Divulgo a seguir um momento da vida de Soledad Barrett, no trecho que escrevi sobre ela para o romance “A mais longa duração da juventude”. Agora, mais que nunca, Soledad nos gritaria com referência ao traidor Cabo Anselmo, ao fascista, a todo fascista, #EleNão:
“Não sei se consigo narrar o que veio depois. Há uma crença generalizada de que para bem escrever basta o sofrimento. Ou numa versão mais sábia, que me falou o grande Gregório Bezerra, quando voltou ao Brasil com a anistia. Então eu lhe perguntei como um homem, que não era um intelectual, escrevera páginas tão boas como as que estão em suas Memórias. Ele me respondeu: “Quando a história é bem vivida, a gente sabe contá-la”. Hoje, passado o encanto imediato por sua resposta, penso que as palavras de Gregório expressam um trecho do fenômeno. Quero dizer, além de viver bem a sua história, curtir, depurar, amadurecer, refletir sobre, é preciso talento para contar a história. E neste caso, a dúvida me assalta, sem qualquer pose de modéstia. Isto é, tenho que organizar, extrair a fórceps o que nasce primeiro: o sentimento e ideia que afloram à superfície destas linhas. Depois, tentar seguir o seu curso temporal, de calendário. Mas então vemos, antes, a história revelada que veio crescendo, e não para de crescer até hoje. Quero dizer.
O assassinato de Soledad não exibiu todo o seu horror no primeiro impacto. Entendam, houve traumatização extraordinária, mas em 11 de janeiro de 1973, data dos jornais com as manchetes das execuções, não se adivinhava tudo, no mesmo passo em que se recuava diante do mais fundo inferno que se ocultava. Eu sabia, antes das fotos dos seis ‘terroristas’ na imprensa, que Soledad estava grávida, pois tricotava sapatinhos de bebê em Jaboatão. Mas jamais poderia crer — e crer aqui possui o sentido de enfrentar na consciência o que não é desejável —, jamais poderia crer nas condições da sua morte, do seu cadáver como descreveu a fala da advogada Mércia: “Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror. A boca estava entreaberta e o que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão que ela foi morta e ficou algum tempo deitada e a trouxeram, e o sangue quando coagulou ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. E o feto estava lá nos pés dela, não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror”. Esse açougue sobre uma pessoa não sabíamos, eu e todos companheiros subversivos. Para nós, se comparo mal, a morte vinha como um estado entre a vida e a notícia no jornal, imobilizada, ou se comparo pior, como uma morte de desenho animado, pow!, e a figura, o boneco morria feito bola de festa. Pow! Mas a crueldade real não era assim. Havia sangue de matadouro naquela morte. Só não chegava a ser feito rês, em razão da inutilidade para a venda da carne nos açougues. As minhas mãos tremem quando escrevo ‘rês’, carne sangrenta para o mercado público. Mas há que seguir.
Nós não podíamos imaginar. Primeiro, porque não fomos ao necrotério, segundo porque não víamos, e se alcançasse a vista negaceávamos, num movimento de boi puxado pela corda no abatedouro. Era ver e olhar para o outro lado, até voltar os olhos para o que não queríamos: Soledad e seu horror. Mais grave, tão egoístas éramos, Soledad e nosso horror. Não queríamos ver. No entanto, nos sentimos agora como oncologistas do tempo, olhando as imagens 45 anos depois: havia ramificações de câncer ao lado e em torno do foco ampliado. Havia traições ao redor de Soledad, graves e tão indignas quanto a sua destruição. Delas, a mais evidente era o Cabo Anselmo, a quem conhecíamos pelo nome de guerra Daniel. Sabíamos, melhor, suspeitávamos de uma infiltração, mas nada ainda que descobrisse a identidade do Cabo Anselmo, que a imprensa exagerava como o líder da Revolta dos Marinheiros em 1964. Um quadro assim não tínhamos. A nossa capacidade de imaginar não descia a tanto. Soledad era a mulher de quem eu havia furtado um beijo. Corrijo, a mulher guerreira, a suave flor em que tentei pousar os lábios. A mulher que em legítimo platonismo amei. Amo. Ela estava na foto como terrorista, sobre quem silenciei a verdade e o caráter no ambiente do trabalho. Isso era o que tínhamos. O que viemos a saber, nos mais recentes dias, tem sido uma longa revelação. Seria como uma novela, um thriller fatal de nos suspender a respiração, ainda que os capítulos tenham se passado há mais de 45 anos. Isto é, nas linhas seguintes.
