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"Pacote anticrime de Sergio Moro é pior do que pena de morte", diz Luiz Eduardo Soares

Antropólogo e ex-secretário nacional de Segurança é autor do livro “Elite da Tropa”, que inspirou o filme "Tropa de Elite"
Fausto Salvadori
Ponte Jornalismo
São Paulo (SP)

Tradução:

“Resposta: eu não sei”. O antropólogo Luiz Eduardo Soares tem mais de 20 livros publicados, já foi secretário nacional de Segurança Pública e coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro, entre outras funções, mas tem perguntas que ele não sabe responder — e calhou de ser a pergunta que eu mais queria fazer para ele nessa entrevista: como chegamos ao ponto de idolatrar torturadores e como sair dessa?.

Soares pode não saber como chegamos aqui, mas de algo não tem dúvida: a situação da segurança pública e dos direitos humanos no Brasil só vai piorar, já que o governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL) e os de seus aliados, como os governadores João Doria (PSDB), em São Paulo, e Wilson Witzel (PSL), no Rio, se limitam a intensificar as piores práticas das gestões anteriores, que só serviram para aumentar a violência, lotar as prisões e fortalecer as facções criminosas. Sobre o pacote anticrime do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, afirma que vai “é uma pena de morte instituída sem julgamento”.

Soares acaba de lançar o livro Desmilitarizar (Boitempo), em que reúne e atualiza textos escritos ao longo dos últimos anos que buscam não só diagnosticar o que deu tão errado na segurança pública do Brasil, mas também apontar soluções. Na obra, Soares coloca em debate a sua proposta de refundação das polícias, que deu origem à PEC (Proposta de Emenda Constitucional) 51, do senador Lindbergh Farias (PT/RJ), a qual prevê a desmilitarização das polícias, uma nova divisão de responsabilidades entre União, estados e municípios na segurança pública e uma carreira única que acabe com as separações entre delegados e investigadores (integrantes da Polícia Civil) e praças e oficiais (que formam a Polícia Militar). “De um lado nós somos críticos e temos de continuar a ser, mas de outro nós temos que apresentar um caminho à sociedade”, afirma.

Confira a entrevista:

Ponte Jornalismo – O senhor está lançando um livro que chama Desmilitarizar, num momento em que os militares nunca assumiram tanto protagonismo na vida nacional. Foi intencional?

Luiz Eduardo Soares – Foi intencional, ainda que o livro estivesse sendo gestado há muitos anos. Quando a gente se aproxima do desfecho de 2018, eu tive a convicção de que era inadiável a publicação, justamente no contramão da agenda que o Brasil reinaugurava, cheia de teias de aranha, mofo e fantasmas. Acho que é o momento certo no sentido de ter um contraponto ao que se está fazendo predominantemente.

O Ministério Público e a Justiça são parceiros da violência policial? ‘ Claro. São parceiros, são cúmplices’ | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

O senhor e outros especialistas que trabalham com segurança pública apontam que as soluções estão na legalização das drogas, no desencarceramento e numa refundação das polícias, que passa justamente pela desmilitarização. Isso é o contrário de tudo o que vem sendo feito nos últimos anos. Estamos condenados ao fracasso?

Sim, acho que estamos condenados ao fracasso. E não é nenhuma profecia pessimista, é a constatação da realidade. O que se está propondo não é mais do que já se fazia, agora de forma intensificada. Einstein tem aquele frase famosa de que a definição de loucura, para ele, era fazer o mesmo esperando um resultado diferente. Estamos diante dessa irracionalidade coletiva, fazendo o mesmo com mais intensidade, agravando todas as questões que já temos, as dificuldades, os limites e as contradições, na expectativa de obtenção de resultados distintos.

Bolsonaro, Doria, Witzel, Sérgio Moro são o mesmo em relação ao que se fazia antes?

