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David Brooks | A democracia em perigo e o perigo da democracia nos Estados Unidos

Tudo indica que logo haverá uma cidade grande estadunidense governada por socialistas pela primeira vez em 60 anos
David Brooks
La Jornada
Nova York

Tradução:

A democracia estadunidense corre perigo, reafirmam muitos, mas talvez é que às vezes a democracia é um perigo para alguns, o que foi expresso de diversas maneiras, incluindo o espetáculo do Senado votando contra o direito ao voto, o anúncio de um investigação legislativa sobre a intentona de golpe de Estado de 6 de janeiro, castigos judiciais a figuras nacionais por mentir sobre eleições, e até o triunfo do socialismo em uma cidade industrial. 

Desde o presidente Joe Biden a líderes legislativos, jornalistas, defensores de liberdades civis, líderes sociais sobretudo de comunidades minoritárias, e especialistas repetem a cada dia que “a democracia está em perigo”, alarme que se intensificou durante a presidência de Donald Trump e que culminou com o assalto ao Capitólio para interromper o processo eleitoral constitucional no dia 6 de janeiro.

A semana começou com o Senado dos Estados Unidos votando contra a democracia. Um voto sobre o projeto de “Lei para o Povo” para a defesa e ampliação do sufrágio efetivo no nível nacional foi derrotado na terça-feira por uma minoria, sob as antiquadas regras da câmara alta onde é possível que 41 votos sejam mais de 59, o que em qualquer lugar, menos aí, violaria o princípio democrático que diz que a maioria triunfa. 

De fato, o voto inicial era só para abrir um debate dessa iniciativa de lei para fortalecer o direito ao voto no país, mas a minoria republicana, empregando essa regra que requer 50 votos – e não 51 que é a maioria simples na câmara alta de 100 integrantes – conhecida como filibuster impediu a aprovação da iniciativa.

Isto apesar de que na terça-feira, Biden instou o Senado a promover esse projeto de lei advertindo: “não nos podemos sentar quietos enquanto a democracia está em perigo – aqui, na América. Temos que proteger o direito sagrado ao voto e assegurar que “nós o povo” escolhemos nossos líderes, a mera fundação sobre a qual depende nossa democracia”. 

Poucas horas depois, essa iniciativa – apoiada pela maioria do Senado, já aprovada pela câmara baixa e respaldada por uma ampla maioria da opinião pública – foi frustrada. Os republicanos argumentaram que a iniciativa não continha as medidas necessárias para proteger o sistema eleitoral da fraude.  

Tudo indica que logo haverá uma cidade grande estadunidense governada por socialistas pela primeira vez em 60 anos

Wikipedia
Às vezes a democracia plenamente exercida é perigosa para as cúpulas

A luta continua

Biden denunciou que a manobra republicana “foi a supressão de um projeto de lei para pôr fim à supressão dos votantes”, e prometeu que continuará a luta pelos direitos democráticos.   

Na quarta-feira, líderes de direitos civis incluindo o reverendo Jesse Jackson e o copresidente da Campanha para os Pobres, o reverendo William Barber, foram detidos em Washington em um ato de desobediência civil exigindo a anulação do filibuster e a aprovação do projeto de lei em defesa do direito ao voto e por denunciar o argumento dos republicanos apenas como parte dos esforços para suprimir o voto de minorias e pobres no país.

Apesar de múltiplos tribunais estaduais e federais do país, incluindo a Suprema Corte, e as autoridades eleitorais, entre elas republicanas, descartaram por falta de evidência todos os argumentos de Donald Trump e seus aliados de que a eleição presidencial foi roubada por fraude, esse argumento continua como uma efetiva arma política para minar a confiança nos processos eleitorais e para promover medidas para limitar e obstaculizar o voto em dezenas de estados por todo o país. Críticos assinalam que os republicanos sabem que necessitam suprimir o voto, sobretudo de minorias e pobres, para poder ganhar eleições em vários estados e nacionalmente. 

