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"Não conseguimos contar os mortos da ditadura, e seus herdeiros já arrombam a nossa porta"

Audiência na Câmara discute livro-reportagem que trata de sequestro de bebês durante a ditadura. Exonerada por Bolsonaro, procuradora Eugenia Gonzaga é homenageada
Vitor Nuzzi
Rede Brasil Atual
São Paulo (SP)

Tradução:

“O silêncio elegeu um tirano. Esse silêncio faz com que a gente viva uma situação de ameaça”, disse a deputada Shéridan (PSDB-RR), durante audiência pública na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDH) da Câmara, na tarde desta terça-feira (6), em que os episódios da ditadura foram não só rememorados, mas revividos, com manifestações de solidariedade à procuradora Eugênia Gonzaga, exonerada da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, críticas ao governo, ameaças atuais à democracia e lamentos pela falta de punição aos responsáveis por violações durante o regime autoritário. A audiência foi convocada pelo presidente do colegiado, Helder Salomão (PT-ES), que fez questão de chamar Eugênia de “presidente” da comissão.

Shéridan nasceu em 1984, no fim da ditadura, ano da campanha por restabelecimento das eleições diretas para presidente da República, o que só aconteceu em 1989. Sua mãe nasceu justamente em 1964. Ela lamenta que agora o país tenha um presidente “que incita constantemente a desordem, a instabilidade, a desconstrução”.

O poeta Hamilton Pereira da Silva, conhecido como Pedro Tierra, que está para lançar livro sobre aquele período, falou sobre tiranias que “ora vestem fardas, ora vestem togas”. E lamentou que o Brasil não tenha superado as tentações autoritárias. “Ainda não conseguimos contar os mortos daquela que escureceu o país por 20 anos, e seus herdeiros já arrombam a nossa porta”, afirmou Hamilton, preso de 1972 a 1977, passando por cinco presídios. “Tratar da violência daquele período é um dever inarredável daqueles que amam a democracia e compreendem que não há saída para o país senão pelo fortalecimento das instituições.”

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Produção do esquecimento

Na defesa da memória e contra o que chamou de “produção industrial do esquecimento”, ele citou casos e cobrou respostas. Para ele, a ditadura agiu “a serviços dos interesses que eram contra o desenvolvimento do Brasil”. E a regra, acrescentou, “era aniquilar quem se opunha”. “O general Geisel (Ernesto Geisel, penúltimo presidente da ditadura), antes de anunciar ao país a abertura lenta, gradual e segura, ele exterminou o comitê central do Partido Comunista Brasileiro e decidiu pelo assassinato das lideranças do Partido Comunista do Brasil”.

O primeiro falar foi o jornalista Eduardo Reina, autor do livro Cativeiro sem Fim, que trata do sequestro de bebês e crianças, filhos de militantes políticos, durante a ditadura – a obra foi o tema da audiência de hoje. “Um crime que ocorreu pelo menos 500 vezes na vizinha Argentina, e levou para a cadeia um presidente da República, militares, pais apropriadores e outras pessoas envolvidas no esquema de sequestro e adoção ilegal. Um crime que ocorreu também no Chile, no Uruguai, no Paraguai, na Bolívia, e que raramente foi citado na mídia em geral e nos livros de história e acadêmicos no Brasil”, afirmou.

“O jornalismo, queiram ou não, foi, é e será o espaço crítico do presente e do passado. É o jornalismo que continua a indagar de que maneira a história tem sido contada aos brasileiros”, afirmou Reina, para quem a atividade jornalística “é capaz de ultrapassar essa barreira de ódio e negacionismo da história que começa a ser erguida”. Ele fez ainda referência a “campanhas que mobilizam as redes sociais e inundam telefones e computadores pessoais com histórias irreais, com fake news, manipulando o inconsciente coletivo da sociedade”.

Cativeiro sem Fim é resultado de anos de pesquisa e 20 mil quilômetros percorridos pelo país. Ele entrevistou cinco vítimas dos 19 casos relatados no livro. Onze estão ligados à Guerrilha do Araguaia – são filhos de militantes ligados ao PCdoB e de lavradores que aderiram àquele movimento. Descobertas “necessárias para negar a versão histórica existente de que no Brasil a ditadura não foi tão cruel como nos demais países da América Latina”. Depois de publicado o livro, em março, ele recebeu informações que podem levar a 21 novos casos de sequestros. Uma violência “com vida”, entre tantos casos de violência “com morte”, observou.

Direito humanitário

Retirada da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos após fazer críticas a declarações de Jair Bolsonaro, a respeito do desaparecido político Fernando Santa Cruz, pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, a procuradora Eugênia Gonzaga observou que, ao contrário do que diz o presidente da República, não se trata de uma questão ideológica. “Nós estamos falando de direito humanitário, prantear o corpo, ter direito a um sepultamento digno. É disso que estamos falando. Nunca antes, acho que nem no período da ditadura, um presidente da República ousou se dirigir dessa maneira a um familiar de desaparecido político.”

Para ela, o objetivo do governo é esvaziar o colegiado, assim como foi feito na Comissão da Anistia. “Não tendo o poder de derrubar essas comissões, nomeia pessoas que são contrárias aos objetivos dessas comissões. As famílias voltam a ficar acuadas, a ficar com medo. E agora estão expostas, porque estão lá com todos os seus dados e temem que seja feito mau uso deles.” Eugênia também criticou novas declarações de Bolsonaro sobre “exigências” do presidente para o próximo titular da Procuradoria-Geral da República. “Exigir ideologia ataca a autonomia do órgão público.”

A procuradora fez referência a um “pacto de silêncio” entre agentes da ditadura. E citou dois casos recentes: o coronel reformado Paulo Malhães, morto em 2014 dentro de sua casa, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. E o tenente da reserva José Vargas Jimenez, o Chico Dólar, que se “suicidou” com dois tiros no peito, em Campo Grande., em 2017.

No meio do caminho

A procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, observou que ainda há dificuldade para conseguir informações sobre os casos relatados por Reina. Foram instaurados sete procedimentos, mas colocados sob sigilo de Justiça, e dois foram arquivados a pedido de familiares. Para ele, a “redemocratização ficou no meio do caminho”.

“A Justiça de Transição no mundo se vale de alguns pressupostos absolutamente necessários”, lembrou Deborah, observando que as comissões que investigam atos da ditadura, no Brasil, sempre tiveram muitas dificuldades de funcionamento. “Nunca conseguimos chegar à punição dos culpados. Todas as iniciativas do MPF barraram em algum grau de jurisdição”, afirmou. Assim, ainda hoje há “elementos muito característicos desse período”. Ela considera que a sociedade democrática se encontra “muito ameaçada na atualidade”.

Para Hamilton, sem instituições “nós não podemos sequer nos valer da afirmação de verdades factuais, porque a instituição, se ela é vulnerável ao tirano, muda de posição e dá uma posição diferente na manhã seguinte, e a sociedade se vê à mercê de quem controla arbitrariamente”. Ele citou um caso que considera emblemático: a morte, na madrugada de 17 de maio de 1973, de Márcio Beck Machado e de Maria Augusta Thomaz, na clandestinidade, em Rio Verde (GO). “Eles foram sumariamente assassinados. Dois anos depois, essas duas pessoas que foram assassinados em maio de 1973 foram condenadas a prisão por 12 anos pela 2ª Auditoria do Exército de São paulo, Processo 100/72. Ou seja, a ditadura expedia ordens de prisão para as pessoas que ela havia sido assassinadas, para que essas pessoas fossem tidas como desaparecidas, para que não se procurasse mais.”

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Vitor Nuzzi

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