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Mulheres pretas têm direito à maternidade negado desde escravidão, diz Silvia Federici

O sentimento poderoso e libertador que temos quando marchamos com outras pessoas vem desse sentido de que nosso corpo, nossas vidas estão se expandindo
Patrick Farnsworth
Diplomatique Brasil
São Paulo (SP)

Tradução:

O que é o “corpo” no capitalismo? Quando falamos de corporeidade, como nosso entendimento do “eu” em relação ao nosso corpo é redefinido, reduzido e mutilado sob a lógica do capital e as imposições do estado?

Embora as respostas para essas perguntas sejam relevantes para quem trabalha no capitalismo, elas têm peso e ressonância específicos para aqueles que mais sofreram com esse sistema global — as mulheres.

Em seu altamente influente livro Calibã e a Bruxa, a escritora e professora feminista Silvia Federici descobriu a transformação brutal que as populações europeias foram forçadas a suportar sob a ordem social emergente do capitalismo, cujas consequências inevitavelmente se estenderam para o resto da população mundial, humana e mais-que-humana. Seu livro mais recente, Beyond the Periphery of the Skin, estende essa exploração para como essas forças continuam a impor sua lógica ao corpo, desde o papel que as ciências sociais e o estabelecimento médico desempenharam nesse processo, até a falta de imaginação da política institucional na abordagem da raiz deste problema.

Nesta entrevista, Federici explica como essa transformação do corpo se estende tanto para dentro quanto para fora. Nossa concepção moderna do “eu” é, sem dúvida, empobrecida, mas como título do livro sugere, reconectar-se ao que está além da periferia da pele é essencial para recuperar o que foi perdido nesse longo e violento caminho até o momento atual. De todos os seus belos atos de solidariedade e resistência, à repressão brutal em curso contra a vida em todas as suas formas; humana e mais-que-humana.

O sentimento poderoso e libertador que temos quando marchamos com outras pessoas vem desse sentido de que nosso corpo, nossas vidas estão se expandindo

Geledés
Quando falamos de corporeidade, como nosso entendimento do “eu” em relação ao nosso corpo é redefinido, reduzido e mutilado

Confira a entrevista

Bem, Silvia, é ótimo conversar com você de novo. Acho que faz quase dois anos, ou algo assim. É incrível a rapidez com que tudo está se movendo. Especialmente desde o início deste ano, tudo tem evoluído tão rapidamente com a pandemia, com a agitação social que estamos vendo nos Estados Unidos, a crise econômica e tudo que surge disso.

Quero discutir este novo livro que você publicou na PM Press, Beyond the Periphery of the Skin: Rethinking, Remaking, and Reclaiming the Body in Contemporary Capitalism (“Além da periferia da pele: repensando, refazendo e recuperando o corpo no capitalismo contemporâneo”). É uma coleção de escritos que abordam vários temas, mas eu diria que o principal tema que o une é o corpo, como o capitalismo restringiu ou reformou, ou se impôs a nossos corpos, a nós.

Patrick Farnsworth – Minha primeira pergunta é: quais são algumas das coisas mais óbvias que surgem quando você explora como o corpo foi transformado sob o capitalismo?

Silvia Federici – Esse é um tema que comecei a desenvolver em Calibã e a Bruxa. O terceiro capítulo é sobre a luta contra o corpo rebelde. Me inspirei pelo fato de que, quando o movimento feminista começou, na década de 1970, ele costumava se referir à sua política como a “política do corpo”.

Vimos que na história do capitalismo, as mulheres foram submetidas a uma disciplina muito mais intensa que os homens. Vimos que o capitalismo atingiu mais profundamente nossas vidas, apropriando-se não apenas de nosso trabalho, mas de todo o nosso corpo. Refiro-me ao controle do estado sobre nossa capacidade reprodutiva, procriação e sexualidade.

Isso ocorre porque nossa capacidade reprodutiva foi colocada ao serviço da reprodução das pessoas trabalhadoras. Assim, em Calibã e a Bruxa, prestei especial atenção em como o capital e o estado se apropriaram de nossos corpos e os transformaram. Em Beyond The Periphery of the Skin, examino a luta que das mulheres para libertar seus corpos do domínio do Estado e de seus limites.