São o mesmo, intensificado. Como se aquela realidade que denunciávamos agora saísse do armário e se assumisse como tal. Excludente de ilicitude, por exemplo. Nós dizíamos — e eu digo “nós” porque há um consenso entre os pesquisadores e ativistas que atuam na área de direitos humanos e segurança pública, os policiais mais maduros e experimentados — “as execuções extrajudiciais estão em curso, promovendo um verdadeiro genocídio de jovens negros e pobres nas periferias das grandes cidades, e isso tem que ser detido”. Trazíamos à tona essa realidade. Agora ela é sancionada e explicitada despudoradamente. O “abate”, como se diz no Rio de Janeiro, ou excludente de ilicitude nada mais é do que um passaporte para matar, uma autorização para o policial matar. É uma pena de morte instituída sem julgamento. É por isso que digo: estamos no mesmo caminho, escolhendo não as boas práticas para iluminar as políticas públicas, mas as piores práticas para intensificá-las, agora sob as bênçãos da legalidade. Nós estamos legitimando o submundo. Os porões estão sendo consagrados, legitimados.

PM reprime jovem negro na Favela do Moinho, em São Paulo, em 28/6/17 | Foto: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo

O senhor fala no livro que o pacote anticrime do Moro “institui, na prática, a pena de morte no Brasil”.

E sem julgamento. É pior do que pena de morte. A indicação de que o juiz pode simplesmente inocentar alguém que pratique um homicídio por “escusável medo, surpresa ou violenta emoção” é a concessão ao Judiciário do direito de inocentar um policial que aja com brutalidade extrema e que mate o suspeito. Em qualquer situação na qual o policial se envolva, esses fatores que estão previstos nas mudanças sugeridas pelo Moro podem ser alegados: surpresa, medo, forte emoção. Todos instrumentos absolutamente genéricos e subjetivos para o juiz poder inocentar. E isso já estava acontecendo. Tivemos no Rio de Janeiro, de 2003 a 2018, 15.061 mortes provocadas por ações policiais. Não há informação, e isso é parte do problema, a respeito de quantos casos foram efetivamente denunciados pelo Ministério Público e julgados pela Justiça, mas são números ínfimos. Quando o deputado Marcelo Freixo (Psol) conduziu uma CPI a esse respeito no Rio de Janeiro [a Comissão Parlamentar de Inquérito dos Autos de Resistência, em 2015 e 2016], os resultados e os dados examinados por ele eram de que menos de 2% dos casos eram investigados e denunciados e transformados em processos. O que temos no Rio não só é a brutalidade policial letal, é a cumplicidade de práticas do MP — o Ministério Público tem o dever constitucional de exercer o controle externo da atividade policial, mas não tem feito isso, salvo exceções — e a Justiça, que permanece imóvel, porque não provocada, e portanto tacitamente está abençoando todo esse processo.

O Ministério Público e a Justiça são parceiros da violência policial?

Claro. São parceiros, são cúmplices. E a Justiça alega que só age quando provocada: se não há denúncia, não age. Ocorre que essa postura não é atípica do ativismo legiferante e politizado que a Justiça tem adotado no país, com a Lava-Jato, nas perseguições todas. Então a Justiça pode ser ativa quando quer, ser punitiva quando deseja, mas se recolhe ao imobilismo quando conveniente. Essa é a postura. Para dar um quadro que é a base do meu entendimento do que está ocorrendo, observo o seguinte. A gente tem esse número bárbaro de homicídios dolosos no Brasil: 62 mil no ano passado. O número de casos esclarecidos é muito pequeno. Não sabemos quantos desses casos efetivamente são esclarecidos, mas as indicações apontam para menos de 10%, em média. Isso significa que o crime mais grave permanece impune numa taxa de praticamente 90%. E por que a gente aceita essa situação?

Ilustração: Junião

E por que tantos crimes permanecem impunes e ao mesmo tempo as prisões estão cada vez mais cheias?

