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Representante dos anistiados na Comissão da Anistia denuncia desmonte da instituição

Rita Sipahi entrega carta-renúncia à ministra Damares e conclama as entidades a lutarem para preservar a Justiça de transição e os direitos constitucionais
Redação Diálogos do Sul
Diálogos do Sul
São Paulo (SP)

Tradução:

A advogada, Conselheira Representante dos Anistiados e Anistiandos na Comissão de Anistia, Rita Sipahi, entregou sua carta-renúncia à ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. No documento, ela denuncia os significativos reveses que a justiça transicional — do período da ditadura militar para a democracia — vem sofrendo no governo de Jair Bolsonaro (PSL).

Sipahi denuncia a violação constitucional que vem sendo perpetrada pelo governo: “o relato que apresento indica que a atual gestão da Comissão de Anistia não se pauta pelos princípios constitucionais estabelecidos na Constituição Cidadã. Do mesmo modo, não reconhece os valores de transparência, de publicidade e todos os que compõem os direitos humanos como fundamento do Estado Democrático de Direito”. 

De acordo com a representante, a legitimidade da atual gestão da comissão “está comprometida e os fatos relatados demonstram que os rumos estabelecidos pelo atual Governo são contrários aos valores defendidos e às conquistas realizadas, que continuarão a ser defendidos pelas entidades de anistiados e anistiandos e seus familiares, bem como pelas mulheres e homens conscientes de seus direitos e dos direitos humanos”.  

Após a renúncia, o representante dos Anistiandos e Anistiados na Comissão de Anistia já nomeado pelo ministério é o advogado Victor Neiva. Desde os anos 1990, ele integra a equipe de advogados da Associação Brasileira de Anistiados Políticos (ABAP), entidade que teve participação protagônica na confecção da atual lei de Anistia. 

 Leia a íntegra da carta:

Rita Sipahi entrega carta-renúncia à ministra Damares e conclama as entidades a lutarem para preservar a Justiça de transição e os direitos constitucionais

Foto: Geraldo Magela/Agência Senado
Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves

A Sua Excelência a Senhora Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves

Senhora Ministra,

Na condição de Conselheira Representante dos Anistiados e Anistiandos, venho solicitar seja providenciado meu desligamento da Comissão de Anistia ora instalada nessa Pasta.

Com o objetivo de justificar minha decisão irrevogável, apresento algumas considerações que avalio importantes para o entendimento da questão dos anistiados políticos no Brasil. 

O processo de justiça transacional brasileira – anistia política – vem sofrendo significativos reveses por meio da desconstrução sistemática da Comissão de Anistia, criada como instrumento de memória, verdade e justiça.      

A justiça de transição é definida como um conjunto de abordagens, mecanismos – judiciais e não judiciais – e estratégias utilizados para enfrentar o legado de violência em massa do passado, atribuir responsabilidades, exigir a efetivação do direito à memória e à verdade e, ainda, fortalecer as instituições com valores democráticos para que as atrocidades não sejam repetidas.

Veja também:

O processo de transição no Brasil tem como um dos seus marcos a Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, conhecida como a Lei da Anistia que  logo em seu artigo 1º determina seja concedida anistia política “a todos quantos, no período compreendido ente 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes (…)”.

Referida lei foi editada sob forte crítica do principal movimento organizado em prol da anistia no país, os Comitês Brasileiros pela Anistia – CBAs e também de diversos juristas e pensadores pelo fato de anistiar torturadores e torturados ao mesmo tempo, o que teve por consequência a abertura de fissuras na sociedade brasileira, até hoje não recuperadas.

A partir de 2008, o escopo da reparação deixou de se restringir à dimensão econômica e se expandiu para as dimensões morais, marcadas pelo pedido oficial de desculpas do Estado brasileiro, de restituição de direitos e do reconhecimento do direito à resistência política contra atos autoritários. 

Além disso, passou a contar com políticas singulares de reparação coletiva, como as sessões itinerantes por meio das Caravanas de Anistia, o fomento às ações de memória, diversas publicações e encontros acadêmicos. Por fim, de modo inédito, implementou uma política pública de reparação psíquica. 

A partir desse momento, a memória coletiva e social passou a incorporar o processo transicional brasileiro. Finalmente, pode-se reconstruir parte da história com as múltiplas experiências silenciadas durante as últimas décadas. Centenas de pessoas narraram, pela primeira vez em suas vidas, as histórias de perseguição, resistência e violência de que foram alvo. Era a primeira vez que elas as tornavam públicas.