O que une o livro, conforme refletido no título, é a ideia de que não podemos libertar nossos corpos ou mudar nossas identidades, a menos que alteremos as condições materiais de nossas vidas e reconheçamos que nossos corpos são constituídos, a todo momento, por relações com outras pessoas e com o mundo social e natural circundante.

Nesse sentido, Beyond the Periphery of the Skin é polêmico em relação às principais tendências da ciência contemporânea, que explicam o que acontece com o nosso corpo, no caso de doenças, por exemplo, com base em genes anormais. O mundo celular do gene é representado como uma realidade fechada, não mais moldada por sua relação com todo o organismo. No entanto, a coisa mais surpreendente sobre nossos corpos é que todas as partes estão interconectadas e contínuas com o que está fora delas.

No caso de doença, isso significa que as causas ambientais são muito mais importantes como patógenos do que genes desviantes. Este é um tema que, de certa forma, nos leva de volta à concepção renascentista do corpo, onde o ‘microcosmo’ (o corpo) está conectado ao ‘macrocosmo’ do universo, as estrelas.

Então, penso no corpo de uma maneira muito expansiva. Isso significa que, se queremos mudar nossos corpos, devemos mudar a forma como trabalhamos, que acesso temos à riqueza produzida, à natureza. Temos que agir não apenas no próprio corpo, mas também nas condições materiais que moldam nossas vidas, que decidem o que o corpo pode ou não fazer.

O livro é construído como argumento. Começa examinando formas particulares de exploração e depois passa para como podemos recuperar nossa subjetividade, nossa realidade corporal, e termina com um elogio ao corpo dançante, que é uma exploração do corpo em seus poderes e possibilidades. Nesse processo, abordo algumas teorias contemporâneas, para ver como elas são úteis e alguns de seus limites.

Na primeira parte do livro, eu critico o movimento feminista, quase que exclusivamente, sobre o aborto, resumido na suposição de que o direito ao aborto é uma “escolha reprodutiva”, enquanto o controle sobre nosso corpo significa também poder parir as crianças que quiserem e sob condições seguras. Como enfatizaram as ativistas do movimento ‘Justiça Reprodutiva’, chamar o aborto de “escolha” ignora que não ser forçada a procriar contra a nossa vontade é apenas a parte negativa do controle, mas da escravidão até o presente, mulheres pretas e pardas nos EUA têm sido negadas o direito à maternidade. Argumento que não é uma contradição que, embora algumas mulheres tenham sido forçadas a procriar, outras sejam praticamente criminalizadas se o fizer. A classe capitalista quer decidir quem pode se reproduzir e quem não pode, da mesma maneira que quer decidir quem pode viver e quem deve morrer. As mulheres negras e indígenas frequentemente enfrentavam esterilização, especialmente quando estavam em assistência social. Desde o final da década de 1970, vimos uma política de esterilização aplicada em larga escala a mulheres em todo o mundo colonial anterior, para impedir, acredito, o nascimento de uma nova geração de pessoas africanas, latino-americanas e caribenhas lutando para recuperar a riqueza que foi tirada dessas regiões. Foi após a luta anticolonial que os demógrafos começaram a falar de uma “explosão populacional” e da necessidade de “controle populacional”. Serviu também para justificar a existência de pobreza em meio a um acúmulo obsceno de riqueza corporativa, e mudar a culpa da exploração colonial, antiga e nova, para as mulheres do mundo, acusadas de ‘produzir’ muitas crianças. Essa ideia se tornou um mantra com o Banco Mundial.

Na segunda parte do livro, analiso novas questões e teorias que estiveram no centro dos debates sobre ‘política de gênero’ como, por exemplo, a teoria da performance.

Como escrevi, “performance” é um conceito útil, mas devemos ver seus limites: em muitos atos, muitos exemplos de performance são de fato motivados por restrições enraizadas na divisão do trabalho capitalista. Quando uma mulher passa batom, quando faz dieta, age sexualmente de uma certa maneira, geralmente o faz por causa das expectativas sociais ligadas ao seu papel de trabalhadora reprodutiva, como uma pessoa cuja tarefa social é servir os homens, para fornecer serviços sexuais / emocionais a eles, e cuja sobrevivência econômica geralmente depende disso.

Em outras palavras, os atos de “performance” são gerados / motivados por um sistema de compulsões, referente ao que as mulheres precisam fazer para serem socialmente aceitas e para sustentar a si mesmas e a seus filhos dentro de um sistema específico de exploração e uma divisão específica do trabalho. Eu queria chamar a atenção para a falta na teoria da performance de um reconhecimento de que vivemos em um sistema capitalista de exploração que estrutura como agimos, este é um sistema contra o qual podemos lutar, mas também a um grande custo.