Exato. Essa é a contradição. Mas, primeiro: por que a gente aceita conviver com esse nível de impunidade em relação ao crime mais grave? Porque a imensa maioria das vítimas é negra e pobre. E, segundo, vivemos essa contradição à qual você se refere. Temos essa taxa de impunidade e por outro lado temos a terceira população penitenciária do mundo, chegando já a 800 mil presos — e temos a população carcerária que cresce mais rapidamente no mundo desde 2002. Portanto, não somos o país da impunidade. Nós punimos muito. Mas quem está sendo punido? Quando você começa a observar, se verifica: só 13% estão lá cumprindo pena por homicídio. A imensa maioria são crimes contra o patrimônio ou, frequentemente, tráfico de drogas. E aí nós temos o cerne do problema. O subgrupo que se expande mais rapidamente é aquele que está lá acusado de tráfico. Não estamos falando do traficante que se impõe pela força sobre comunidades, usando armas pesadas, não tem nada disso. Estamos falando do pequeno varejista das substâncias ilícitas. Esses é que têm sido de fato presos e condenados a cinco anos de regime fechado, tendo suas vidas destroçadas com isso. E mais. O perfil da grande maioria dos que são presos por tráfico é de pessoas sem prática de violência, sem armas e sem ligação conhecida com organização criminosa. Quando entram para o sistema, são obrigados a se vincular a alguma facção criminosa para sobreviver, porque as facções dominam o sistema. Quando saem da prisão, cinco anos depois, têm que prestar lealdade às facções às quais se vincularam para sobreviver. Então, estamos contratando violência futura, destruindo a vida desses jovens e fortalecendo as facções criminosas. A isso está servindo o encarceramento. Porque esse crescimento violento do encarceramento tem a ver com a guerra às drogas e a prisão desses que são negociantes varejistas de substâncias ilícitas.

E há os presos que são usuários de drogas.

Sim. Quem está sendo efetivamente preso? Em pesquisa recente, a Defensoria de São Paulo comprova o que a Defensoria do Rio já tinha publicizado: o negro é preso como traficante e o branco vai cumprir pena alternativa pelo consumo. É isso o que está acontecendo. Porque se transferiu, em 2006, mediante mudança legal, para o arbítrio do juiz a decisão de definir se é tráfico ou consumo. A cabeça média do juiz é a cabeça média do Brasil, que é um país racista. O nosso racismo estrutural se expressa dessa maneira. Os negros são preponderantemente considerados traficantes e os brancos preponderantemente são considerados consumidores. Isso se traduz no encarceramento em massa, que criminaliza a pobreza. E por que acontece isso? Não é uma questão de decisão só de gestores, de secretários, é uma questão que tem a ver com a natureza das instituições policiais. A polícia mais numerosa, presente em todo o Brasil, 24 horas por dia, é a Polícia Militar. Ela é proibida de investigar, mas é pressionada a produzir. E ela entende, como produção, prisão. Ela só pode prender em flagrante delito. Quais são os crimes passíveis de prisão em flagrante delito? Alguns poucos. Esses acabam sendo o foco de todos os investimentos do país na área de segurança pública. O grande foco é esse, porque a polícia que está na rua, não podendo investigar e pressionada a prender, vai fazer o que ela pode, que é prender em flagrante. A grande ferramenta para a Polícia Militar é a lei antidrogas. Ela, então, lança sua rede e captura os varejistas. Como não pode fazer investigação, a PM não vai atrás de quem lava dinheiro, dos grandes grupos internacionais, dos poderosos organizados. Mais de 80% dos presos no Brasil estão presos por flagrante delito. Nós vivemos no flagrante, não temos investigação, e o nosso foco, portanto, é o varejo. É uma contradição total. Estamos prendendo pequenos varejistas de substâncias ilícitas e abandonando a questão do homicídio e da vida. Isso resulta da combinação perversa entre o modelo policial inteiramente impróprio com uma lei de drogas hipócrita e irracional. O resultado é esse: a explosão do sistema penitenciário, o fortalecimento das facções criminosas, o aumento da violência e a gente fazendo o mais do mesmo. Então, quando veio a proposta do Moro, eu pensei: “meu Deus do céu, mas não é possível que não haja um mínimo de conhecimento do que está em curso no país”. O pacote fortalece as facções criminosas porque investe no aumento do encarceramento, não toca na questão do modelo policial, não toca em nada do que é essencial e, quando aponta para algum caminho, aponta no sentido do agravamento da situação.

