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Dilma Rousseff fica séria quando perguntada se confia no povo brasileiro. “Totalmente”, diz ela. E ela explica: “O povo brasileiro é a única força que impede e pode evitar grandes catástrofes. É por isso que eles não querem deixar você votar. Porque eles não votarão neles. Esse é o problema”.
Nicholas Trotta, no Página/12
No entrevista realizada em Buenos Aires na manhã de 1º de maio, quando participou de todos os eventos pela liberdade de Lula organizados por Umet, Clacso, o Editorial de outubro e a Confederação Geral do Trabalho, a presidente deposta pelo golpe em 2016 chegou a contar o que aconteceu no sábado, 7 de abril, antes de Lula concordar em ir para a prisão e se despedir de todos que estavam no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo.
“Foi muito doloroso”, disse Dilma. Quando cheguei ao Palácio do Planalto, o Presidente Lula chorou muito. Ele me abraçou chorando. Eu disse: “Não chore, presidente”. Ele me perguntou por quê. “Porque eu não chorei”, eu disse. Quando o abracei, no final, em São Bernardo do Campo, antes de ir para a prisão, chorei. E então ele me disse: “Não chore”. Lula tem uma grande força interior. E quem está ao seu lado deve ser ainda mais forte. Quando me senti frágil, recebi muita firmeza dele.
Página/12: A verdade é que se vê com grande preocupação a realidade do Brasil e da América Latina. No momento de iniciar o segundo mandato, em 1º de janeiro de 2015, era possível imaginar uma decomposição tão profunda do Brasil?
Dilma Rousseff: Foi uma eleição extremamente radicalizada, com posições muito duras, mas também com muito ressentimento por parte de nossos adversários. Então, depois de minha eleição no segundo turno, começamos a perceber que eu estava tendo algum tipo de terceiro turno: eles questionaram os resultados e exigiam recontagem. Então o pedido de impeachment viria. Fui eleita em novembro e eles fizeram o pedido de impeachment em março. Um presidente brasileiro pode sofrer um processo de impeachment por crimes cometidos durante seu mandato. Mas em tão pouco tempo não tiveram tempo para identificar uma irregularidade e assim formou-se o ovo da serpente que levou ao impeachment. Hoje não existe uma pessoa que conheça esse processo e considere que houve alguma margem para o impeachment.
Depois desse primeiro ato veio o golpe e o programa do atual governo: reformas neoliberais com perda de direitos e um grande retrocesso em questões fundamentais para o crescimento econômico do Brasil. No entanto, eles ainda não aprovaram a reforma previdenciária no Congresso. E eles não nos derrotaram. Eles queriam destruir o PT, eu e o Presidente Lula. E qual foi o resultado? Que depois de toda a perseguição é claro não só que Lula é inocente, mas vai primeiro nas pesquisas. O PT é o partido que, como tal, tem o apoio mais popular: 20% contra 1% ou 5% dos outros partidos.
E até que ponto o Brasil deve entrar em um colapso para depois poder ressurgir?
Eles não tinham o menor critério ou a menor ética. Nós, por outro lado, enfrentamos a crise de 2008. Sabíamos que em algum momento isso iria nos afetar, os países emergentes. Porque não fomos a causa da crise de 2008. Quando os efeitos vieram, disseram que havia uma crise política. E começaram a repetir: “O país não tem problema nenhum, a gente levou para a Dilma e resolvemos tudo”. E quais são os dados mais recentes do Brasil? Hoje o país sofre a maior taxa de desemprego da história brasileira. Mais de três milhões de pessoas. Desemprego de mais de 13%. Por outro lado, o menor investimento público dos últimos 50 anos. E não só isso: o maior déficit público foi em março de 2018. Eles estão levando o Brasil ao limite. Eles estão desmantelando não só o país do ponto de vista social, quando reduzem todos os programas sociais, além de algumas manobras demagógicas. Eles estão destruindo as universidades. Eles estão sendo deixados sem recursos por causa da política fiscal absurda que eles desenvolvem. E eles disseram que o Brasil estava falido … Um país só está falido quando não tem como pagar seus credores. O Brasil não está falido. Tem 380 bilhões de dólares em reservas e sua dívida não é em dólares, mas em reais. Não tem dívida externa significativa. É mais: fomos, somos e, se não fizerem nada de errado, seremos credores internacionais. Não foi difícil sair da crise. Só que eles subestimaram a crise econômica, definiram essa crise como política e agora que a crise política não tem fim. Não teremos uma solução se não conseguirmos nos reunir com nós mesmos.
