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Povos Indígenas do Brasil lutam contra e resistem a ideias genocidas de Bolsonaro

“Não nos renderemos às ameaças de nenhum governo autoritário, que desde seu início trata de destruir a política indigenista"
Mario Osava
IPS
Rio de Janeiro (RJ)

Tradução:

Resistência, essa é a consigna com que os indígenas do Brasil encerraram o Acampamento Terra Livre, um encontro na capital do país que se concentrou em protestar contra as ameaças aos seus direitos e reclamar a derrogação de medidas adversas que o governo de extrema direita já começou a aplicar. 

O presidente Jair Bolsonaro “se declarou um grande inimigo nosso desde a campanha eleitoral”, ao assegurar que não demarcaria “sequer um centímetro” de novas áreas indígenas, recordou Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. 

“Ademais de negar-nos os territórios, quer tirar-nos o direito à identidade, com um integracionismo que nega a diversidade”, agregou em diálogo com IPS desde Brasília a líder do movimento que organizou o Acampamento em que participaram, entre os dias 24 e 25 de abril, cerca de 4.000 indígenas provenientes de todo o país.

Guajajara referiu-se a declarações de Bolsonaro, no poder desde 1º de janeiro, nas quais sustentou que seu governo buscará “reintegrar os indígenas à sociedade, levando a eles condições para que possam se sentir brasileiros”.

“Somos todos iguais”, costuma arguir para defender a introdução da mineração, criação de gado e outras atividades econômicas nas terras indígenas, que a Constituição Brasileira condiciona à autorização prévia do parlamento e a consultas à comunidade afetada. 

Essa suposta “igualdade”, diluindo a identidade, anularia a necessidade de territórios indígenas, alvo da cobiça de agricultores, madeireiros, da mineração e outros negócios que, agrupados sobre o nome de “ruralistas”, constituem uma das grandes forças do governo de Bolsonaro. 

“Nós conquistamos, na Constituição de 1988, o reconhecimento do direito à diferença, aos nossos usos, costumes, línguas, crenças e tradições, e o direito originário às terras que tradicionalmente ocupamos”, diz o texto básico do XV Acampamento Terra Livre, que teve como lema: “Sangue Indígena – Nas veias a luta pela terra”. 

Esse reconhecimento foi um triunfo da resistência nos 519 anos de “golpes e mais golpes” da colonização, da monarquia, da república e da ditadura (1964-1985) cujas forças “invadiram nossos territórios, massacraram nossos povos, destruíram e se apossaram de nossas terras e riquezas”, destaca a declaração. 

O documento reflete os debates preparatórios deste ano do nevrálgico encontro, que se repete a cada mês de abril desde 2004. 

O encontro se produz no contexto de um governo que desde seu início trata de destruir a política indigenista que foi construída nas últimas décadas no Brasil, com o discurso presidencial de “integrar” os povos indígenas, afirmou Guajajara.

Mas, “não nos renderemos às ameaças de nenhum governo autoritário, sublinhou a líder indígenas e integrante do povo guajajara, situado no estado do Maranhão e do qual leva o sobrenome. 

“Não nos renderemos às ameaças de nenhum governo autoritário, que desde seu início trata de destruir a política indigenista"

Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Sonia Guajajara sobre Jair Bolsonaro: “Se declarou um grande inimigo nosso desde a campanha eleitoral”

O desmantelamento começou logo na posse de Bolsonaro, com a assinatura da Medida Provisória 870 (decreto presidencial com força de lei, mas pendente de aprovação parlamentar), que reestrutura os ministérios responsáveis pelas questões indígenas. 

Uma das mudanças foi transferir a Fundação Nacional do Índio (Funai), a instituição responsável pela política indigenista, do Ministério da Justiça para outro que passou a agrupar os temas de Mulher, Família e Direitos Humanos. 

Além disso, tirou dele a função de demarcar terras indígenas, atribuição que passou a ser do Ministério da Agricultura, especificamente do seu Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, que controla as questões de propriedade da terra. 

É evidente o conflito de interesses, já que se trata de um setor dominado pelos “ruralistas”, que encaram as terras indígenas como obstáculo à expansão de seus negócios. 

O Acampamento conseguiu um possível triunfo no objetivo de anular essas medidas, ao dialogar com líderes do Parlamento. 