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Soledad está na sua casa em Olinda. Ela se veste com moda particular, linda, com um desapego que vai na mesma medida do mundo pelo qual luta. É uma casa, uma galeria, uma butique durante o dia e escritório à noite. Ali, na Sigismundo Gonçalves, ela se veste com túnicas longas, largas, que não lhe revelam as coxas marcadas com suástica a navalha. Roupas que não lhe deixam tampouco mostrar o grão a germinar da futura dor no ventre. Por Deus, como é bela. Alta, digna e tão desejada por todos, por mim, silencioso amante. Ela se ergue no centro da sala, e no seu semblante não existe maldade, ou a perversão aprendida nas relações brutais da realidade política. Os seus olhos, que ora se veem claros, ora se veem castanhos, mas sempre radiantes, se abrem. Na avenida em frente, caras e fuscas passam. Soledad é atingida pela tristeza, uma tristeza sem razão definida ou evidente, tristeza como adivinhação, naqueles prenúncios que assaltam a mulher na gravidez ou um dia antes de casar. Dá-lhe uma vontade de chorar que ela afasta com gentil movimento de mão. “Eu sou uma guerrilheira. Eu sou uma militante da nova América. Por que ficar triste? Eu devo transmitir ânimo, fortalecimento. Arriba!”. Ali, na butique Mafalda, ela recebe um amigo de Daniel, o seu amado Anselmo. (Isto me dói, esta frase ‘seu amado Anselmo’ por mais de um motivo). Ele é um pintor de Olinda. Então Anselmo fala à companheira:
– Sol, eu vou sair.
– Certo – ela responde. – Eu gostaria de ir também.
Daniel ou Anselmo lhe responde:
– É uma conversa de negócios, de homem nordestino, entendes?
E sorri para ela, com uma piscada maliciosa. Isso quer dizer ‘homens nordestinos, esses maricones’, ou então ‘se vens comigo, os machos nordestinos não se concentram no que falo’. Soledad entende, está acostumada a essas piscadelas maliciosas. Anselmo/Daniel sempre terá essa relação com ela, que Soledad julga exclusiva, de cumplicidade com o que ele fala e do que pretende dizer. Assim ela o compreende quando ele se põe a discorrer sobre artes, artesanatos, e ele pisca um olho para ela, que sabe: o amado está a disfarçar o caráter de revolucionário clandestino. Soledad o compreende também quando uma pessoa lhe vem falar de possíveis suspeitas sobre ele, porque assim agem por covardia, inveja, calúnia, jogo baixo de falsos comunistas que desejam a cabeça do homem especial que ela quer, um homem de características meio femininas – mas onde há os cem por cento machos ou cem por cento fêmeas, onde há esse impossível da ciência? Ele assim está bem e está bom, porque Soledad, a neta de Rafael Barrett, é uma revolucionária total, da política à cama e aos costumes. Pero a nossa brava e incauta mulher não sabe, logo ela, tão provada em sete países, do Paraguai ao Brasil passando pela Argentina, Chile, Uruguai, Cuba e Rússia. A nossa incauta guerrilheira não adivinha, naquela cegueira típica dos militantes para quem o mundo se reserva no ideal, no altar de Marx, Engels e Lênin, a nossa pura guerrilheira não adivinha que Anselmo/Daniel adota jogos duplos ou triplos com todos. Ou seja, ele é um animal que sobrevive com a cor do ambiente e da conveniência. Sabe mentir e fazer de idiota as pessoas com quem vive, nele isso é um sistema organizado. Então ele a faz de bola, de joguete, quando a chama para cúmplice na fala diante do pintor:
– Coisa de homem, Sol.
E lhe dá uma piscadela, um sinal de olho oblíquo que aponta para o pintor: ‘este ao meu lado é um macho típico, entendes?’. Mas se fores comigo, amor, o teu encanto irá destruir a atenção para minhas palavras. É mais um falsa explicação, ele afasta Soledad do lugar para onde vai esta noite, ao mesmo tempo – este é o caráter do camaleão, mentir com a pele que se transforma conforme a mudança do meio —, ao mesmo tempo que mente, na sua insinuação há um mote da verdade. A saber, ele usa Soledad para legitimar o seu papel na esquerda, ele usa Soledad para encontros onde quer mostrar um casal comprometido na luta, usa a beleza de Soledad para legitimar os abusos, as impropriedades teóricas que ele recita entre militantes. Isto é, as palavras de Daniel/Anselmo, mesmo para o nível de um homem de esquerda de cultura mediana, são desprovidas de substância. O crédito arrancado para elas vem dos militantes que já perderam a noção do real, ou que admiram a verdade da sua companheira. Se ele está com ela, deve ser um homem da revolução. E a favor da própria farsa, ele insinua a origem ilustre, intelectual e socialista de Soledad, o que vale dizer, olhem para a minha secretária e respondam: quem pode ser o empregador?