Como é essa reunião?
Essa reuniăo é a eleição. Caso contrário, se tentarmos acordos acima, negociados sem a participação da sociedade, não haverá reunião. Legitimidade deve ser dada pelas urnas. Isso interromperá essa trama de golpe que começou quando meu adversário decidiu que ele não havia perdido as eleições e recorreu ao impeachment para chegar aonde ele não tinha conseguido chegar com os votos. Se hoje não eliminarmos essa tentação golpista do pacto político brasileiro, não conseguiremos a necessária transição política para que o Brasil possa se redescobrir.
Mas hoje, quem tem capacidade e liderança para iniciar essa recuperação da democracia é Lula, já condenado a doze anos e meio e sujeito ao risco de prescrição.
Sem duvida. Essa é a questão mais séria do Brasil, porque Lula é inocente. Não é que ele foi condenado sem provas, mas que ele foi condenado e ele é inocente. O apartamento que eles usam para acusá-lo de ter recebido os benefícios da corrupção de uma empresa não é dele. O apartamento recebeu uma garantia da empresa em questão, a OAS, que não pagou ao banco e um juiz a hipotecou. Ou seja, o apartamento não existia. E quando se pergunta que tipo de ato o presidente Lula fez para receber tal benefício, o juiz responde: “Um ato indeterminado”.
Eu não acredito que em qualquer país civilizado do mundo alguém seja condenado por um ato indeterminado. Então, a realidade é a seguinte: Lula é inocente, e, portanto, é uma perseguição política e eles o colocaram na prisão para impedi-lo de participar das próximas eleições. Porque eles sabem que o objetivo político do golpe é eliminar o PT da face da terra. E não só não eliminaram o PT, mas somos hoje o partido com maior aceitação aos olhos da população. Lula, em todas as pesquisas, desde o início de 2017 é o candidato preferido do eleitorado. Ele cresce mais e mais, embora ele esteja na prisão. Eles começam a apostar na destruição de Lula, porque os partidos conservadores da direita são destruídos. Mas o partido conservador mais forte hoje é o partido da mídia. O partido de cinco grupos oligopolistas do Brasil. A direção dessa festa é a TV Rede Globo.
E o poder judiciário?
O partido da mídia e o partido judiciário se uniram para tirar Lula do processo eleitoral. Eles pensaram que no começo eles não precisariam de medidas extremas. Eles passaram meses e meses, dias e dias, horas e horas transmitindo em jornais, canais de televisão e revistas um julgamento da sentença de Lula sem direito de defesa. A grande mídia tornou-se uma instância judicial. Eles julgam, condenam e até se dão o prazer de dizer como os juízes do tribunal devem votar. Eles alcançaram um clima de catástrofe. Mas durou muito pouco porque mesmo na Justiça, onde o princípio da presunção de inocência, pedra angular do Estado democrático, não é respeitado, Lula consegue discutir as condições. Pergunta como eles o acusam. Reivindique seu direito de defesa. E as pessoas veem isso. Isso explica seu crescimento sistemático, apesar da condenação da Suprema Corte e mesmo depois de ir para a prisão.
Porque duas coisas estão se tornando cada vez mais claras. Primeiro, que Lula é inocente. Segundo, que Lula é a única pessoa que ocupa o centro da política. Lula não é uma pessoa que radicaliza radicalizando. Ele sempre teve uma prática de negociação, de construção de consenso, de estabelecer diálogo. Se Lula não for candidato, o processo não será verdadeiramente democrático. Lá, quem vai perder será o país, porque essa situação de impasse institucional está levando a algo mais perigoso, que é o caos institucional. Numa sociedade complexa como a brasileira, não é possível conviver sem construir relações de consenso e negociação.
