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ToggleÀs vésperas da eleição, a historiadora Dulce Pandolfi avalia que o país vive um momento dramático, sem paralelos. Para ela, a possibilidade de Jair Bolsonaro ser eleito presidente é, de certa maneira, algo mais grave que o golpe de 1964, do qual ela própria foi vítima. Na sua avaliação, o candidato do PSL levará o país à barbárie, com um projeto fascista e entreguista, legitimado pelas urnas. Para barrar esse desenlace, a mídia precisa “quebrar as asas do monstro que ela mesma criou”, defende.
Dulce conversou por telefone com o Portal Vermelho, nesta segunda (22), um dia depois de Bolsonaro fazer ameaças a seus opositores, aos movimentos sociais e à imprensa. Em discurso que foi transmitido por telefone direto para um ato em favor de sua candidatura na avenida Paulista, ele disse que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o seu adversário na eleição, Fernando Haddad (PT), “apodrecerão na cadeia”.
“A faxina agora será muito mais ampla. Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou para a cadeia. Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”, disse. Bolsonaro ainda chamou integrantes do MST e do MTST de “bandidos” e informou que as ações das entidades “serão tipificadas como terrorismo”.
De acordo com Dulce, o vídeo em questão deixa claro quem é Bolsonaro. “É um retrato da postura que ele teve ao longo de sua vida. Ele ameaça claramente a Folha de S. Paulo e todos os oposicionistas. Então, se alguém tinha alguma dúvida de que a gente estava diante de um candidato com posturas fascistas, nazistas, de quem não admite o convívio com o diferente, esse discurso não deixa dúvidas”, avalia.
Portal Vermelho
"Diante do momento atual, personalidades e instituições com compromisso com a democracia precisam adotar posturas públicas contra Bolsonaro"
Fascista, entreguista e legitimado
A historiadora, que vivenciou os horrores do regime militar implantado em 1964, crê que o cenário atual não pode ser comparado a nenhum outro na trajetória brasileira. ”A situação agora é muito mais dramática. Comparam com Collor, com o golpe, mas hoje é muito mais grave. Estamos diante de uma pessoa que vai ser eleita pelo voto popular, essa que é a verdade. E é uma pessoa sem escrúpulos, com posturas vinculadas a um ideário do fascismo e do nazismo. É gravíssimo”, lamenta.
Ela ressalta ainda a falta de compromisso de Bolsonaro com o país. “É o que tem de pior, é até mais grave que o golpe de 1964, porque naquele momento os militares tinham um projeto, por exemplo, nacionalista, e nem isso tem agora. É um projeto entreguista, de vender todas as estatais. Então, nesse sentido, é muito mais complexo. É a desconstrução de tudo que foi construído a duras penas ao longo do tempo nesse país”, alerta.
Segundo a historiadora, não se trata de eleger alguém de esquerda ou de direita. “Isso não tem nada a ver. A alternância de poder é fundamental. Mas têm coisas que passam da linha da civilização. E esse candidato passa. Não é à toa que a Marine Le Pen, na França, que é de direita, conservadora, está estarrecida com Bolsonaro. Por que aqui essa elite não fica estarrecida? Não se pode admitir isso, gente”, diz.
“Nem os torturadores defendiam a tortura”
Dulce, que comoveu o país, em 2013, ao conceder um duro depoimento à Comissão Estadual da Verdade do Rio sobre as torturas que sofreu durante a ditadura, ressaltou o absurdo de um candidato defender abertamente a prática de tortura.
“Nenhuma pessoa pode admitir publicamente a tortura. Nem os torturadores defendiam a tortura, eles negavam a tortura. A tortura é algo tão abominável, que não só os presidentes da República que torturaram, como os próprios torturadores, nunca fizeram apologia da tortura. Quando interrogados, diziam que não existia isso no Brasil, que algumas pessoas cometeram excessos. Então como um sujeito que vai dirigir a nação faz apologia à tortura e ao torturador mais execrável deste país?”, questiona, referindo-se Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador reverenciado por Bolsonaro.
Na sua opinião, por mais ódio que as pessoas tenham ao PT, não é possível qualquer conciliação com o candidato do PSL. “Chegou-se ao limite. E mais estarrecedor ainda é que setores da mídia e pessoas que têm um mínimo de sentimento democrático não estejam revoltados, não venham a público tomar uma posição”, observa.
É preciso descer do muro
Ela defende que, diante do momento atual, personalidades e instituições “com compromisso com a democracia e a vida” precisam adotar posturas públicas contra a candidatura de Bolsonaro. “Chegou a hora de um clamor nacional de setores que até agora ficaram encolhidos, com posições tipo ‘não vou apoiar Haddad, porque não gosto do PT. Não se trata mais disso. A gente está numa encruzilhada, à beira de uma situação de barbárie total”, afirma.
