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Toggle- Atualizado em 23/04/2025, às 11h05.
Francisco, o papa latino-americano que “os cardeais foram buscar no fim do mundo”, como ele mesmo afirmou, entra para a história da Igreja Católica e da humanidade como aquela pessoa que, exercendo uma liderança firme, dentro e fora das fronteiras institucionais, soube compreender os desafios da sociedade, ensaiou a partir de seu lugar as respostas ao seu alcance e, sobretudo, teve a capacidade de interpelar a todos, próximos e distantes, com sua mensagem profundamente humana.
Dessa forma, Jorge Bergoglio conseguiu deixar marcas na vida de muitas pessoas, inclusive em grande parte daquelas que não o reconheceram como seu líder espiritual ou religioso. No cenário de um mundo contemporâneo atravessado por conflitos e guerras e, ao mesmo tempo, carente de vozes e referências que iluminem os caminhos da fraternidade entre pessoas e povos, Francisco fez-se presente.
Como componente essencial de sua missão, o Papa pregou e colocou em prática o que ele próprio denominou “a cultura do encontro”. Porque, como escreveu em sua autobiografia recentemente publicada com o título Esperança, “só quem levanta pontes saberá avançar; quem levanta muros acabará preso pelos muros que ele mesmo construiu. Antes de tudo, ficará aprisionado seu coração”.
Francisco: o homem comum
Projetou-se como estadista e líder mundial, sem perder a simplicidade característica da história pessoal deste portenho (“dentro da minha alma me considero um homem da cidade”), o mais velho de cinco irmãos, todos nascidos no bairro de Floresta, em Buenos Aires, e que, mesmo no Vaticano, continuou reconhecendo-se como “corvo” por sua afeição ao San Lorenzo. No entanto, quando lhe disseram que, em sua volta à avenida La Plata, o novo estádio poderia se chamar “Papa Francisco”, ele respondeu claramente: “a ideia não me entusiasma”.
A eleição como Papa mudou a vida de Jorge Bergoglio. Mas, uma vez tornado Francisco, fez o possível para manter os traços de humanidade e de homem comum que o faziam, mesmo sendo cardeal, continuar pegando o metrô para ir ao seu escritório na cúria portenha. “Gosto de caminhar pela cidade, é na rua que aprendo”, dizia. Sua nova condição o obrigou a muitas restrições, mas, em vez de habitar um palácio vaticano, escolheu viver na residência Santa Marta, uma espécie de hotel religioso que recebe bispos e sacerdotes que viajam a Roma por motivos eclesiásticos. Ali mesmo transferiu muitas de suas audiências, sobretudo quando se tratava de encontros com pessoas próximas, por motivos pessoais ou pastorais. Santa Marta foi sua casa. Foi lá que chegaram os sapatos “gomicuer” que pediu aos amigos que lhe trouxessem de Buenos Aires, após dispensar os calçados vermelhos usados por seu antecessor, Bento XVI. Também dali, ou de qualquer lugar do mundo onde estivesse de visita, Francisco fazia questão de ligar todos os domingos à noite para Buenos Aires, para sua irmã María Elena, a única sobrevivente de sua família. Ele disse que não ver sua irmã foi um dos desapegos que mais lhe custaram.
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Reconhecia-se como amante da música e do tango. “A melancolia foi uma companheira de vida, ainda que não constante (…) fez parte da minha alma e é um sentimento que me acompanhou e que aprendi a reconhecer.”
Desde 1990, por causa de uma promessa religiosa, não voltou a ver televisão e se mantinha informado por outros meios.
“Plano de governo” do Papa Francisco
A eleição de Bergoglio como papa Francisco, que mudou a vida da Igreja Católica, também transformou profundamente a maneira de o catolicismo se relacionar com a sociedade, no mundo e em cada país e região.
Nem mesmo os mais próximos — aqueles e aquelas que conheciam seus pensamentos e haviam acompanhado sua trajetória — poderiam imaginar, naquele 13 de março de 2013, o “plano de governo” que Jorge Bergoglio tinha em mente ao ser ungido como a máxima autoridade da Igreja Católica. Talvez nem ele mesmo tivesse considerado essa possibilidade, apesar da experiência acumulada em seus anos como superior provincial dos jesuítas na Argentina (1973–1979), em plena ditadura militar, ou em sua missão como bispo auxiliar (1992–1998) e depois como arcebispo de Buenos Aires (1998–2013).