Os presidentes do Senado, David Alcolumbre, e da Câmara de Deputados, Rodrigo Maia, prometeram aos indígenas apoiar o retorno da Funai ao Ministério da Justiça e a restituição de suas prerrogativas na demarcação. 

A Medida Provisória, parecida com um decreto-lei em outros países, tem vigência imediata, mas apenas por 60 dias, prazo que pode ser prorrogado para sua votação parlamentar. A M.P. 870, perde sua validade no dia 3 de junho se senadores e deputados não a aprovarem como lei permanente. 

Há juristas e promotores do Ministério Público que consideram inconstitucional submeter questões indígenas ao Ministério da Agricultura. 

Com esse argumento, o Partido Socialista Brasileiro requereu ao Supremo Tribunal Federal (STF) a suspensão da medida. Mas o magistrado Luiz Roberto Barroso não aceitou a solicitação, com o argumento de que estruturar os ministérios é competência do Poder Executivo. 

No entanto, em sua decisão salientou que o governo está “obrigado a promover as demarcações de terras indígenas”, através de um ou outro ministério, porque assim ordena a Constituição. 

Brasil tem 722 terras indígenas, sendo 486 já homologadas, ou seja, aquelas em que se completou sua legalização, e 117 em processo de demarcação, segundo o Instituto Socioambiental, organização não governamental que tem a mais ampla documentação sobre o tema. 

Além disso, há 119 áreas em processo de identificação, nas quais se reconhece ocupação indígena tradicional e por isso o uso por populações não autóctones é restringido. 

No país de quase 210 milhões de habitantes, há 305 povos originários com 274 línguas diferentes, segundo o último censo, de 2010, que situou a população indígenas em 817.963 pessoas, embora haja coincidência em que atualmente se aproxima pelo menos de um milhão. 

O Ministério da Saúde também tentou extinguir a Secretaria de Saúde Indígena, que presta assistência às comunidades originárias em todo o país. O projeto era de que essa tarefa seria dividida entre os órgãos de saúde básica e as prefeituras. Mas o ministro Luiz Enrique Mandetta teve que recuar diante dos protestos indígenas. 

Impedir outros retrocessos é o objetivo dos movimentos indígenas, já que parece irrealista conseguir avanços com Bolsonaro como inquilino do Palácio do Planalto. “Não esperamos nada desse governo”, admitiu Guajajara.

Uma grande ameaça é a do “marco temporal”, um conceito que só reconhece como terra indígena o que estava ocupada por essa população em 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição. 

Essa interpretação apresenta evidente discrepância com as expressões constitucionais “tradicionalmente ocupadas” e “direitos originários” para identificar áreas destinadas ao usufruto exclusivo dos povos originários. 

Mas é empregada por juízes que começam a anular demarcações já consolidadas, privilegiando invasões de terra anteriores a outubro de 1988, lamentou a IPS a indígena guarani Inayê Lopes.

Deu como exemplo o caso de uma fazenda, incorporada desde 1998 à reserva indígena Arroyo-Corá, no estado de Mato Grosso do Sul, devolvida em 22 de abril aos seus antigos proprietários pela sentença de um juiz. 

“Estão em risco outros territórios tradicionais, embora já estejam demarcados e homologados”, advertiu. 

O STF deverá dirimir essa questão quando julgar, antes de abril de 2020, uma disputa similar de uma área identificada como terra tradicional dos indígenas do povo xokleng, mas reclamada pelo Fundação Ambiental de Santa Catarina.

Há ameaças em toda parte

Grandes projetos, como uma linha de transmissão para integrar ao sistema elétrico nacional o estado de Roraima, na fronteira com a Venezuela, faz lembrar o massacre dos waimiri-atroari, executado pela ditadura militar (1964-1985), durante a construção de uma estrada e de uma central hidroelétrica na década de 1970.

Esse povo indígena de 3.000 pessoas em 1972 reduziu-se a 350 membros em 1983, segundo dados da Funai.

O risco de novos genocídios parece descartado diante da vigência da Constituição, mecanismos judiciais e resistências de indígenas e da sociedade em geral, mas são preocupantes as ideias de numerosos militares no governo, em boa parte nostálgicos da ditadura.

A cavalaria estadunidense foi eficiente ao dizimar os indígenas e eliminar “esse problema”, ao contrário das forças militares brasileiras, lamentou Bolsonaro um capitão retirado do Exército, em discurso como deputado em 1998. 

Edição: Estrella Gutiérrez

Tradução: Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Mario Osava

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