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Ativistas, operários e sindicalistas relatam como o AI5 afetou periferias de São Paulo

Assinado pelo marechal Arthur da Costa e Silva, decreto deu início ao período mais violento da ditadura militar, iniciado no golpe de Estado de 1964
Kátia Flora
Agência Mural de Jornalismo das Periferias

Tradução:

O AI-5 (Ato Institucional Número 5) completou 50 anos nesta quinta-feira (13). Assinado pelo marechal Arthur da Costa e Silva, o decreto deu início ao período mais violento da ditadura militar, iniciado no golpe de estado de 1964. 

Nas periferias de São Paulo, a repressão também foi sentida. Grupos de ativistas, sindicalistas e operários, que viviam nas bordas da cidade, tiveram problemas para manter as atividades profissionais e muitos tiveram de deixar o estado. A Agência Mural conversou com alguns desses moradores que relembram o período.

Assinado pelo marechal Arthur da Costa e Silva, decreto deu início ao período mais violento da ditadura militar, iniciado no golpe de Estado de 1964

Memorial da Resistência
Polícia reprime estudantes em São Paulo

Campo Limpo e a União de Mulheres

A aposentada Neide de Fátima Martins Abati, 80, teve o irmão preso aos 18 anos. Ela morou na década de 1970 no bairro Ferreira, zona oeste de São Paulo, antes de ir para o Campo Limpo, onde reside há 40 anos, na zona sul.

O irmão dela era estudante e trabalhava como metalúrgico. Ficou mais de uma semana na cadeia, por ter ajudado um colega a levar um mimeógrafo, que preparava panfletos contra a exploração de riquezas naturais do Brasil. “Ele foi barbaramente torturado, levaram para a rua Teodoro Sampaio e ninguém socorreu depois dele apanhar”, conta. Ela afirma que ele ainda tem sequelas do período. 

Após a prisão, a família precisou escondê-lo na casa de parentes. Neide fazia parte de um grupo de jovens ativistas da comunidade.

Discutiam política, sexualidade e democracia, mas eram vigiados pela polícia. Ela trabalhou como técnica de enfermagem numa clínica em Santo Amaro, na zona sul, que não existe mais e ajudou a fazer o parto da amiga Macileia Rocha, mãe do deputado federal eleito Alexandre Padilha (PT).

Neide Abati segura o quadro que recebeu da Comissão dos Direitos Humanos (Divulgação)

Neide conta que sua casa era vigiada e, para evitar que os amigos fossem visitá-la, colocava um pano na janela. “Nós não tínhamos sossego, porque vivíamos sendo coagidos por ter ideias revolucionárias. Não existia liberdade para nada”, afirma.

Na década de 1970, ela participou da criação do Clube das Mães, da igreja católica na periferia da zona sul de São Paulo, juntamente com o Movimento do Custo de Vida (MCV), também conhecido como Movimento Contra a Carestia, no combate à pobreza, a luta por transportes públicos, saúde e melhores condições de vida. 

Os militantes faziam assembleias, reuniões nas igrejas e conseguiram reunir mais de 20 mil pessoas em um ato realizado na Praça da Sé.

Neide fez parte desses movimentos e, em 1987, fundou a Associação Casa União Popular pelas Mulheres, no Campo Limpo. Para a aposentada, a ditadura foi um filme triste. “Espero que não volte, quero ver o povo com trabalho digno”, diz.

Anna Martins fugiu para o sertão da Bahia, durante o AI5 (Divulgação)

Fuga para Bahia

Anna Maria Martins Soares, 78, é assistente social formada em 1968 pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Ela é irmã de Neide Abati e trabalhou em fábricas metalúrgicas. Os operários viviam desconfiados que poderia haver espiões infiltrados, e na década de 1970, ela e o marido tiveram que fugir para o sertão da Bahia. Ficou por três anos foragida. 

“Foi muito difícil viver nos bairros, no trabalho, nas igrejas em todo canto. A imprensa não informava nada, nem rádio, nem TV, nem jornais. Chegamos a fazer parte de uma comissão de cinco pessoas que faziam um Boletim “Ação Urgente”, o panfleto rodado em mimeógrafos a álcool, foi apreendido pela repressão”, relembra.

Segundo ela, quando surgiu o AI-5, amigos e colegas de trabalho foram presos e torturados e esses acontecimentos não tinham divulgação. A informação vinha pelas organizações políticas que participavam, como Ação Popular Marxista Leninista. 

Em 1974, ela e o marido colocaram uma pulseirinha na filha com a inscrição: “Quem encontrar abra e leve essa criança para essa pessoa nesse endereço, era minha irmã”, pois temia ser presa.

A partir de 1979, ela participou de um grupo que lutava pela anistia e atuou também no Movimento de Favelas pela legalização da água e luz e na Luta Pela Posse da Terra, nas periferias de São Paulo.