Até 2014, a Comissão contava com 75 mil casos individuais de narrativas de perseguições políticas, compondo o maior acervo em primeira pessoa sobre as perseguições políticas no Brasil. Milhares de ações de memória percorreram o país na forma de sessões solenes, homenagens, museus e monumentos. Houve investimento e fomento de ações culturais e educativas, produção audiovisual, fotográfica e teatral que passaram a compor grades educativas. 

Muitos Estados e Municípios — por meio de seus poderes executivos e legislativos — foram impulsionados a trabalhar na renomeação de ruas e logradouros públicos e, ao lado de universidades, retiraram homenagens a agentes que apoiaram a ditadura. Também nesse contexto, foi ainda desenhado o Memorial da Anistia Política para o Brasil – o primeiro espaço de memória sobre o tema, pensado e promovido pelo Estado brasileiro em nível federal, a partir dos trabalhos da Comissão.

Entretanto, no Governo do presidente Michel Temer foi nítida a restrição gradativa que a gestão ministerial da Comissão de Anistia dispensou a essas políticas, passando a analisar apenas as dimensões individual e material dos cerca de 15 mil pedidos de anistia pendentes de análise e que pouco têm sido apreciados. 

Da mesma forma, extinguiu as políticas de reparação coletiva, os projetos de memória e atenção psíquica e o pedido oficial de desculpas do Estado brasileiro. Ainda, enfraqueceu o acompanhamento e a participação da sociedade civil e vem retirando poderes decisórios do grupo de conselheiros, responsável pela grande maioria das decisões de mérito dos pedidos. 

E infelizmente o atual Governo – do presidente Jair Bolsonaro, e do qual Vossa Excelência faz parte – vem dando continuidade ao processo de desconstrução da Comissão de Anistia. 

Sua primeira ação nessa direção foi a decisão de transferir o processo administrativo desenvolvido pela Comissão de Anistia, assegurado pela Lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002, do Ministério da Justiça para essa Pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Referida transferência afetou de forma negativa as condições de funcionamento da Comissão de Anistia, estabelecidas desde o ano de 2007, que foram alteradas pelo desmonte da estrutura organizacional vigente, acarretando prejuízos à estabilidade e à realização dos procedimentos administrativos indispensáveis ao seu funcionamento.

Destaco alguns pontos que evidenciam a deliberada desconstrução da Comissão de Anistia, desde sua criação afirmada como atribuição do Ministério da Justiça:

1.    Não foi apresentada nenhuma justificativa do ponto de vista técnico ou jurídico como fundamento da decisão da transferência da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Tudo está a indicar que a racionalidade administrativa não foi considerada no processo de transferência, na medida em que a atual estrutura não acrescentou nada que favorecesse o processo de julgamento e finalização dos requerimentos pendentes. Pelo contrário, as condições de funcionamento se apresentam fragmentadas, os espaços destinados à realização das sessões e as condições de instalação da equipe administrativa não são conhecidos. O acervo de memória, da edição de livros está em depósitos situados em locais inadequados.

  2.    Ao pedido, feito pelas entidades de anistiados de esclarecimento sobre as razões da transferência e de retorno da Comissão de Anistia ao Ministério da Justiça não foi dada qualquer resposta.

3.    Desde a edição da Lei 10.559, de 2002, foi atribuída ao ministro da Justiça a responsabilidade funcional de ter sob sua autoridade a Comissão de Anistia. Na atual gestão, a continuidade dessa responsabilidade – que tem características específicas, inclusive culturais, fundamentadas na natureza e finalidades da Comissão – foi simplesmente descartada. 

4.    O processo em desenvolvimento da justiça transicional, que se pauta pela transdisciplinaridade, foi reconhecido e implementado por ministros da Justiça e de outras áreas da administração pública federal, comprometidos com a memória, verdade e justiça. O governo do presidente Michel Temer iniciou a extinção de todos os projetos de memória, verdade e justiça, que constituem o tripé estruturante da Justiça de Transição. Atualmente, para além dos prejuízos materiais e subjetivos, registra-se a desvalorização de livros, filmes e de todo o acervo produzido com o objetivo de registrar memórias que permitam a formação de uma consciência crítica da herança de violência do passado recente.