Qual é a função que as polícias desempenham no Brasil? Para o que é que elas servem, na prática?

Olha, na prática, as polícias têm servido para criminalizar a pobreza e fortalecer as facções criminosas, aumentando a violência. E não conseguem reduzir a insegurança pública porque são parte de uma dinâmica que escapa ao controle de qualquer gestor ou dos próprios policiais: o modelo policial, combinado com a lei antidrogas, gera esse resultado dramático. Veja que nesse ano, de janeiro a março, tivemos no estado do Rio 434 mortes provocadas por ações policiais. Isso é recorde histórico.

Ilustração: Junião

Mortes pela polícia já são um terço do total das mortes.

Exato. No ano passado as mortes provocadas por ações policiais corresponderam a 31% do conjunto de homicídios no estado do Rio de Janeiro. Nesse ano isso vai ser ultrapassado. Se a polícia parasse de matar, a gente reduzia em um terço os homicídios no Rio.

O senhor menciona no livro “a falta de pudor” que os violadores ganharam e menciona como “histórico” um momento em 2016 quando o então deputado Jair Bolsonaro dedicou o voto dele no impeachment ao Carlos Alberto Brilhante Ustra, conhecido torturador. Quando a gente pensa na ditadura militar, os militares não celebravam a figura de Ustra, pelo contrário: os presidentes militares nunca admitiram a tortura nem se orgulharam publicamente dela. A pergunta que eu faço é: como a gente chegou, em plena democracia, a admirar publicamente os torturadores mais do que eram admirados na própria ditadura? E como sair dessa situação?

Resposta: não sei (risos). A pergunta é muito boa, mas eu também me faço. Eu não sei como chegamos nisso. Eu me pergunto como é possível que uma pessoa que confessa que é favorável à tortura e que defende uma guerra civil que “matasse 30 mil pessoas”, “a começar pelo Fernando Henrique”, como é que uma pessoa que confessa essas coisas… Porque muitos dizem: “ah, o pessoal não tem ideia do que seja tortura exatamente, a classe média não tem muita ideia”. Pelo amor de Deus, as pessoas sabem do que se trata. Tem que lembrar o seguinte: não há tortura sem estupro. Faz parte do cardápio da tortura. Estamos falando da defesa do estupro. Como é possível que uma barbaridade dessas seja anunciada publicamente, sob a forma de uma verdadeira confissão da perversidade, e isso seja base para uma eleição, para um apoio entusiástico? Eu não compreendo. É um grande enigma. Eu seria falso se eu inventasse aqui uma teoria qualquer.

Imagino que tenha sido o mesmo susto que o senhor tomou quando saiu o filme “Tropa de Elite”, que é baseado no seu livro “Elite da Tropa” [escrito com os ex-policiais André Batista e Rodrigo Pimentel], e muitas pessoas que viram o filme consideraram o Capitão Nascimento como um herói.

É, exatamente. Aplaudiram no cinema, vibravam. É curioso você lembrar. É um ponto importante. Um amigo meu, que é advogado criminalista, assistiu ao filme no Chile com juízes, advogados e promotores, porque foi exibido num congresso que houve em Santiago. Já tem alguns anos. E ele disse que a reação da plateia era de perplexidade e choque: “Será que isso é verdade mesmo no Brasil, que denúncia fortíssima”, eles ficaram muito tocados. Você assiste no Brasil, a reação é completamente diferente. O que fora é visto como uma denúncia da brutalidade policial aqui é recebido com aplauso.

Cena do longa com Capitão Nascimento, o protagonista de “Tropa de Elite” | Foto: Divulgação

E era uma reação que já apontava para o que a gente viria a viver hoje.