Eliana Fanasca parou de estudar no período ditatorial (Giacomo Vicenzo/Agência Mural)

Desconfiança na Zona Leste

A agente administrativa Eliana Fanasca, 63, nos tempos da ditadura, morava na Vila Esperança, distrito da Penha, zona leste de São Paulo. O pai dela era operário e recebia em casa, de madrugada, um jornal produzido por movimentos de esquerda.

Ser de uma família operária causava tratamento diferente, ela afirma. O irmão de Eliana era balconista de uma farmácia, sofreu um assalto e ficou desaparecido por algumas horas.

A família procurou a delegacia para prestar queixa do sumiço. Após ser liberado, eles retornaram à delegacia para retirar o boletim de ocorrência, mas foram ameaçados por policiais que suspeitavam do rapaz e disseram que o cadastrariam no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).

Além disso, Eliana não teve outras oportunidades. “Tive que largar os estudos para trabalhar como costureira, para ajudar na renda de casa, naquela época era muito opressivo”, relembra Fanasca.

Ela voltou a estudar depois dos 20 anos e concluiu o ensino médio.

Derly mora em São Bernardo e ficou 10 anos exilado (Divulgação)

Classe operária

Com a ditadura, o Sindicato dos Metalúrgicos no ABC passou por intervenções. Alguns membros da diretoria foram cassados, outros presos. O metalúrgico Derly José de Carvalho, 79, fez parte da primeira diretoria cassada e ainda perdeu o emprego na Scania.

Carvalho morou no bairro Vila Euclides, em São Bernardo do Campo.  Na época com 24 anos, casado e pai de três filhos, teve que abandonar a casa. “Todos os sindicalistas tinham que se esconder para não ser capturados pela polícia e ainda eram fichados no Departamento de Ordem Política e Social”, relata.

Ele, os irmãos e outros militantes chegaram a ser presos e banidos do Brasil para o Chile em 1968. Depois foi para a Argentina, após o golpe militar no Chile em 1971, quando um dos irmão dele, Devanir, foi morto. Outros ativistas desapareceram.  

Ficou exilado por quase 10 anos. Para ele, que não pôde ver o crescimento dos filhos durante a ditadura, as recordações que o acompanham de toda esta época, são a dedicação, a garra, a coragem e a luta.

“O AI- 5 foi criado para dar poder absoluto aos militares para combater a classe média e o movimento operário que estava se levantando exigindo liberdades políticas e sociais”.

A psicanalista Maria Beatriz Vannuchi, 59, membro do Instituto Sede Sapientiae, trabalhou num projeto com iniciativa da Comissão da Anistia, para as vítimas e testemunhas da ditadura. O programa, que era mantido pelo governo federal, foi encerrado ano passado. “As vítimas passaram por experiência traumáticas, isso define a uma catástrofe social que quebra a confiança do sujeito de que o Estado estaria ali para fazer o laço social e não perseguidor.”

Os núcleos desenvolviam um modo de atender particular e intergeracional, como filhos e netos dos afetados. “O AI-5 representou uma catástrofe na vida das pessoas com o processo de perseguição”, comenta.

O que foi o AI-5

Para o historiador e diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, Rogério Sottili, 59, o Ato Institucional número 5 (AI-5) foi um dispositivo jurídico-político com intenção de conter o avanço das forças políticas progressistas.

Segundo Sottili, o AI-5 inaugurou o que muitos analistas denominaram de “golpe dentro do Golpe”, isto é, uma radicalização autoritária dentro do próprio sistema, instituído na passagem de março para abril de 1964. Essa radicalização implicava a ruptura com a linha considerada mais moderada do regime, iniciada pelo general Castelo Branco.

O período de 1964 a 1985 caracterizou-se pela falta de democracia, supressão de direitos constitucionais, censura, perseguição política e repressão aos que não aceitavam o regime militar. “Foi um tempo de muito terror, de violência generalizada, de corrupção”, cita.

Destaca também que a ditadura nas periferias reprimiu fortemente o movimento operário; sindicatos sofreram intervenção estatal, lideranças foram presas e torturadas, a imprensa operária e sindical proibida. 

Mas as greves de proporções históricas organizadas pelo movimento operário, a partir de 1978, com destaque para os metalúrgicos do ABC paulista, contribuíram significativamente para o crescimento das forças de oposição ao sistema e para a mudança do cenário político nacional.

Em 13 de outubro de 1978, no fim da ditadura, o governo Ernesto Geisel, promulgou a emenda constitucional nº 11, cujo artigo 3º revogou todos os atos institucionais e complementares que fossem contrários à Constituição Federal. A emenda constitucional entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 1979.

Sottili ainda afirma que os 50 anos do AI-5, é uma data emblemática que deve servir de reflexão para toda a sociedade. “Acho que nós, defensores da democracia, do Estado de Direito, da memória e da verdade sobre a nossa própria história defendermos nossas pautas, de discurso sobre o nosso passado”.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Kátia Flora

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