Covid-19 expôs o caráter sistêmico das desigualdades que estruturam nossa sociedade. Vimos que 80% dos que morrem de Covid são pessoas da comunidade negra, pessoas cujas vidas, mesmo sem as epidemias, correm um perigo constante, e não apenas por causa da brutalidade policial, mas por causa da discriminação persistente em todos os aspectos de suas vidas. 

Isso significa que não podemos ter uma sociedade não-racista, a menos que haja uma mudança radical na distribuição de riqueza, na organização da habitação, educação e saúde. Este argumento tem implicações também para a questão da identidade sexual. Por mais crucial que seja a capacidade de uma pessoa de mudar sua identidade sexual, a luta para garantir sua possibilidade deve estar ligada à dos movimentos de luta contra a exploração do trabalho e, mais amplamente, à lógica que molda a organização capitalista da vida.

Sim, algo que surge para mim como uma pergunta é a maneira como muitos dos valores do capitalismo foram completamente internalizados ao longo de centenas de anos, tanto que até as demandas que estão sendo feitas na política e nos movimentos esquerdistas são fundamentalmente moldadas pelo capital. Essa deve ser uma das maiores lutas das quais nunca podemos nos livrar completamente como esquerdistas. Sinto que você abordou isso em seu trabalho.

Sim, a necessidade de criar uma sociedade não dirigida pela lógica do desenvolvimento capitalista é um tema central do meu trabalho e, com o tempo, também moldou minha relação com o marxismo. Boa parte da esquerda ainda vê o desenvolvimento capitalista como condição para a nossa luta.

Existem até pessoas agora que acreditam que você precisa acelerar o desenvolvimento capitalista porque isso acelera a crise capitalista. E há muita celebração acrítica das novas tecnologias, embora esteja claro que grande parte da devastação ecológica do mundo se deve à produção de computadores e iPhones.

Nós devemos mudar nossa concepção da riqueza social. E, nesse sentido, a pandemia do Covid-19 tem sido um livro didático. Ela nos mostrou como a destruição do ambiente natural — a contaminação do ar, das águas, dos alimentos que ingerimos, intensificada pelo racismo e outras formas de discriminação social — enfraquece nosso corpo, nos torna vulneráveis a doenças.

Existem epidemias porque a terra está doente e nossa sociedade também. Nas comunidades indígenas do México, Guatemala, quando uma criança nasce, as mulheres enterram a placenta no solo para significar o vínculo profundo e quase sagrado entre as pessoas e a terra.

Na América Latina, as mulheres também falam de “meu corpo, meu território” (“mi cuerpo mi territorio”). Isso significa que nossos corpos são nossa primeira linha de defesa e também que o que colocamos na terra é o que entra em nossos corpos. Portanto, é claro que as chamadas “condições pré-existentes” são, acima de tudo, as condições sociais de um sistema capitalista que desvaloriza nossas vidas, e especialmente as vidas das pessoas cuja exploração foi mais crucial para o acúmulo de riqueza capitalista.

Em suma, não podemos ter um corpo saudável, a menos que tenhamos uma terra saudável, a menos que paremos de queimar as florestas, respirar o ar que não está contaminado, produzir alimentos que não sejam envenenados por pesticidas. Mesmo se Covid desaparecesse hoje, ainda morreríamos de câncer, desnutrição, depressão.

O que nunca é mencionado nas estatísticas sobre mortalidade que ouvimos todos os dias, é que em 2019, mais de 47,00 pessoas morreram de suicídio nos EUA. Essa é outra poderosa razão pela qual nossa “política corporal” deve ir “além da periferia da nossa pele.”

Eu estava pensando sobre esta crise com essa pandemia e como parece, como você disse, desnudar o capitalismo. E imagino que no período medieval, quando a peste bubônica varria a Europa e a Ásia, isso teve um impacto social e econômico semelhante. Se você pudesse falar sobre isso, talvez pudéssemos fazer comparações e possamos ver algumas das grandes coisas que surgiram disso, e algumas das coisas obviamente terríveis que surgiram disso também.