É, venceu a cultura do linchamento. E as pessoas dizendo que se trata de um país cristão. Um país cristão que abraça a cultura do linchamento? A falha é minha também, quando penso a respeito do Brasil e não levo em contas os estudos de tantos colegas mostrando a permanência de linchamentos, que é uma prática cotidiana no Brasil. A falha é minha e de todos que não percebemos a importância disso, e isso continua presente, atravessou esses anos todos e não se submeteu à educação democrática a que certos segmentos sociais se submeteram desde a transição. Isso perdura e agora emerge com essa floração perversa.

O senhor afirma no livro que a segurança pública foi a área em que a gente menos evoluiu no período democrático e continua mais presa à arquitetura construída durante a ditadura.

Não houve transição democrática na segurança pública. Houve nas demais áreas, mas essa permaneceu intangida pelo processo democrático. Urge expandir a transição democrática para a segurança pública, o que nesse momento soa improvável, porque justamente é toda a democracia que agora está em risco.

A esquerda esteve no poder durante um bom tempo e também não se moveu muito nesse sentido, seja nos governos Lula e Dilma ou mesmo no Fernando Henrique, que é chamado de esquerda hoje em dia. Por que não avançaram na democratização da segurança pública?

É oura pergunta dolorosa que você faz, porque é preciso reconhecer que você tem razão. O que foi feito ao longo de todos esses anos em que os progressistas democráticos estiveram no poder? Muito pouco e nada de muito consistente para efetivamente transformar as estruturas na área. Na área da mídia tampouco se fez. Como ministro da Justiça, Tarso Genro apresentou um plano nacional, o Pronasci [Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania], que era importante, com toda uma concepção muito avançada, e isso não foi implementado como deveria ser e depois de algum tempo foi descontinuado. O fato é que não resulta desse período nenhuma contribuição diferente para reverter o quadro que herdamos fundamentalmente da ditadura.

Foto: Divulgação/Boitempo

O seu diagnóstico é de que a esquerda tem uma certa dificuldade para abraçar o tema da segurança pública, porque a utopia da esquerda “supõe sociedade sem classes, sem Estado e, portanto, sem polícias”. Como lidar com essa questão?

Tem sido muito difícil. O livro é mais um esforço na direção de sensibilizar essa audiência. Se não houver, entre as forças democráticas mais radicais, aquelas mais profundamente comprometidas de fato com mudanças, com a vida dos jovens que estão sendo mortos nas periferias, com os movimentos sociais, se não houver nesses segmentos a consciência de que é preciso e é possível avançar nessa área, onde vamos encontrar bases de apoio para avançar? Precisamos dessas bases de apoio e é a partir daí que tem que se lançar ao país uma proposta. Até hoje as esquerdas não foram capazes de apresentar claramente uma proposta. Não estou me referindo a indivíduos, mas às organizações e aos partidos e movimentos sociais organizados. As esquerdas não negociaram um consenso mínimo em torno do qual se pudesse formular uma proposta de mudança. A PEC 51, que foi apresentada pelo senador Lindbergh Farias (PT) em 2013, é fruto de muitos anos de negociações, com participação de policiais, movimentos… é um arranjo apresentado como uma possibilidade. Cada um tem sua visão e ideias de alternativas, mas é preciso transformar isso num modelo consistente alternativo em torno do qual a gente pode começar a negociar e discutir. A PEC 51 pelo menos tem essa virtude. Eu acho que seria um imenso avanço, outros podem pensar diferente, mas uma vez no livro [um capítulo de “Desmilitarizar” é dedicado a explicar a PEC 51 e analisar as críticas feitas à proposta] ela pode servir como um apoio para os debates e articulações, de modo que a gente possa dar um passo adiante. Mesmo que o Congresso majoritariamente esteja comprometido com as piores práticas na segurança pública e esse governo não tenha nenhum compromisso com algum avanço na segurança pública e com a democracia, pelo menos as forças democráticas deveriam se unir em torno de uma proposta efetiva de mudança. Porque de um lado nós somos críticos e temos de continuar a ser, mas de outro nós temos que apresentar um caminho à sociedade.

