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Violência machista impulsiona luta de mais de 200 mil mulheres na Argentina

Manifestantes exigem legalização do aborto, desmantelamento das redes de tráfico de pessoas e liberdade para todas as presas políticas em especial Milagro Sala
Caio Teixeira
ComunicaSul
La Plata

Tradução:

Há menos de duas semanas, em 13 de outubro, mais de 200 000 pessoas, a esmagadora maioria composta de mulheres, participaram da marcha de encerramento do 34.o Encontro Nacional de Mulheres da Argentina, em La Plata, o maior já realizado em toda a história do movimento feminista daquele país e um dos maiores que se tem notícia no mundo.

A mídia brasileira e latino-americana como era de se esperar, não tomou conhecimento do evento e é fácil entender as razões do eloquente silêncio. A reivindicação que encabeça as resoluções do encontro é Nem Uma Menos! Basta de Feminicídios, Travesticídios e Transfemicídios.

A bandeira é símbolo das feministas argentinas desde o movimento deflagrado a partir do assassinato de Chiara Páez, de 14 anos, em 2015, na província de Rosario. Além disso as mulheres exigem a legalização do aborto, o desmantelamento das redes de tráfico de pessoas e a cafetinagem, a liberdade para todas as presas políticas em especial Milagro Sala e para todas as mulheres condenadas injustamente por se defenderem da violência machista.

O Manifesto encerra afirmando que a maternidade será desejada ou não será! A maternidade forçada de meninas é um crime, basta de poder patriarcal e por uma justiça com perspectiva de gênero, por terra, teto e trabalho para todas.

Deu pra entender o silêncio da grande mídia? Para conhecer um pouco da luta das mulheres na Argentina o ComunicaSul entrevistou Débora Bertone, Secretária de Gênero e Igualdade de Oportunidades da Associación Judicial Bonaerense, o sindicato das trabalhadoras e trabalhadores do Poder Judiciário da província de Buenos Aires, militante feminista que participou ativamente do Encontro Nacional.

Manifestantes exigem legalização do aborto, desmantelamento das redes de tráfico de pessoas e liberdade para todas as presas políticas em especial Milagro Sala

Wikimedia Commons
Mulheres argentinas marcham em La Plata, Argentina

ComunicaSul – Há hoje na Argentina um avanço na luta das mulheres pela igualdade de direitos?

Débora Bertone – Bem, nos últimos anos se avançou bastante. Apesar de o número de casos de violência machista e feminicídios ainda ser muito alto, temos avançado bastante em alguns direitos, em particular, na categoria de trabalhadores a que pertenço. Recentemente conquistamos a Licença por Violência de Gênero, uma licença que é muito importante para as mulheres. Anteriormente qualquer companheira vítima de violência de gênero era obrigada a recorrer a licenças psiquiátricas, licenças por doença ou outras licenças inespecíficas e hoje temos esta garantia que, acima de tudo, torna visível esta problemática, esta luta, inclusive com estatísticas que permitem avançar sobre formas de prevenir definitivamente esse tipo de violência. Já existe na província de Buenos Aires uma lei aprovada há dois anos que garante esse direito, mas estávamos em litígio com o Tribunal da província buscando a aplicação dessa lei para as trabalhadoras do Poder Judiciário. Neste sentido, é preciso ressaltar que esta não foi uma luta apenas das companheiras da Secretaria de Gênero, mas uma reivindicação que foi abraçada pelo sindicato como uma bandeira de todos. 

Qual o balanço das lutas das mulheres argentinas no último ano?

