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Ministro do STJ diz que Atentado do Riocentro configura crime contra a humanidade

Schietti afirmou que o Brasil se submete a normas de direito penal internacional que preveem a imprescritibilidade de delitos graves
Comunicação STJ
STJ - Superior Tribunal de Justiça
Brasília (DF)

Tradução:

Em julgamento iniciado nesta quarta-feira (28) pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o ministro Rogerio Schietti Cruz votou no sentido de considerar que a tentativa de atentado a bomba no Riocentro, em 1981, configurou crime contra a humanidade e, portanto, é imprescritível – o que possibilitaria a retomada de uma ação penal contra os militares envolvidos na ação. O julgamento foi suspenso por um pedido de vista do ministro Reynaldo Soares da Fonseca.

Relator do caso, Schietti afirmou que o Brasil se submete a normas de direito penal internacional que preveem a imprescritibilidade de delitos graves ocorridos em períodos de exceção, além de ter sido condenado em julgamentos recentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos por episódios ocorridos durante a ditadura militar.

O ministro entendeu que as características atribuídas ao atentado – participação de agentes estatais, ações sistemáticas para impedir a redemocratização do Brasil e o potencial de lesão para a população civil – justificam a caracterização do episódio como crime de lesa-humanidade.

O caso, ocorrido no bairro de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, foi uma tentativa fracassada de ataque a bomba durante um show comemorativo do Dia do Trabalhador, que reuniu mais de 20 mil pessoas no Centro de Convenções do Riocentro na noite de 30 de abril de 1981. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), a ação, intentada por militares, buscava a criação de um clima de medo na sociedade para justificar o recrudescimento da ditadura, que já estava em processo de abertura política.

Após o recebimento de denúncia do MPF em primeira instância contra seis agentes supostamente envolvidos no atentado, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) concedeu habeas corpus para trancar a ação penal, por considerar extinta a punibilidade pela prescrição. Para o TRF2, os atos foram praticados cladestinamente, sem influência do Estado, e assim não haveria causa que indicasse a imprescritibilidade.

Schietti afirmou que o Brasil se submete a normas de direito penal internacional que preveem a imprescritibilidade de delitos graves

STJ
Ministro Rogerio Schietti Cruz

Corte Interamericana

No voto apresentado à Terceira Seção, o ministro Rogerio Schietti traçou um panorama histórico da definição dos crimes contra a humanidade, que foi mencionado pela primeira vez na Convenção de Haya, em 1907, e teve contornos modernos definidos pelo Estatuto do Tribunal Penal Internacional, em 1998. Segundo o estatuto, caracterizam-se como crimes contra a humanidade aqueles cometidos em um quadro de ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, tendo como resultado homicídio, extermínio e outros.

O ministro também lembrou que, ao julgar recentemente processos como o da morte do jornalista Vladimir Herzog, a Corte Interamericana de Direitos Humanos afirmou que a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade tem caráter de jus cogens.

Segundo a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados – da qual o Brasil é signatário –, a norma jus cogens é aquela aceita pela comunidade internacional como a norma da qual nenhuma revogação é permitida e que só pode ser modificada por normativo posterior de direito internacional de mesma natureza.

Por isso, o ministro afirmou que não é um argumento válido o de que o Brasil não internalizou, até o momento, a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade (1968), mesmo porque o país se submeteu voluntariamente à Convenção de Viena e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (ambas de 1969), por meio das quais se comprometeu a seguir as decisões e a jurisprudência da corte interamericana. 

Schietti lamentou que países como o Brasil ainda se mostrem reticentes em exercer um controle de convencionalidade sobre as normas de direito interno, como forma de dar cumprimento às sentenças proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Para o ministro, se o Brasil ratificou a Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos e a introduziu no país com, no mínimo, hierarquia supralegal, “todo o sistema judicial, desde o magistrado de primeiro grau até os membros da Suprema Corte, deve se conformar à ideia de que o controle de constitucionalidade implica também um controle de convencionalidade, os quais hão de ser exercidos de forma intercomplementar”.

Nesse sentido, em relação às violações de direitos humanos ocorridas no período da ditadura militar, Schietti lembrou que a corte interamericana já reconheceu a necessidade de dar prosseguimento às ações criminais e às devidas responsabilizações por crimes contra a humanidade cometidos até mesmo antes de 1979 – portanto, abarcados pela Lei de Anistia –, a exemplo do entendimento do tribunal internacional em casos como a Guerrilha do Araguaia e a morte de Herzog.

“Com muito mais razão, deve ser aplicado tal posicionamento ao caso do Riocentro, ocorrido no ano de 1981 e que, por isso mesmo, não é alcançado pela Lei de Anistia promovida dois anos antes”, afirmou o ministro.

Série de ataques

Em relação aos elementos apontados na denúncia, Rogerio Schietti destacou que os autos indicam que o atentado do Riocentro fez parte de uma série de ataques – alguns dos quais resultaram em mortes –, planejada por integrantes do DOI-Codi e do Serviço Nacional de Informações contra a suposta “ameaça comunista” representada pelos opositores do regime.

De acordo com os autos, o fracassado atentado em Jacarepaguá ocorreu em um contexto de ataque sistemático, com uma clara intenção de forçar um novo período de repressão militar. Também há na ação indicativos de diversas medidas adotadas por agentes estatais para concretizar o atentado, garantir a impunidade dos criminosos e atribuir o delito à esquerda armada brasileira – como a ausência de policiamento no local e a retirada de provas que estavam no interior do veículo onde a bomba explodiu.

Por todos esses elementos, segundo Schietti, as condutas descritas na denúncia (associação criminosa, fabrico e transporte de explosivos, homicídio qualificado tentado, fraude processual e favorecimento pessoal) estão abrangidas na definição de crimes contra a humanidade, “pois envolvem os atos preparatórios ao atentado propriamente dito – com destaque para os homicídios que o grupo criminoso objetivava produzir – e as ações posteriores que buscaram ocultar de investigação futura os autores do delito e o envolvimento das autoridades do sistema de inteligência do governo militar com o episódio”.

Ao votar pela declaração de imprescritibilidade dos crimes e pelo prosseguimento da ação penal, Schietti também ressaltou que o Brasil não pode mais estar alheio às decisões das cortes internacionais, especialmente em temas como a proteção dos direitos humanos, sob o argumento de observância exclusiva da legislação interna.

“Precisamos, de fato, superar esse comportamento ensimesmado que nos isolou, em nossa tradição, não só colonial mas também imperial e republicana, da comunidade jurídica internacional; é hora, creio, de deixar para trás o anacrônico provincianismo jurídico, não mais compatível com os postulados de uma nação que, a par do seu direito interno, deve assimilar em suas práticas judiciárias outras fontes normativas para a regulação da vida de seus cidadãos. E o Superior Tribunal de Justiça, dito Tribunal da Cidadania, é chamado a se posicionar a respeito”, declarou o ministro.  

O julgamento do recurso especial do MPF será retomado com a apresentação do voto-vista pelo ministro Reynaldo Soares da Fonseca, ainda sem data definida.

Leia o voto do relator.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):REsp 1798903

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
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