Tribunal suspende licença de Giuliani

Hoje, citando a promoção deste falso argumento do ex-prefeito de Nova York. Rudolph Giuliani, um tribunal estadual suspendeu sua licença de advogado no estado de Nova York ao determinar que “fez declarações demonstravelmente falsas e enganosas a tribunais, legisladores e ao público em geral, em sua capacidade como advogado do ex-presidente Donald Trump”.

O tribunal decidiu que “a conduta [de Giuliani] ameaça de maneira imediata o interesse público e merece uma suspensão da sua licença”.

Mas Trump e outros continuam insistindo em que ele perdeu a eleição só por uma massiva fraude, mesmo depois que esses argumentos motivaram um ataque sem precedentes contra uma das máximas instituições da democracia dos Estados Unidos.

Comitê investigará ataque ao Capitólio

Nesta quinta-feira, a presidenta da câmara baixa, a democrata Nancy Pelosi – depois que os republicanos se recusaram a conformar uma entidade independente bipartidária – anunciou a criação de um comitê seleto para investigar profundamente o assalto ao Capitólio por simpatizantes de Trump.

Pelosi caracterizou o assalto ao Capitólio de 6 de janeiro por uns 800 simpatizantes de Trump, entre eles supremacistas brancos e outros ultradireitistas “como um dos dias mais escuros na história de nossa nação” e disse que o objetivo do comitê especial da câmara baixa será “estabelecer a verdade desse dia e assegurar que um ataque desse tipo não possa acontecer de novo”. 

Primárias em Nova York

Enquanto isso, no nível local o processo democrático ofereceu algumas surpresas. A eleição primária em Nova York, a principal cidade dos Estados Unidos e a mais diversa, com 200 idiomas e mais de 40% de seus 8 milhões de residentes imigrantes, foi realizada na terça-feira com um resultado preliminar que coloca Eric Adams, presidente do condado de Brooklyn e ex-policial, em primeiro lugar e a advogada progressista Maya Wiley em segundo, entre um elenco de 13 candidatos.

Sob o novo sistema que oferece a cada eleitor cinco preferências para prefeito, não se saberá quem é o ganhador por algumas semanas. 

Em uma cidade democrata, quem ganha a primária quase sempre determina o resultado da eleição geral em novembro. Para progressistas que tinham maiores expectativas, um triunfo de Adams – apoiado por multimilionários e parte da cúpula política tradicional – é um revés.

Vitória socialista em Buffalo

Porém em uma grande surpresa ao norte do estado de Nova York tudo indica que logo haverá uma cidade grande estadunidense governada por socialistas pela primeira vez em 60 anos.

India Walton, uma ex-enfermeira, sindicalista e ativista comunitária afro-estadunidense que se identifica como socialista democrática, ganhou a primária democrata na cidade industrial de Buffalo – o que quase sempre assegura seu triunfo na eleição geral – e o fez declarando que “somos trabalhadores, nós fazemos o trabalho e merecemos um governo que trabalhe com e para nós”. 

Ou seja, às vezes a democracia plenamente exercida é perigosa para as cúpulas.  

“Quando falamos de democracia nos Estados Unidos, estamos falando de uma pessoa, um voto. Do que não se trata a democracia é multimilionários empregando sua riqueza para comprar nossas eleições, ou estados suprimindo o voto ao negar que as pessoas pobres ou pessoas de cor tenham o direito ao voto”, afirmou esta semana, com relação ao voto na câmara alta, o senador Bernie Sanders.

David Brooks, correspondente de La Jornada em Nova York.

La Jornada, especial para Diálogos do Sul — Direitos reservados.

Tradução: Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

   

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David Brooks Correspondente do La Jornada nos EUA desde 1992, é autor de vários trabalhos acadêmicos e em 1988 fundou o Programa Diálogos México-EUA, que promoveu um intercâmbio bilateral entre setores sociais nacionais desses países sobre integração econômica. Foi também pesquisador sênior e membro fundador do Centro Latino-americano de Estudos Estratégicos (CLEE), na Cidade do México.

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