5.    A Comissão de Anistia, conforme a Portaria n° 1.707, de 30 de outubro de 2007, do Ministério da Justiça, tem por finalidade executar as atividades previstas no artigo 12 da Lei nº 10.559, de 2002: a) examinar os requerimentos de anistia política; e b) assessorar o Ministro do Estado em suas decisões.  Ao Conselho coube executar as responsabilidades atribuídas pela portaria referida, definindo-se, também, como órgão de assessoria, função reafirmada na nova redação do art. 12 da Lei nº 10.559, de 2002, dada pela Medida Provisória nº 870, de 2019. No entanto, durante a atual gestão, não há registro de que o Conselho tenha sido consultado sobre assuntos relativos à publicação de portarias de indeferimentos, ou outras situações relacionadas às suas responsabilidades. Não há informação sobre os critérios utilizados para o indeferimento dos processos, em sessões realizadas quando o Dr. Torquato Jardim ainda era o titular da pasta da Justiça.  

6.    Portanto, verifica-se que essa Pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, não estabeleceu com o Conselho de Anistia, colegiado fundamental para o cumprimento da anistia política, a interlocução necessária para a decisão sobre os processos e as questões dos anistiados e anistiandos políticos. Passados mais de quatro meses do novo Governo, a postura e atitudes dessa Pasta deixam evidente que o Conselho não está sendo devidamente valorizado, como demonstra o fato de até o momento não terem sido agendadas reuniões e audiências de julgamento.

7.    Em audiência pública realizada no último dia 3 de maio, iniciativa da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, destacaram-se pronunciamentos de representantes de entidades de anistiados/anistiandos, da OAB, deputados/as, advogados/as, quando foram solicitadas informações sobre a descontinuidade dos trabalhos da Comissão de Anistia, sobre as portarias publicadas (todas de indeferimento) e, ainda, sobre a nomeação de conselheiros, entre eles militares de carreira, com atuação contrária à concessão da reparação e à instauração da Comissão Nacional da Verdade. 

8.    Naquela audiência, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, através da Subprocuradora-Geral da República Déborah Duprat, informou que a Procuradoria Federal recomendaria à essa Pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos a revogação da portaria que nomeou militares entre os conselheiros da Comissão de Anistia e a anulação da indicação dos Conselheiros, cujos perfis não apresentam afinidade com as exigências que embasaram a nomeação dos conselheiros, ou seja, o compromisso com os direitos humanos.

9.     No dia 4 de abril, a Procuradoria Federal do Cidadão (PFDC) do Ministério Público Federal encaminhou à Vossa Excelência recomendação no sentido de que fosse revogada a Portaria n° 378/2019, que designou a nova composição da Comissão de Anistia. O objetivo é que sejam asseguradas a imparcialidade e a independência dos trabalhos. Até o momento as entidades de anistiados não têm conhecimento de qualquer resposta de Vossa Excelência à referida recomendação, o que evidencia a desatenção ao fato de que “a nomeação de Conselheiros deve recair sobre pessoas com competência em matéria de direitos humanos e com a neutralidade necessária para suas atribuições”. 

10.    Acrescento ao que foi estabelecido acima mais uma razão, fundamental para a compreensão sobre porque as nomeações representam uma grave violência simbólica e política contra todos(as) que foram atingidos pela violência institucional. As pessoas citadas na portaria n°378/2019 têm um vínculo com a história da repressão desencadeada em 1964, quando ocorreram crimes e atos de exceção, tipificados e reconhecidos pelo Estado Brasileiro, conforme o art. 8° do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Os seus currículos, apresentados para a designação ao exercício do “serviço público relevante”, definição dada pelo regimento como atributo à participação na Comissão, não se adequam aos critérios exigidos para o desempenho do dever público da concessão da anistia. Pelo contrário, suas concepções e práticas são identificadas às dos agentes da ditadura civil militar. Nestas circunstâncias, a presença do anistiando à sessão de avaliação do seu pedido, se configura, simbolicamente, como um retorno ao passado de violências: sequestros, prisões, desaparecimentos forçados, assassinatos, práticas que vivenciaram e suas famílias, que constam nos arquivos abertos e consultados para servirem de provas nos seus requerimentos. As sessões de avaliação são  públicas, o que nos permite compartilhar as dificuldades que sentem os anistiandos no dia do julgamento; o momento destinado à sua fala nem sempre acontece, a emoção provocada pela lembrança do passado  produz efeitos que, variam de pessoa para pessoa, mas que revelam sempre o quanto foram afetadas pela violência imposta. A iniciativa de nomear, como conselheiros, pessoas que não os consideram como resistentes e perseguidos(as) políticos(as), que não reconhecem as violências – agressões, intimidações, choques, torturas de todo tipo, inclusive diferenciadas quando a vítima era mulher – significa uma inversão da política de anistia, uma violação do direito conquistado. Os anistiandos, protagonistas desta história, devem ser respeitados; muitos enfrentam todos os dias as lembranças do tempo da ditadura; as marcas estão impressas em seus corpos e cérebros e são indeléveis.