Dulce considera “inadmissível”, que lideranças como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso não assumam um lado. “E mesmo essa mídia. Não dá mais para não se posicionar”, crítica. Segundo ela, no passado, dizia-se que o candidato do PSL não iria romper com a Constituição, mas o vídeo deste domingo escancara seu viés autoritário e de desrespeito à democracia.
“A postura dele em relação as oposições… ele não pode dizer que vai mandar prender. Quem é ele? O que ele pensa ao chamar o pessoal todo de petralhada, de vagabundo? Ele extrapolou todos os limites. Chegou aquela hora em que a nação precisa se soerguer e gritar forte 'não a esse fascista'. Eu não consigo entender quem ainda está conciliando com esse homem”, condena.
Questionada sobre o comportamento do Judiciário nesta campanha, ela é cautelosa. “Não sei o que é legal nesse momento, o que pode ser feito, mas, no mínimo, poderia haver um apelo às pessoas. É o mínimo de dignidade que se pode ter. Quem tem responsabilidade com esse país não pode permitir essas coisas”.
A mídia – ou como chegamos até aqui
De acordo com Dulce, Bolsonaro – que está à frente nas pesquisas de intenção de voto – conquistou a adesão da população por um conjunto de fatores. Um deles é a ofensiva das elites e da mídia contra os governos do PT e a esquerda.
“Só que a alternativa não era Bolsonaro. Eles não queriam mais o PT, achavam que era possível um candidato de centro, mas, nesse processo, a candidatura do centro foi pelo ralo. Houve diversas tentativas, desde Luciano Huck, Joaquim Barbosa, Geraldo Alckmin, João Amoêdo. Nada deu certo, e as pessoas achavam que Bolsonaro tinha um papel a cumprir, mas que não cresceria tanto, que ele tinha um limite de 20% dos votos. Mas saiu do controle total”, resume.
Segundo a historiadora, a mídia passou anos “martelando” a ideia de que o PT era uma quadrilha, o que afastou o eleitorado da sigla. “Isso é uma coisa muito forte e, obviamente, isso teve um impacto enorme numa parcela da população, porque como você vai votar numa pessoa ligada a uma quadrilha? Essa desconstrução que fizeram em relação sobretudo ao PT produziu também a construção do Bolsonaro, que é alternativa, o anti-PT”, observa.
Na sua avaliação, a situação piorou muito no governo Michel Temer, com aumento do desemprego e o país mergulhado na insegurança. “Nesse quadro de caos completo, chegou uma pessoa se dizendo novata na política – embora esteja aí há vinte e tantos anos e com toda a família na política – e com um discurso contra o sistema, de soluções práticas e imediatas, diante de um Estado que não se faz presente para resolver as questões”, afirma.
Dulce sublinha que o discurso do candidato, por exemplo, na área da segurança, encontra guarida entre a população brasileira, diante do quadro de desrespeito aos direitos. “As pessoas não acreditam na Justiça, então uma parcela importante já falava em fazer Justiça com as próprias mãos. Da mesma maneira como bandido bom é bandido morto, para uma parcela da população. Porque, diante da escassez de direitos, a precariedade é tão grande, que como é que eu vou dividir meus direitos com bandidos?”, indaga.
Nesse ambiente complexo, ela lamenta que, quando o país começava a avançar na garantia de alguns direitos sociais durante os governos do PT, tenha havido “esse massacre” midiático.
“Hoje, há uma população que está votando por um desespero, por um trabalho que foi feito da própria mídia, que pariu esse monstro. E eu sei que aí fica difícil ela agora ter que desconstruir esse monstro, mas ela tem tempo para, pelo menos, quebrar um pouco as asas desse monstro”, coloca.
Indignação contra uma campanha suja
A historiadora afirma que a população está “entorpecida” pelo discurso contra o PT. Além disso, ela aponta que a campanha tem sido “suja” e “violenta”, repleta de inverdades. “Vi várias pessoas com os celulares abarrotados de fake news, vi alguns materiais como se Lula estivesse pedindo voto para Bolsonaro. E as pessoas acreditam. É uma campanha sórdida”, constata.
Dulce destaca que é necessário ir às ruas disputar voto a voto, mas crê que isto seja insuficiente para virar o resultado das urnas. “É preciso um fato muito forte. Por exemplo, se tiver o Jornal Nacional desconstruindo durante cinco dias a imagem desse homem, pode ser que alguma coisa cole. Tem que ter algo muito forte. Seria fundamental. Se houver indignação de segmentos religiosos, setores políticos e sobretudo da mídia, acho que é possível reverter esse quadro. Do contrário, fica difícil, porque a coisa está muito cristalizada”, conclui.
Por Joana Rozowykwiat, do Portal Vermelho