Mas Soledad não o percebe, apesar de a invadir uma tristeza adivinhatória, que suspende por momentos quando ele lhe pisca um olho: ‘negócio de homens, entendes?’. E responde a ele com um sorriso contido. Então ela lhe abre os braços para abraçar o companheiro querido — por Deus, o quanto ela é calorosa! Por Deus, que calor guarda em suas coxas, por Deus, se pudéssemos voltar no tempo e restaurar os fatos conforme a justiça, ah se pudéssemos ir além do grito agora, ah se fôssemos o povo que grita para denunciar o vilão no palco: cuidado! Mas não, assistimos ao pesadelo com a inteligência inútil, aquela que não muda mais o que se foi. Soledad abre os braços para deixá-los a par com o coração, e a esse amor Anselmo escarra. Para o inferno, por Deus, esta é uma prova da Tua crueldade, faze-nos voltar impotentes até o mundo que seria e não foi. Então Soledad lhe abre os lindos braços, as esperançosas mãos, os frágeis e finos dedos, e seu corpo se abre para o amor que não vem, mas ela por imaginação do querer pensa que virá, então ela abre o seu corpo para o amado. Ele vem e envolve a sua doce delicadeza com as escoladas mãos. Na sala, Anselmo está de frente para o amigo pintor, e Soledad de costas para a visita. Então Anselmo abraça a solidão de Soledad. Mas com o queixo sobre o ombro da companheira, sem que ela o note, ele lhe faz caretas, dá-lhe a língua, pisca o olho para o companheiro que o espera. Soledad não pode imaginar os trejeitos que sobre ela Anselmo arma e arranja. Mas o pintor vê o ato e se espanta com a maldade e representação do ator.
É incrível o espetáculo diante dos olhos ali na sala. Anselmo desce as mãos pelas costas de Soledad, aperta-a nos ombros, enquanto lhe faz caretas e zomba com a língua estendida. É claro, o pintor não sabe, Anselmo está em um dos seus papeis. Um dos, a saber, afetuoso companheiro, insultador da ingênua companheira, da idiota, do repulsivo carinho que ela lhe dá, tão desamparada, para a sua maior desgraça. O segundo ato, antes do terceiro, ele revelará assim que ultrapassar a porta. Soledad jamais adivinharia, pior, jamais poderia adivinhar o negócio de homem que Anselmo fala, mais uma vez falando a verdade em parte, ou a verdade dividida, meia. Como poderia ela saber? Anselmo a beija com os olhos úmidos, que ela acredita serem de ternura e emoção, mas que se revelam apenas uma expressão de comicidade, de piada, de efeito do riso que ela lhe dá, irresistível a ponto de ele trincar os lábios para não romper numa gargalhada, tão boba, tão besta é a coisa revolucionária. Sem nada saber, ela é objeto de uma farsa escrita às suas costas, nos relatórios que ele presta ao heroico e fodão Fleury. Soledad é uma palhaça de circo sem disso ter a consciência, assim, tão bonita e lacrimosa, tão infantil em corpo de mulher grande, isso é uma comédia, que personagem de esquete maravilhosa, mas ali, metida em suas roupas largas, kafta, bordados pijamas, metida e montada em ser o que não pode, um Molière com Shakespeare, então ele, o ser artístico, o artista, que sabe o enredo, que move o destino por cordas como um ator de bonecos, então ele tem os olhos úmidos de alegria pelo que virá logo mais, úmidos também do quadro cômico que é a mulher amorosa sem amor, e sorri fino para não gargalhar forte. O coração de Anselmo compreende as mulheres, mas é uma compreensão sem grandeza, sem empatia ou generosidade, ele as compreende pelo que elas têm de carência, mas não como um homem que se curva e abraça aquela carência com a própria carência. Ele as compreende pela lógica fria, que as vê pequenas, ridículas, ele as trata e maltrata utilizando-se de outros. Ele sabe o que elas gostam de falar, ele sabe o que lhes falar, ou seja, ele é o cara mais inteligente que existe para enlaçá-las e sorrir delas.