As epidemias têm muito pouco a ver com a natureza. São sempre fenômenos criados pelo ser humano, porque as epidemias se espalham com a circulação de bens e pessoas. A peste bubônica foi trazida para a Europa do Oriente e circulou com o comércio. Alguns dizem que as cruzadas foram um disseminador. Eliminou mais de um terço da população europeia e criou uma terrível turbulência em dois níveis. Primeiro, o fato de tantas pessoas morrerem deixou muitas pessoas indiferentes ao perigo de infecção, sentindo que a vida era tão precária que era melhor vivê-la.

Além disso, o fato de tantas pessoas morrerem causou um colapso da economia fechada que dominava na Idade Média. Enquanto os campos ficavam vazios, as pessoas se deslocavam de um lugar para outro, tomando posse da terra. Nas áreas urbanas, o custo do trabalho aumentou, os protestos sociais aumentaram. Por um tempo, devido à escassez de mão-de-obra, pessoas trabalhadoras urbanas assumiram o controle. Mas logo a reação começou, com até tentativas de impor novas formas de servidão.

Historicamente, as epidemias também desencadearam perseguições. A partir do século XIV, as epidemias de peste bubônica tornaram-se uma justificativa para massacres — de judeus, acusados de espalhar a contaminação. Mais tarde, no século XV, houve outra grande epidemia: a sífilis. Os primeiros casos apareceram em 1485 em Nápoles, durante a ocupação francesa da cidade.

Assim, os napolitanos chamavam de “doença francesa”, enquanto os franceses chamavam de “doença napolitana”. Eventualmente, os nativos americanos foram responsabilizados pela sífilis. Argumentou-se que os companheiros de Colombo a trouxeram de volta do “Novo Mundo”. Então, o discurso de Trump sobre Covid como a “doença chinesa” se encaixa em uma longa história de bode expiatórios.

Outro fator persistente é que as epidemias se espalham especialmente onde as pessoas estão empobrecidas e enfraquecidas pela desnutrição ou pela guerra. Esse foi o caso da Peste Negra e da grande epidemia de influenza após a Primeira Guerra Mundial, e vimos novamente nos últimos tempos, como o empobrecimento causado em muitos países africanos pelos programas de austeridade impostos pelo FMI na década de 1980. Epidemias de meningite, cólera, doenças gastrointestinais e mais tarde ebola. Na América Latina, vimos dengue, zika. Na Ásia, a gripe aviária e SARS. A diferença é que agora as pessoas estão morrendo também na Europa e nos EUA, e é por isso que muita atenção é dada a ela. Mas era uma ilusão pensar que as epidemias poderiam se espalhar pelo mundo e não afetar, por exemplo, a Europa ou os EUA.

A produção de doenças é parte integral do desenvolvimento capitalista. Você não pode ter um sistema capitalista que sistematicamente separe as pessoas das condições de sua reprodução, que empobrece, cria miséria, desloca as pessoas e destrói o ambiente natural, sem o surgimento de novas doenças.

Sabemos, por exemplo, que com a mudança climática, os animais, assim como os insetos, bactérias que eram típicas de certas áreas geográficas agora estão se mudando para outras localidades. Portanto, as epidemias são um sintoma de uma doença mais ampla que está afetando todo o sistema.

Uma pergunta que surge em sua discussão é que, em resposta à Peste Negra na Europa, houve uma reação da classe dominante com a tentativa de subjugar ainda mais as pessoas. Ela queria tirar as liberdades conquistadas durante esse tempo. Haviam cercos de terras comuns e caça às bruxas. O momento em que estamos nos dá a oportunidade de nos libertarmos e fazer perguntas mais profundas, mas também devemos estar muito conscientes de que aqueles que têm mais riqueza e poder usarão todas as ferramentas e meios à sua disposição para nos subjugar ainda mais, e até desenvolvem novas formas de subjugação que ainda nem conhecemos ou reconhecemos.

Sim, já vemos como o presidente está praticamente incitando uma guerra racial, lado a lado com supremacistas brancos agora saindo ao ar livre, como estão os enforcamentos e os constantes ataques a manifestantes. Pessoas pretas estudiosas e ativistas como Michelle Alexander em The New Jim Crow mostraram que, apesar de sua abolição formal, a escravidão foi constantemente reestruturada, com Jim Crow primeiro e depois com o encarceramento em massa.