Não são poucos os que sustentam que a vida de Bergoglio sofreu uma guinada fundamental por sua participação na Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (Aparecida, Brasil, 2007), na qual o então arcebispo portenho recebeu um banho de “latino-americanidade” em seu contato com seus colegas bispos da região e, em particular, com os do Brasil. Isso foi o que o levou a escrever em suas memórias que “minhas raízes são também italianas, mas sou argentino e latino-americano. No grande corpo da Igreja universal, onde todos os carismas ‘são uma maravilhosa riqueza de graça’, essa Igreja continental tem características especiais de vivacidade, notas, cores, matizes que também constituem uma riqueza e que os documentos das grandes assembleias dos episcopados latino-americanos manifestaram”.
Até então, o “portenho” Bergoglio, como boa parte dos argentinos, havia se mantido distante da América Latina. Também em termos eclesiásticos, por sua proximidade com a “teologia da cultura”, que aprendeu com seu mestre Juan Carlos Scanonne, e mais afastado dos teólogos da libertação como o peruano Gustavo Gutiérrez ou o brasileiro Leonardo Boff. Com ambos se encontrou e se abraçou depois que já estava no Vaticano. Bergoglio se fez latino-americano em Aparecida. E com essa bagagem chegou ao consistório que o elegeu Papa.
Poucos dias antes de sua morte, a teóloga argentina Emilce Cuda, que o Papa levou a Roma como uma de suas mais próximas colaboradoras, foi enfática ao afirmar que a teologia de Francisco foi “a teologia”, tout court, resgatando as raízes do pensamento cristão ao longo da história para colocá-lo em diálogo com os desafios atuais da Igreja e do mundo.
Referência mundial
O tempo e, sobretudo, os gestos de Francisco foram deixando clara a proposta e as marcas que o primeiro Papa da América Latina desejava estabelecer como impronta de sua gestão. Foi assim que sua primeira viagem político-pastoral o levou a Lampedusa, para encontrar-se com os imigrantes ilegais expulsos de seus territórios, que fogem desesperadamente em busca da vida. A eles e ao mundo, reafirmou com um gesto de proximidade e solidariedade sua pregação em favor dos pobres, dos descartados e de seus direitos.
A partir dali, sem abandonar sua marca religiosa, o Papa começou a construir sua condição de referência mundial para além das fronteiras da Igreja Católica, tornando-se interlocutor de chefes de Estado, de dirigentes sociais, políticos e culturais. Em um mundo com lideranças em crise e enfrentando os desafios da realidade, Francisco escolheu o caminho do diálogo e do encontro com os diferentes, a partir da realidade dos pobres e reivindicando seus direitos.
Suas ideias ficaram registradas em muitos de seus documentos e discursos públicos, mas sobretudo nas encíclicas Laudato Si’ (2015), sobre “a casa comum”, a mudança climática e o cuidado com os recursos naturais, e Fratelli Tutti (2020), sobre a amizade e a fraternidade social.
Mas Francisco foi, de muitas maneiras, um líder incômodo para os governantes e os poderosos do mundo. Em particular, por seus apelos para enfrentar os problemas da superexploração dos recursos naturais em detrimento do cuidado com a natureza, por suas críticas a um modelo econômico predador e excludente, e por seus alertas sobre o “descarte”, evidenciado nas migrações massivas, nas guerras e no aumento da pobreza.
Os pobres e a guerra
Em seu percurso, Francisco tornou-se porta-voz dos descartados e dos pobres, mas também aliado daqueles que se levantaram em defesa dos direitos dessas pessoas e comunidades. Pode-se dizer que o discurso pronunciado em 9 de julho de 2015 pelo Papa, diante do auditório plural dos movimentos sociais reunidos em Cochabamba (Bolívia), cujo eixo foi sua proclamação das “três T” (terra, teto, trabalho), constitui uma espécie de síntese doutrinária que, em outro tom e com diferente elaboração, Francisco já havia expressado de maneira sistemática e com base teológica na Laudato Si’. Uma grande síntese que, na contracorrente das forças do capitalismo global, se levantou em favor dos pobres e de suas organizações, criticou os poderes hegemônicos e lançou um apelo à paz. Uma militância pacifista que Bergoglio sustentou com suas ações e as do Vaticano em cada lugar de conflito, em qualquer canto da Terra. Nessa tarefa, os movimentos sociais foram constantemente escolhidos como aliados e interlocutores, convocados e sentados à mesa de conversas com o Papa.