E Soledad é sua obra magna. Quanto mais a desejamos, quanto mais a cantamos e decantamos, mais ele é por Deus abençoado. É um elogio da perversão, torto, que lhe fazemos. Buscamos quem ele desconsidera. ‘Olhem só que mulher’, ele nos diz e aponta por gestos e insinuações. ‘Olhem só que mulherão. Mirem de onde ela veio. Que preciosa, concordam? Pois eu não a quero’. E lá dentro de si ele carrega como uma dor, um caroço, em que ela é uma derivação, uma solução vicária, que ele transporta como uma qualidade. Ele, que tantas vezes foi ridicularizado como um sujeito fraco, sem coragem, tem nela o seu magnífico troféu. ‘Vocês me respeitem agora. Olhem só do que sou capaz’. E diante da testemunha ele a beija e lhe estende a língua depois pelas costas. Este é um quadro que o pintor não pintara, por falta de condições pessoais. ‘Como, se sou parte da farsa também? Mas é inacreditável o que estou vendo’. Ele já viu e conhece maridos que desprezam a mulher de modo claro. Ele já viu maridos que se dividem para esposa e amante, mas assim, beijá-la em público e zombar desse beijo ao mesmo tempo, nunca. ‘Como eu poderia pintá-lo? Falta-me o talento’.
Mas não era falta de talento, penso hoje. Era uma impossibilidade da arte da pintura. Como resgatar por imagem na tela um quadro que se desenvolve em amor aberto, generoso da mulher, e o traidor que a beija e insulta no mesmo instante? Como ver a mulher grande, que escreve poemas e atira por acreditar em um novo mundo, misturada ao falso que lhe toca e cospe, num só quadro de dois personagens ali na sala? Não há decomposição múltipla que a enquadre. Talvez fosse possível se a pintasse com legendas embaixo da imagem, não de uma só linha, mas legendas multiplicadas num crescendo, ou seja, o quadro seria possível com a penetração das palavras, na compreensão que se faz no verbo. Como uma estrela cuja luz se vê muito depois. Quem sabe? Talvez em uma ampliação da velocidade, 45 anos depois do trauma, no presente renovado dessa tragédia. Para Anselmo, apenas farsa e comédia, outro gênero teatral. Se há pouca luz da noite que desce sobre Olinda, se a sala é pouco iluminada em ambiente de Rembrandt, ainda assim não se faz um quadro. Ele a toca com os lábios, ele é beijado em resposta, e ofende a pessoa que o beija em um só movimento. À semelhança de um pênis que em vez de sêmen expulsasse pus. Mas Soledad, tão sincera, não alcança a verdade daquele sentimento.
Contra todas as evidências, boatos, murmúrios, ela acredita no companheiro, a quem julga precioso, cúmplice, camarada, amante. E um militante aguerrido. Aquele homem não seria a própria criação evangélica do Daniel na cova dos leões? Então ela seria também uma leoa, ou com ele será até a cova. O que hoje entendemos como uma amarga ironia, em 1972 era uma vaga intuição. Se a morte era uma possibilidade na luta, a cova, os leões eram entrevistos. Mas ainda ali, o fim se esperava em combate, onde se mata e se morre. Não seria uma morte presa, amarrada, nua, em longo sofrimento com a dor crescida pelo esgotamento das forças da guerreira. Morrer era próprio de agentes, não de pacientes, que sofrem a ação em distendida agonia. Morte zombada. Isso não era visto, ainda que possível. Como podia uma guerrilheira de campo aberto se imaginar destruída entre insultos na barbárie? Então Soledad não vê, nem pode ver a zombaria no beijo de Anselmo, porque seria a totalidade do absurdo, a irrupção do irracional no reino do seu sentimento. O coração da gente dirige os olhos, imagina ver o procurado, vela e oculta o que não quer. Soledad não via o que estava tão abaixo dela, do próprio ser. Não fazemos o mundo à nossa imagem e semelhança? Então ela não o percebia, e o mais grave que virá no começo de janeiro, quando será entregue pelo amado à morte infame. O fim que destrói o corpo e a alma, na morte idealizada pela repressão, Soledad não via”.
#EleNão. De Soledad Barrett para o 29 de setembro e todos os dias.