Não dá para ficar só criticando.

Não dá, porque a sociedade vai nos cobrar: “Tá bom, reconhecemos que o que está aí é um inferno, um desastre, mas para onde vamos, então? Aponta um caminho. Qual é alternativa?”. É uma pergunta que nós temos que responder. A PEC 51 tem uma série de itens: carreira única, ciclo completo, desmilitarização, definição da polícia como instituição garantidora de direitos. Uma série de elementos que estão ali e podem ser discutidos. Outros modelos haverá e são bem vindos para o debate, mas a nossa contribuição está ali. Inclusive há um capítulo que é resultado de quase um ano de exposição pública da PEC 51 em que eu analiso todas as críticas. É uma contribuição para esse debate. Posso estar errado e outros virão propondo mudanças em relação a isso, mas então estaremos caminhando. Por enquanto estamos apenas negando o que está aí, o que é fundamental, mas não somos capazes de apresentar alternativas. Na esquerda sonhamos com uma utopia de paz, harmonia, fraternidade, sem propriedade privada, sem polícia, sem Estado, sem lei, sem Justiça criminal, o que seria os seres humanos convivendo numa sociabilidade fraterna. É um sonho utópico, belíssimo. Espero que um dia a humanidade realize isso, mas não vemos nada próximo disso no horizonte. Então, a conclusão que se tira é a seguinte. Até onde a vista da história alcança, nós vamos ter uma sociedade organizada com Estado. Onde há Estado há lei. Onde há lei há Justiça, Justiça criminal, aparelhos de segurança, polícia. Se o Estado vai ser um companheiro de viagem nessa travessia, temos que oferecer a nossa proposta para a reorganização do Estado. E para isso há muita elaboração da esquerda. Mas há um elemento de elaboração do Estado para o qual a esquerda não tem oferecido alternativas, que é justamente a segurança pública e a polícia. Como se fosse um pecado tocar nessa questão. Aí o que acontece? Quando a gente silenciar sobre isso, a gente é incapaz de formular propostas alternativas e, na prática, os países que caminharam na direção do socialismo real, nós tivemos polícias do pior tipo.

O socialismo real nunca foi abolicionista penal.

Ao contrário. No socialismo real, tivemos polícias terroristas, que aviltaram os direitos humanos, sistemas carcerários com tortura, a maior indignidade. Então, se nós hoje fazemos a crítica do socialismo real, temos que fazer a crítica da polícia real desse socialismo e então apresentar o que seria uma alternativa. Mas parece que essa realidade queima. Parece que falar da polícia te coloca numa posição da direita obrigatoriamente, então se silencia. Isso é um tabu para a esquerda. Um outro elemento nessa equação que não fecha é que nós quase não temos liberais no país. O Brasil tem pouquíssimos liberais: alguns indivíduos, mas nunca tivemos liberalismo no país como uma força clara, nítida. Quando surge um partido que se diz liberal, o Novo, são conservadores, são falcões. O liberal clássico, de John Suart Mill [filósofo e economista inglês], é aquele sujeito ou aquela mulher que defende a legalização do aborto, a legalização das drogas, a emancipação individual, e defende o mercado. Nesse pacote estão as defesas das formas de liberdade.

E os direitos humanos.

E os direitos humanos, que nasceram dessa matriz. No Brasil, não. Liberais são os que defendem o mercado e ponto final. São conservadores, têm uma concepção de segurança pública e polícia retrógrada, inteiramente contrária aos direitos humanos. Se nós dispuséssemos no Brasil de uma força liberal, de centro, importante, que levantasse as bandeiras das liberdades individuais para valer (legalização das drogas e do aborto etc.) e a bandeira dos direitos humanos, nós da esquerda encontraríamos um espaço para aliança muito importante para fazer o Brasil avançar.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Fausto Salvadori

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