11.    A representação dos anistiados e anistiandos na Comissão de Anistia foi implementada como uma forma de ampliar sua participação e possibilitar a comunicação necessária ao conhecimento de temas e informações no âmbito do trabalho institucional. Diferentemente de uma relação caracterizada por oposição, foi marcada por interesses de resolução de questões relativas ao andamento dos processos e suas especificidades. Para os anistiados/anistiandos e suas entidades, havia a expectativa de encaminhamento de suas demandas, de que as metas definidas fossem cumpridas pela Comissão, de uma interlocução permeada por uma finalidade comum, o cumprimento da política de Anistia Política. A representação se constituiu como parceria e acompanhamento, para a concretização das finalidades da Comissão de Anistia. A representação foi constituída para agir como parceira na concretização de uma política entendida como do Estado Democrático de Direito. E muito embora a representação tenha sido reconhecida pelo atual Governo, não tem tido a possibilidade de cumprir sua finalidade de mediadora entre o Conselho de Anistia e as entidades de anistiados.

O relato que apresento indica que a atual gestão da Comissão de Anistia não se pauta pelos princípios constitucionais estabelecidos na Constituição Cidadã. Do mesmo modo, não reconhece os valores de transparência, de publicidade e todos os que compõem os direitos humanos como fundamento do Estado Democrático de Direito. 

Sua legitimidade está comprometida e os fatos relatados demonstram que os rumos estabelecidos pelo atual Governo são contrários aos valores defendidos e às conquistas realizadas, que continuarão a ser defendidos pelas entidades de anistiados e anistiandos e seus familiares, bem como pelas mulheres e homens conscientes de seus direitos e dos direitos humanos.  

E, ainda, penso que a avaliação dos processos deva ser conduzida pela relação de alteridade humana, em especial “o outro” injustiçado, o que a torna eminentemente ética. O reconhecimento da perseguição exclusivamente política, definida por lei, é também o reconhecimento do direito legítimo de resistência aos atos de exceção cometidos pelo Estado. 

Colocar-se no lugar do “outro”, ouvir seu testemunho, reconhecer a violência praticada, não permitir que o esquecimento perpetue a injustiça do passado, ignorando suas consequências no presente, foram e devem ser os pressupostos para uma atuação consequente dos membros da Comissão de Anistia. Esta coerência foi, ao longo do tempo, a que pautou o coletivo da Comissão e com a qual me comprometi.

Agradeço a todos os Conselheiros e Conselheiras da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e a todos os servidores e servidoras públicas com quem tive o prazer de conviver durante o período que fiz parte da Comissão de Anistia, e gostaria de solicitar sua gentileza no sentido de encaminhar cópia desta carta ao Presidente da Comissão de Anistia, a todos os conselheiros e, ainda, aos servidores públicos envolvidos nos trabalhos da Comissão.

Por fim, aproveito para reafirmar que a) no Conselho, nossas diferenças foram sempre tratadas no contexto do que foi determinado pela Lei nº 10.559/02; b) que nossas relações de trabalho sempre foram de aprendizado e de satisfação; c) que  os testemunhos dos requerentes ouvidos durante as sessões sempre foram creditados como memória/verdade; e d) que as torturas a que muitos testemunhos referiram serão sempre lembradas como destruição da dignidade humana, crime de lesa humanidade, a ser abolido da nossa sociedade.  

É assim que, na condição de Conselheira Representante, apresento a Vossa Excelência o meu pedido irrevogável de afastamento da Comissão de Anistia.

São Paulo, 17 de maio de 2019.

Rita Maria de Miranda Sipahi

OAB/SP 125200


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Redação Diálogos do Sul

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