Portanto, temos que estar vigilantes, para garantir que as reformas não acabem sendo uma reestruturação da maneira como a discriminação racial é organizada. Claramente, a mudança real ocorrerá não apenas quando o sistema policial for abolido, mas também quando a desvalorização da vida das pessoas pretas, que agora molda a política social da habitação, educação, saúde e o chamado sistema de “justiça”, seja completamente erradicada.

Temos que estar preparadas e preparados, porque há uma parte da população nos Estados Unidos que se enriqueceu com terras roubadas e com a escravização de pessoas, e isso não vai parar por nada para reterem seus privilégios. É por isso que, nos Estados Unidos, ainda existe a pena de morte, que é o sistema de apoio de uma sociedade escravista. Quando você vê como é administrado, quem neste país norte americano é executado, você vê o quanto o legado da escravatura ainda está conosco.

O desenvolvimento positivo é que o estado de emergência criado por Covid-19, e o fato da epidemia ter deixado tantas pessoas sem recursos, está levando à percepção de que esse sistema não é sustentável e que não podemos construir uma sociedade melhor, exceto através da ação coletiva.

É impressionante como, em todo o país, as pessoas estão se organizando não apenas para fornecer apoio mútuo, mas também para criar mudanças de longo prazo. Em Nova York, além da organização de apoio mútuo, me disseram que há assembleias populares reunindo pessoas que lutam por moradia, pelo corte de financiamento da polícia e pelo apoio às pessoas na prisão. Um desafio é mudar a maneira como organizamos nossa reprodução cotidiana. Como escrevi em Re-enchanting the World, para poder continuar com uma luta de longo prazo, precisamos criar uma nova infraestrutura reprodutiva e cooperativa.

Tenho uma última pergunta. Vejo pessoalmente e com as pessoas com as quais me conectei, um esforço real e tangível para recuperar o corpo e, em particular, recuperar a autonomia das mulheres. Em seu trabalho, você diz que o controle das mulheres sobre sua capacidade de reprodução foi retirado delas através da medicalização do parto e de outras políticas. Mas vejo atualmente um verdadeiro esforço coletivo para recuperar tradições, conhecimentos e sabedorias ancestrais, e essa é apenas uma manifestação que vi. Então, pergunto: quais são alguns exemplos tangíveis que você testemunhou em que as pessoas estão recuperando o corpo?

Um exemplo é a luta que está ocorrendo não apenas para defender o direito ao aborto, mas contra o que alguns advogados nacionais de saúde chamam de “criminalização da gravidez”, que é um conjunto de políticas que estão praticamente punindo as mulheres, especialmente as pretas, se elas decidirem ter uma criança. Isso ocorre porque vários estados estadunidenses introduziram leis de proteção fetal que criminalizam tudo o que uma mulher faz que possivelmente coloca em risco a vida do feto. Mulheres, por exemplo, que sofreram um acidente de carro ou usaram até drogas legais foram presas por colocar o feto em risco. E agora, em alguns estados, os médicos precisam entrar em contato com a polícia se o exame de sangue de uma mulher grávida parecer suspeito.

As organizações de mulheres pretas e o movimento de Justiça Reprodutiva denunciaram essas práticas. E elas também incentivaram as mulheres a irem ao hospital para parir acompanhadas por uma doula, uma defensora, para garantir que recebam os devidos cuidados e sejam tratadas com respeito.

Também há, como você disse, uma grande circulação de conhecimentos e práticas sobre formas mais holísticas de assistência à saúde e uma desconfiança saudável da medicina institucional. Isso significa que precisamos construir formas de controle comunitário sobre os cuidados que nos fornecem em hospitais, clínicas, para que não enfrentemos sozinhas um sistema médico organizado fundamentalmente para obter lucro.

Lembro-me aqui do movimento popular de saúde que se desenvolveu nos Estados Unidos em meados do século XIX, que tinha um ‘slogan’: “toda pessoa, médica.” Ele se originou da desconfiança das pessoas quanto à profissão médica. As pessoas pensavam que os médicos só se importavam com dinheiro, lançaram esse movimento que, por muito tempo, interrompeu o processo de licenciamento.

Uma questão que hoje precisa de mais atenção é a saúde das crianças. Oficialmente, agora, oito milhões de crianças são tratadas para distúrbios mentais e recebem diariamente comprimidos contra depressão, hiperatividade ou déficit de atenção.