Vendo esse cenário, a estratégia do PT estava correta ou deveria ter avançado em reformas mais profundas para discutir a real distribuição de poder no Brasil?
Nós tivemos 13 anos de governo. Começamos a redistribuição da riqueza, porque a redistribuição da riqueza é basicamente a redistribuição do patrimônio, que em um país com a quantidade de terra que o Brasil tem é distribuir terra e também casas. A questão da casa própria é fundamental em um país que tem uma população jovem, com crianças e adolescentes que precisam deixar casas precárias como as das favelas, onde não conseguem criar e construir comunidades mais estáveis. Isso é um elemento. O outro elemento é a educação de qualidade. E o terceiro elemento é a enorme perda de indigência. Com esses três elementos, um processo significativo de redistribuição da riqueza começa. Nós iniciamos esse processo. Nós fizemos a reforma agrária. Se contarmos os 500 anos de história antes de nós, a conclusão é que distribuímos mais terra do que naqueles 500 anos. Iniciamos um programa extremamente audacioso, “Minha casa, minha vida”, que também é distribuição de moradia para as pessoas mais pobres do país. Nós também colocamos nosso esforço na questão educacional. Quando saí do governo, 35% dos formados em universidades eram os primeiros da família. A educação tem uma dupla função. É perene: A partir do momento que você garante a qualidade da educação, não tem como voltar atrás da pessoa que a recebe. E também causa crescimento econômico. Nós demos grandes passos. Criamos cotas para negros. O Brasil tem uma grande população negra. O segundo depois da África. É por isso que é muito importante falar sobre o Estado Negro do Brasil. Em 13 anos você não resolve todos os problemas, mas acho que há outro componente: o que as elites pensam.
O que elas pensam?
Temos um problema sério com nossas elites. Eles vêm de um processo de escravidão que ocorreu em todos os estados. Nos 27 estados, as elites consideram que o controle social violento é a melhor forma de controle. Além disso, os que apoiaram o golpe encorajaram, alimentaram um monstro da extrema direita. Monstro que emana ódio, intolerância, tratamento da política com confronto violento. E o problema não é resolvido dessa maneira. O Brasil tem sérios problemas que só podem ser resolvidos através de votação. A eleição de 2018 deve ser livre, com o direito de participação garantido para todos os cidadãos. Não só porque acredito que é essencial que Lula participe. É mais importante: a participação de Lula simboliza a única maneira verdadeira de interromper esse processo de desconstrução da sociedade brasileira. Porque temos sérios problemas institucionais. Em todas as instituições existe conflito aberto e divisão acentuada.
Era mais difícil dispensar o presidente sem justa causa do que proibir um candidato. Tudo indica que a proibição é a estratégia das elites econômicas para proteger seus privilégios. Nas eleições de outubro, há uma expectativa de que Lula seja candidato?
Após as primeiras fases do golpe, que são o impeachment e a prisão de Lula, já temos uma democracia sob séria ameaça. É por isso que a democracia se tornou um valor muito importante. Se hoje no PT dissermos que Lula não é mais candidato, estaríamos cometendo um absurdo político. Nós estaríamos responsabilizando Lula por algo que é inocente. Como vamos remover um inocente das eleições? Eles tentam nos induzir a fazê-lo. Pergunta: “Lula é o único candidato que eles têm?” E é bom que também perguntemos: “E seu candidato?”. Lula concentra a força para interromper esse processo cheio de falhas, contradições … Os golpistas foram destruídos politicamente. Eles não têm um projeto de país.
Mas eles têm a capacidade de quebrar as regras democráticas para impedir que a maioria eleja um presidente.
Nós não podemos resolver essa contradição anulando Lula. O que poderia justificar a resolução de uma contradição que eles criaram? Nossa presença deixa claro que não é a solução para tirar Lula, porque a remoção de Lula não resolverá o conflito do Estado do Brasil. O Brasil permanecerá completamente dividido. Todo o processo de destilação do ódio, ressentimento e violência continuará a resolver conflitos. Eles até elogiam a tortura da ditadura militar. Lula não é a causa da ruptura que existe hoje no Brasil. Pode ser a solução, mas a causa não é. O Brasil está dividido porque há uma ruptura dos pactos democráticos expressos na Constituição. É explicitamente declarado que o voto popular deve ser respeitado.
