 anos depois da conclusão das obras.

Por outro lado, a construtora espanhola Sacyr e a italiana WeBuild (Impregilo), que fizeram parte do consórcio Grupo Unidos pelo Canal, demandaram a Autoridade do Canal do Panamá perante o Centro Internacional para a Resolução de Disputas sobre Investimentos (Ciadi), por supostas violações de tratados de investimento entre o Panamá e Itália e Espanha. Essas demandas seriam por um montante de até 2 bilhões de dólares adicionais, pelo menos no caso da Sacyr, uma empresa vinculada a escândalos de corrupção na Espanha.

As ameaças de Donald Trump contra o Canal do Panamá, outra tentativa de roubo

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, vem afirmando desde dezembro passado que o Canal do Panamá está nas mãos da China, e essa declaração foi reiterada por diversos funcionários daquele país. Além disso, Trump sustenta que o canal estaria sendo administrado pelo “Partido Comunista Chinês”, que a China possuiria duas bases militares em suas margens — os portos de Balboa e Cristóbal — e que estaria cobrando tarifas altas dos navios norte-americanos que passam por ali. “Algo grande vai acontecer”, insinuou Trump como ameaça, caso o Panamá não mude a situação descrita por ele.

Donald Trump sabe que mente, mas não pode deixar de expressar seu maior temor ao afirmar: “O Canal do Panamá está sendo operado pela China. China!… Nós não o entregamos à China. E eles (Panamá) abusaram. Abusaram deste presente” (La Prensa, 13/1/25).

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Nessas palavras está expresso o cerne do problema. A política externa e comercial de Trump tenta ser uma resposta a um processo objetivo de decadência econômica e política dos Estados Unidos, que cada vez mais enfrenta dificuldades para competir com a influência dos capitais chineses. Brandir agora o garrote contra o Panamá faz parte de seu projeto de fechar o mercado norte-americano — e, por extensão, o latino-americano — a produtos chineses que compitam com empresas norte-americanas. A intenção é cortar, onde for possível, o avanço dos capitais chineses. Estamos diante de uma competição que parece evoluir para um confronto de blocos econômicos semelhante ao que deu origem à Primeira e à Segunda Guerras Mundiais.

Sendo o Panamá um ponto relevante na geopolítica mundial, os Estados Unidos vêm se preocupando com a presença chinesa no istmo pelo menos desde 2017, quando se normalizaram as relações diplomáticas entre Panamá e China. Antes disso, o Panamá fazia parte dos governos centro-americanos subornados por Taipei para bloquear o reconhecimento de Pequim. Mas há décadas a China é o segundo maior usuário do canal, depois dos Estados Unidos, razão pela qual o estabelecimento de relações diplomáticas era uma necessidade lógica.

Até onde chegará o presidente Trump? Não está claro. Especialmente porque seus avanços sobre o Panamá contam com a colaboração cúmplice do presidente panamenho José Raúl Mulino e da oligarquia comercial e financeira local, cuja covardia ficou evidenciada.

Algumas fontes especulam que Donald Trump pretende criar uma base militar e apoderar-se diretamente do canal. Voltaremos a 1903? É o que precisamos entender.

Referências

BELUCHE, Olmedo. La verdadera historia de la separación de 1903. Segunda Edição. Imprenta ARTICSA. Panamá, 2004.

Díaz Espino, Ovidio. How Wall Street created a nation. J.P. Morgan, Teddy Roosevelt, and the Panama Canal. Four Walls Eight Windows. Nova York, 2001.

Lemaitre, Eduardo. Panamá y su separación de Colombia. Biblioteca Banco Popular. Bogotá, 1971.

Terán, Oscar. Del Tratado Herrán-Hay al Tratado Hay-Bunau Varilla. Historia crítica del atraco yanqui, mal llamado en Colombia la pérdida de Panamá y en Panamá nuestra independencia de Colombia. Valencia Editores. Bogotá, 1976.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Olmedo Beluche

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