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Violência Policial: O Estado caça, confina e abate nossos filhos negros como animais

O fim da escravidão não representou liberdade e sim novas formas de dominação. O racismo é estruturante na sociedade brasileira
Monica Silva
Catarinas
Florianópolis (SC)

Tradução:

A atuação de mães na Frente pelo Desencarceramento no Estado do Rio de Janeiro e pelo cumprimento de Medidas Socioeducativas é marcada pela dor, revolta e pela não aceitação das condições sob as quais determinados seres humanos são tratados no sistema prisional.

Não é que não queiramos que as pessoas sejam responsabilizadas pelos seus atos, mas sim porque percebemos a seletividade do sistema judiciário, que não trata as pessoas que cometeram crimes de maneira justa.

Criminosos dos altos escalões da política já condenados, por exemplo, não vivenciam o que pessoas que nem sequer foram julgadas estão passando nas unidades prisionais infestadas de doenças e superlotadas. Privilegiados que cometem crimes lesando toda uma nação encontram na Justiça respostas para se livrarem do cárcere ou cumprirem sua pena da maneira mais confortável. E por que nossos filhos não podem sequer viver? Será que a Justiça pode ter dois pesos e duas medidas? Acreditamos que não. A punição não pode ser para alguns um fim e para outros um “apaziguamento” direcionado à mídia e sociedade, que é o que acontece quando esses crimes de “colarinho branco” vêm à tona.

Hoje eu faço parte do Movimento Moleque e da Frente Pelo Desencarceramento no Estado do Rio de Janeiro, que trata da abolição penal. Um debate necessário, que analisa os sistemas judiciário e penitenciário a partir de uma visão descolonizada, fazendo as ligações necessárias entre a superpopulação carcerária – a terceira maior do mundo – 64% dela formada por pessoas de cor/raça negra (Infopen), e a formação social brasileira assentada na escravidão. Podemos a partir disso pensar qual é a finalidade das prisões.

Se, ainda assim, entendermos as prisões como necessárias, por que a privação da liberdade, o afastamento do convívio familiar e comunitário, combinadas a outros programas de ressocialização, não são punições suficientes para que condenados possam refletir sobre seu crime ou ato infracional? Se esta população sequer foi socializada neste país, tampouco poderá ser “re-socializada”.

Não está na lei, mas na prática: o sistema acredita que tem que ser torturado mesmo, fazer com que aquele ser preso perca sua humanidade, comece a se questionar se deve viver ou não, se merece todas aquelas violações, pense que é um ser que nasceu com índole má e que por isso merece ser tratado daquela forma.

A forma como o Estado desacredita as pessoas encarceradas, faz com que elas desacreditem também no Estado e nas pessoas ao seu redor. Passam a não se reconhecer como um humano digno, faz com que não perceba a humanidade e dignidade no outro. Se você pode ser abatido como um animal, por que o outro não poderia?

Os adolescentes e os jovens negros passam pelo mesmo processo de desumanização, porque as unidades de cumprimento de medidas socioeducativas são um reflexo do sistema penitenciário, com 76,2% do total de jovens em privação de liberdade sendo negros.

Quando a polícia entra na favela para buscá-los não é só para prendê-los, mas para abatê-los: de acordo com Anistia Internacional 77% dos jovens assassinados no Brasil são negros. O genocídio da população negra acontece aí, na nossa frente e está tudo relacionado.

Seus direitos são negados não só quando o tiro atravessa o seu corpo, mas a partir do momento do seu nascimento, desde as filas imensas do SUS até o racismo obstétrico sofrido pelas mulheres negras nos hospitais. São direitos violados na falta de estruturas e condições de recebê-los, sem creches, sem educação, sem saúde, sem esporte, sem lazer, sem aparelhos de cultura e entretenimento: sem perspectivas.

O fim da escravidão não representou liberdade e sim novas formas de dominação. O racismo é estruturante na sociedade brasileira

Foto: Caio Oliveira – Jornalistas Livres
Monica Cunha teve seu filho de 20 anos assassinado pela polícia civil do Rio de Janeiro em 2006

Eu sempre estou buscando um porquê. Para mim, e para muita gente, não é fácil entender as pessoas não respeitarem o outro apenas por que tem a cor de pele diferente da sua. Isso já é muito grave, mas de maneira nenhuma pode justificar que esse outro seja eliminado.

A cor de pele não pode ser determinante de nada. Assim como no caso das pessoas brancas, o argumento de que se esforçam e se dedicam mais para justificar sua ocupação nos melhores cargos – posições que historicamente são negadas aos pretos – busca ocultar os privilégios da branquitude e a miséria para qual foram jogadas as pessoas negras com o fim da escravidão.

O fim da escravidão não representou liberdade e sim novas formas de dominação. O racismo que é estruturante dessa sociedade permite que essa dominação siga seu curso perfeitamente, dentro da normalidade, sendo reproduzido por instituições e nas nossas relações sem que percebamos muitas vezes, de tão naturalizado que está no nosso cotidiano da vida e pensamentos.

No fundo, assim como tivemos uma abolição não concluída, a construção da ideia de que pretos e pretas são humanos também não foi concluída, porque se olharmos os dados de mortalidade, encarceramento e violações, veremos como ainda somos facilmente descartáveis e desprezíveis.

O que quero dizer com tudo isso é que tanto a luta pelo cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a luta contra o encarceramento em massa, a luta contra o genocídio de nossa juventude, contra essa falsa guerra às drogas, que na verdade é contra o povo preto e favelado, estão atravessadas pela questão racial. Todas essas lutas são e devem ser também antirracistas, seja por nós pretas e pretos ou pela população branca e não-branca.

Por fim, enquanto mãe, fundadora do Movimento Moleque, militante em defesa dos direitos das crianças e adolescentes, que basicamente são também direitos humanos, entre outras frentes que atuo, o significado de luto, será sempre verbo. Estamos, enquanto população preta nessa situação de desfavorecimento, entendendo que a correlação de forças nunca foi positiva para o nosso lado e se tivéssemos desistido eu não estaria aqui hoje. Não temos dívidas com esse país, ele que nos deve e vamos seguir cobrando.

Vidas negras importam sempre, porque sem nós não existe nação brasileira.

*Monica Cunha é cofundadora do Movimento Moleque, articuladora do grupo Café das Fortes e coordenadora da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), cuja presidenta é a deputada Renata Souza (PSOL). Atou ao lado da ex-vereadora Marielle Franco nesta mesma comissão.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Monica Silva

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