O grande encontro que tivemos em La Plata contou com a participação de mais de 200 companheiras trabalhadoras do Poder Judiciário de todo o país. Isto mostra que os sindicatos também podem ser um instrumento de luta. Estamos engajadas obviamente não apenas em questões específicas do nosso setor, mas em todas as demandas históricas do movimento feminista. Este ano foi muito importante, por exemplo, a deliberação de que se incorpore a participação das identidades dissidentes como as companheiras transexuais, lésbicas e bissexuais. Este foi um dos eixos centrais em discussão, além evidentemente da luta pelo aborto legal. Tivemos na Argentina durante todo este ano uma luta muito importante pela legalização do aborto em nosso país. Foi uma batalha enorme junto aos deputados que acabaram aprovando a lei, mas lamentavelmente ela foi rejeitada pelo Senado. Apesar disso, conseguimos um debate muito importante nas ruas, na sociedade. Conquistamos o convencimento social de que o aborto tem que ser legalizado porque morre todo ano uma quantidade inaceitável de mulheres, principalmente dos setores mais pobres. Por outro lado precisamos exigir uma Justiça com perspectiva de gênero, ou seja, que tenhamos decisões judiciais, sentenças, em todas as instâncias que sejam uma resposta à cidadania com exemplos claros em relação ao tema e também que no interior das instituições judiciais, em relação às trabalhadoras, nosso “empregador”, a Corte Suprema de Justiça reconheça os direitos que estamos exigindo e principalmente que se estabeleça uma relação de trabalho a partir de uma visão de gênero. 

Foto: Nuria Alvarez

Os governos de direita, como Bolsonaro, no Brasil, Macri na Argentina ou Piñera no Chile podem ser um obstáculo ao avanço da luta por igualdade de gênero?

Sim, com certeza nestes governos neoliberais, de direita e ultradireita, como Bolsonaro que é um fascista, tem feito declarações horríveis com posições machistas e fascistas em relação às mulheres  a luta fica ainda mais dura e mais difícil. Estamos num momento mais de resistência que de conquistas e isso tem a ver com a composição desses governos. A peleia segue grande e tem que se dar nas ruas sobretudo e organizada em torno do movimento feminista.

As igrejas, somam-se também de forma significativa aos obstáculos enfrentados pelo movimento feminista aqui na Argentina?

Sim, claro, nesta luta que tivemos pelo direito ao aborto as igrejas jogaram muito forte. Não apenas a igreja católica como as evangélicas e outras. Estas são as principais organizações que se opõem aos direitos das mulheres a partir de uma visão moralista e a verdade é que elas têm muito poder. Por isso estamos exigindo fortemente a separação entre Igreja e Estado. O Estado não pode sustentar economicamente, através de subsídios e financiamento, essas instituições que são obstáculos a nossos direitos. O papel do Estado é justamente de garantir os direitos da cidadania.

Como está a articulação supranacional do movimento das mulheres?

Bem, na Argentina desde 2015 com o movimento “Ni Una Menos” começou a crescer com muita força uma onda feminista. Também temos um forte movimento de mulheres no Chile, no Brasil e no Uruguai. A verdade é que o movimento feminista é internacionalista também. Respondendo sua pergunta, sim, há articulações. Nós mesmas do movimento das trabalhadoras do judiciário, nos articulamos através da Federação Judicial Argentina (de caráter sindical) juntamente com as companheiras do Brasil e do Uruguai. Há pouco tempo tivemos um encontro de mulheres e dissidências identitárias na província de Córdoba onde trocamos informações sobre a situação nas diferentes regiões e traçamos estratégias comuns consensuadas nesse contexto dos movimentos feministas nos diversos países.

A Argentina tem eleições no próximo domingo. Há possibilidade de mudanças nas condições da luta das mulheres a partir de um novo governo?

Claro, as eleições primárias já indicam uma tendência para o próximo governo. O movimento feminista tem questionado em especial em relação à postura sobre o direito ao aborto aos diferentes candidatos. Com exceção da esquerda, não há nenhuma outra corrente que esteja se manifestando a favor da legalização do aborto. O que reivindicamos é que o próximo governo trate do assunto sob a ótica da legalização. Não nos interessa a despenalização como propõem alguns. Há propostas no sentido de que primeiro vamos despenalizar e depois legalizar. Nós entendemos que essa postura é uma armadilha que só visa favorecer as clínicas privadas, favorecer o negócio das clínicas privadas, quando as mulheres que morrem hoje são justamente as mulheres pobres, que não podem pagar clínicas particulares. Então é importante que o próximo governo não apenas legalize o aborto, mas que destine orçamento para as políticas de gênero. Hoje o Estado não tem orçamento para esta área.

*Caio Teixeira, do ComunicaSul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Caio Teixeira

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