Por meio de suas ações, Francisco também consolidou sua ideia de que às grandes religiões monoteístas do mundo e a seus dirigentes cabe a responsabilidade de encontrar saídas para a guerra mundial traduzida em uma multiplicidade de conflitos localizados ou guerras regionais por disputas territoriais, questões de soberania, enfrentamentos políticos, étnicos ou raciais. “Não existe guerra inteligente; a guerra só sabe causar miséria; as armas, unicamente morte”, afirmou.
Em outubro de 2022, organizou em Roma um grande encontro de líderes religiosos mundiais pela paz. Mas antes e depois disso, reuniu-se no Iraque com o Grande Aiatolá Sayyid Ali Al-Husayni Al-Sistani, líder da comunidade xiita do país, em Ulaanbaatar com onze líderes de diferentes confissões e, mais recentemente, na Indonésia, junto ao imã Nasaruddin Umar, visitou o “Túnel da Amizade” que conecta a mesquita Istiqlal com a catedral de Nossa Senhora da Assunção.
Na própria Igreja
No interior da própria Igreja Católica, o papa Francisco impulsionou muitas linhas que conectam diretamente com iniciativas inauguradas no Concílio Vaticano II (1962-1965), promovidas pelo papa João XXIII (1958-1963) e continuadas por Paulo VI (1963-1978), mas que enfrentaram freios e retrocessos com João Paulo II (1978-2005) e Bento XVI (2005-2013).
Assim, Bergoglio insistiu na ideia de “uma igreja de portas abertas”, com capacidade de acolhida para todas e todos, sem nenhum tipo de restrição, em diálogo com a sociedade e enfrentando os problemas comuns. Isso implicou também reformas profundas nas estruturas eclesiásticas, com mais espaços para os leigos e, em particular, para as mulheres, mas também a partir de uma perspectiva eclesiológica que buscou protagonizar o “sacerdócio comum dos fiéis”, inclusive antes do sacerdócio ministerial.
Com essa intenção, Francisco promoveu, por meio dos sínodos (universal e regionais), uma Igreja mais participativa, que colocou em xeque o modelo estritamente hierárquico, piramidal e centrado em Roma. Isso trouxe junto a decisão de enfrentar os problemas de abusos, a pedofilia e a corrupção dentro da estrutura eclesiástica.
Bergoglio acompanhou esse processo com reformas da cúria vaticana, substituição dos responsáveis e novas nomeações para cercar-se de figuras de sua confiança. Também houve mudanças por meio da designação de bispos mais jovens e alinhados à perspectiva eclesiológica de Francisco.
Nada disso ocorreu sem resistências e enfrentamentos. No mundo, mas também na Argentina, onde, paradoxalmente, os setores católicos mais conservadores, empresários e representantes do poder, que viam em Francisco a continuidade do cardeal Bergoglio — que em seu momento, e sem considerá-lo como sendo de sua própria linha, nunca lhes pareceu incômodo — rapidamente se sentiram defraudados pelas iniciativas e propostas do Papa, que acentuou os traços mais latino-americanos do então cardeal de Buenos Aires e radicalizou sua perspectiva em favor dos pobres, dos excluídos e de seus direitos.
O poder se desgostou com Francisco e não disfarçou. Também os setores conservadores da Igreja, incluindo alguns bispos, se sentiram incomodados com Bergoglio, embora estes últimos tenham se mantido dentro dos limites de discrição que a própria Igreja impõe.
Em nível mundial, as intrigas e conspirações também foram aumentando. Membros do colégio cardinalício que haviam buscado um papa latino-americano e escolheram um argentino porque, sendo tal, era o “mais parecido” com os europeus, sentiram-se frustrados em suas expectativas.
Mais de uma vez, os setores mais conservadores rasgaram as vestes diante do que consideraram concessões excessivas de Bergoglio, tanto em suas mensagens quanto em seu estilo pastoral. Francisco não se inquietou demasiado com isso. Seguiu tomando decisões com consciência dos problemas que enfrentava e chegou a utilizar a energia e o respaldo que lhe vinham de fora para travar batalhas no seio da própria Igreja.
Sempre pareceu convencido da tarefa que devia enfrentar: avançar e aprofundar a reforma da Igreja rumo a uma forma de governo e de participação mais sinodal, mais horizontal e plural, que renovasse a vida do catolicismo.
Embora tenham sido dados passos substanciais nesse sentido, talvez essa seja a tarefa inconclusa que Francisco deixa e que ficará nas mãos de quem o suceder no pontificado. Uma designação que dependerá de uma eleição incerta e sem candidatos à vista, mesmo levando em conta a profunda renovação que Bergoglio realizou no colégio cardinalício que escolherá o novo papa.