Depois de perder, não tente cancelar a partida. A escolha não é uma varinha mágica. Mas uma eleição é necessária para avançar para um momento de estabilidade no país. É uma situação muito séria em que vivemos, porque um país que emergiu da miséria está retornando à miséria. E quando a desigualdade se aprofunda, as pessoas buscam soluções extremas que não são democráticas. É por isso que digo que a eleição é um momento de reunião. Se não for resolvido lá, o processo político não é resolvido. As pessoas percebem que perderam direitos. Que ele continua perdendo eles. Eles não conseguem um emprego decente ou aqueles que aspiram a um salário mínimo ou às classes médias. A reforma trabalhista precarizou completamente o mercado de trabalho. Quando uma investigação é feita, ela descobre quem está conseguindo emprego: aqueles que chegam a um emprego precário, sem garantias. É um processo que coexiste com a memória recente: Você poderia viver de maneira diferente. E eles não podem dizer que o Brasil está quebrado. Quando Lula chegou ao governo, o Brasil foi quebrado. Nós o tornamos um país macroeconômico robusto.
Até que ponto a tolerância a essa perda de direitos vem? Porque você não vê um Brasil mobilizado. Até que ponto a possibilidade de aprofundar a crise social e política das pessoas exige uma democracia plena nas ruas?
Ao longo da história da constituição do povo brasileiro, uma das partes sofreu o controle social através da violência mais extrema. A coisa séria sobre o Brasil é que eles estão levando a população progressivamente à miséria. O empobrecimento da sociedade elevará o estado de violência. A violência política vai crescer. Não me diga que o crime organizado é nas favelas do Rio de Janeiro. Isso é ridículo. O crime organizado está nas grandes estruturas bancárias financeiras para lavar dinheiro. Você sabe disso. Eles conhecem o problema dos paraísos fiscais, onde o dinheiro que não pode parecer para não pagar impostos. Aquela massa de dinheiro que é o lucro de drogas, terrorismo e corrupção. Se isso não for controlado, o crime organizado não pode ser controlado. Hoje as pessoas têm consciência.
Quais alternativas existem para enfrentar essas elites econômicas que capturam poder e quebram as regras do jogo?
Nós nunca conseguimos formar frentes de movimentos sociais. Me parece que a organização da sociedade no Brasil é muito importante. Temos que nos aprofundar na disputa em todos os espaços democráticos. O aspecto central da conjuntura é a luta democrática. Isso torna o processo eleitoral tão importante. Até que ponto eles poderão impedir que a democracia seja ampliada e, a partir daí, a sociedade deixe de sofrer esse tipo de bloqueio? Este processo não resolve o problema, mas acomoda forças. Mesmo que você ganhe um projeto progressivo, precisará de um período de transição que institucionalmente mude a sociedade, caso contrário, a governabilidade será impossível. Deve haver uma regulação econômica dos meios para acabar com o controle oligopolista. Deve haver uma reforma política e tributária. Não pode ser que no Brasil os dividendos não paguem impostos. Temos que ter um imposto sobre grandes fortunas. Não podemos continuar como agora, quando a carga tributária é um fardo para os trabalhadores e as classes médias. Também temos que enfrentar o que está acontecendo com a politização da justiça.
Por que imaginar que as elites permitirão eleições livres se eles sabem que outro governo popular promoverá reformas?
A elite tem um problema sério. Toda a recuperação prometida não aconteceu. A destruição política de seus adversários não aconteceu. Aqueles que foram destruídos são os golpistas conservadores, o chamado partido da modernização democrática. Eles não têm um candidato viável. Eles carregam a marca da corrupção e mentiras e ninguém é preso. O único prisioneiro não tem a marca da corrupção, porque ele é inocente. E aqueles que estão soltos são culpados.
Com a colaboração de Patricia González López.