Acredito que essa é uma maneira de medicalizar um problema social, que é a quantidade cada vez menor de tempo e recursos disponíveis para as crianças nesta sociedade, tanto em casa quanto nas escolas, pois, todos os programas criativos das escolas públicas foram eliminados e o ensino é agora principalmente sobre testes.

Para curar e controlar nosso corpo, também precisamos mudar a agricultura e pôr fim à tortura de animais, que agora é a realidade da criação de animais. Se as pessoas tivessem consciência das condições horríveis em que os animais vivem, penso que a indústria da carne entraria em colapso.

Existem animais que nunca levantam as pernas desde o momento em que nascem até o momento do abate porque são tão engordados que seus ossos não suportam seu peso. Deveríamos nos preocupar com essa crueldade também porque somos os próximos na fila. Violência e injustiça são indivisíveis. Uma vez que você aceita tanta barbárie contra alguns seres vivos, inevitavelmente ela se estende além deles.

A experiência de Covid, desse confronto com a morte em massa, e a óbvia incapacidade do sistema de lidar com isso produzirão mudanças reais? Esta é a pergunta que todo mundo está fazendo agora.

O certo é que um novo movimento está crescendo, estimulado pela repulsa à brutalidade policial e ao racismo institucional, mas também motivado pela constatação de que o capitalismo não garante nossa reprodução, o que é uma ameaça para quem não é dono de riqueza.

Precisamos assumir o controle sobre os elementos básicos de nossas vidas, recusar-nos a nos separar de outras pessoas, e recusar-nos a construir nosso bem-estar com o sofrimento de outros.

Isso aponta para o título do seu livro, que é tão bonito e encapsula sua perspectiva: Além da Periferia da Pele, ou seja, o sofrimento que você apontou, a violência praticada contra o mundo animal, não estamos separados dele. Nós comemos isso e, como dizem, “você é o que você come”. Mas eu só quero dizer que você está estendendo a idéia do corpo em si para muito mais do que essa que foi construída sob uma espécie de mentalidade colonialista capitalista pós-iluminista.

Sim. Isso nos conecta a outras pessoas, à natureza, aos animais.

O indivíduo criado por si mesmo não existe e, se existisse, seria a pessoa mais pobre. A ideia do indivíduo solitário é a de uma pessoa que pode ser facilmente derrotada. Os EUA aperfeiçoaram a ciência de dividir as pessoas. A indústria cinematográfica, os programas de TV sempre mostram “o outro” como uma ameaça. Então devemos pensar em nós mesmos primeiro. É assustador pensar que uma resposta a Covid e aos protestos após o assassinato de George Floyd tenha sido um aumento sem precedentes na venda de armas. Três milhões de armas foram compradas nos últimos três meses, muitas por pessoas que nunca tiveram uma arma.

No entanto, isolados, já somos derrotados. Com outras pessoas, não apenas nosso poder, mas nossa imaginação do que é possível se expande. O sentimento poderoso e libertador que temos quando marchamos com outras pessoas, como aconteceu nas últimas semanas, vem desse sentido de que nosso corpo, nossas vidas estão se expandindo, que algo novo está crescendo, que mudanças são possíveis.

Certamente. E vou deixar por aqui, Silvia. Acho que cobrimos tudo, e você explicou e elaborou todos os pontos sobre os quais eu sempre quis falar com você, então realmente agradeço pelo seu tempo. Só quero dizer que o seu livro Beyond the Periphery of the Skin é incrível, publicado pela PM Press e, é claro, o seu livro, Calibã e a Bruxa é incrivelmente importante. Foi importante para mim, pelo menos, já o referenciei muitas e muitas vezes no meu trabalho, por isso tenho que agradecer por tudo o que você tem feito.

Agradeço também todas as pessoas que ajudaram o meu trabalho, que sempre foi inspirado por experiências coletivas e pelos escritos e lutas de muitas pessoas.

Claro. E é linda a maneira como você descreveu. Muito obrigado pelo seu tempo.

*Silvia Federici é escritora, professora e militante feminista. Em 1972, foi co-fundadora do Coletivo Feminista Internacional que lançou a campanha Salários pelo Trabalho Doméstico

Patrick Farnsworth é entrevistador e apresentador do Last Born In The Wilderness, um podcast lançado semanalmente

Tradução: Mirna Wabi-Sabi, produção da Plataforma 9.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Patrick Farnsworth

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