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Quando a Volks vai reparar as imensas queimadas realizadas por ela na Amazônia?

Não basta ter boa intenção e estar empenhado na “causa amazônica” para ajudar a região. É preciso conhecê-la bem, tarefa difícil, árdua e prolongada
Lúcio Flávio Pinto
Amazônia Real
Manaus

Tradução:

No mês passado, a Volkswagen acertou um acordo com o Ministério Público Federal em São Paulo para reparar sua conduta durante a ditadura no Brasil. Através de um Termo de Ajustamento de Conduta, a empresa se comprometeu a doar 36 milhões de reais para iniciativas na defesa de direitos humanos, investigação de crimes da época e à memória histórica.

Desse total, R$ 16,8 milhões se destinarão à associação de trabalhadores da empresa, principalmente a ex-trabalhadores da multinacional alemã no Brasil, ou seus sucessores legais. Com isso, serão encerrados três inquéritos civis, em tramitação desde 2015, instaurados por funcionários que declararam terem sofrido violações de seus direitos durante a ditadura. Os pagamentos serão efetuados em janeiro do próximo ano.

Relatório elaborado por um historiador alemão em 2017, a pedido da empresa, constatou que seis trabalhadores foram presos e pelo menos um foi torturado no interior da fábrica, em São Bernardo do Campo, no ABC paulista.

Com o acordo, a Volkswagen diz promover o esclarecimento da verdade sobre as violações dos direitos humanos na época, como “a primeira empresa estrangeira a enfrentar seu passado de forma transparente durante a ditadura”.

Não basta ter boa intenção e estar empenhado na “causa amazônica” para ajudar a região. É preciso conhecê-la bem, tarefa difícil, árdua e prolongada

Acervo Público do Estado de SP, feita por Alberto César Araújo.
Colagem digital feita a partir de imagens da NASA, Acervo Público do Estado de SP, feita por Alberto César Araújo.

Esta é a oportunidade para rever, esclarecer e cobrar a responsabilidade da Volks por outro crime que cometeu no Brasil. Em 1976, a estação espacial americana Skylab, que orbitava a 930 quilômetros da Terra, fotografou o maior incêndio já registrado pelo homem até aquele momento. O fogaréu queimava no sul do Pará.

Quando os cientistas da Nasa (a agência espacial americana), que monitoravam o satélite, enviaram a imagem ao Brasil para ser esclarecida, foi um escândalo. Um cientista de São Paulo chegou a declarar, em Belém, que a queimada atingia um milhão de hectares. E bradou aos céus, de onde viera a informação, por providências.

A primeira foi identificar o autor do crime. Era a Volkswagen. Ela abria uma fazenda, a Companhia Vale do Rio Cristalino, em 139 mil hectares no município de Santana do Araguaia. Era um fato inédito na sua história de 40 anos, iniciada sob o regime de Adolf Hitler na Alemanha, com um carro revolucionário, por dispensar o uso de água no radiador: pela primeira vez a grande indústria deixava de lado a sua especialidade, a montagem de veículos automotores, para montar bois, o que jamais fizera.

O incêndio, na verdade, atingira “apenas” 1% da superfície anunciada. Eram impressionantes 10 mil hectares (área de 100 quilômetros quadrados), mas a enorme diferença de valores amorteceu o impacto da revelação. Aos poucos, depois de muito estardalhaço sobre o valor da multa, que equivaleria à soma de todo o investimento do projeto (porque a multinacional não fora autorizada a queimar a mata), o assunto foi sendo esquecido. Acabou arquivado. Mas devia ser lembrado sempre. Ajudaria a corrigir tantos e tão graves erros cometidos ao se tratar da complexa Amazônia. Então como agora.

O primeiro: não basta ter boa intenção e estar empenhado na “causa amazônica” para ajudar a região. É preciso conhecê-la bem, tarefa difícil, árdua e prolongada. O cientista denunciante, que dirigia o Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), de Manaus, embora uma autoridade, disse um absurdo.

Qualquer pessoa com conhecimento de campo da Amazônia saberia que é impossível queimar um milhão de hectares de uma só vez, numa única temporada de verão. Pode parecer algo factível para quem se informa sobre a Amazônia à distância ou por via indireta (livros, jornais, internet, televisão). Mas para quem vê com os próprios olhos os acontecimentos e sabe o suficiente para definir parâmetros, era um absurdo. Mesmo que dito com a melhor das intenções, com as quais, como se sabe, pode-se ir ao inferno.

Por causa desse erro atroz, embora bem intencionado, foi deixada de lado a necessária investigação sobre o maior incêndio de todos os tempos, praticado em plena floresta tropical. Como a Volks, com um contingente de trabalhadores (os maltratados “peões”, escravos da nova era de descobrimentos) 10 vezes inferior ao maior desses exércitos de desmatadores em ação, que era o que a Jari utilizava, conseguiu igualar a área de derrubada na mesma época pelo milionário americano Daniel Ludwig, um pouco superior a 10 mil hectares?

Não só por recorrer ao fogo, que Ludwig rejeitava em sua imensa área, de 1,6 milhão de hectares (o desmatamento na Jari era mecânico, com o uso da maior quantidade de motosserras na América Latina). Mas porque, talvez, quem sabe, a Volks aplicasse o agente laranja.

Havia um grande estoque desse herbicida, que já não era mais empregado pelos Estados Unidos na guerra do Vietnã, para desfolhar as árvores e expor os esconderijos e os campos de arroz dos vietnamitas do sul e vietcongues. Sua eficiência era comprovada. E seus malefícios, arrasadores. Entre outras sequelas, provocava câncer.

O governo americano teve que realizar, junto com o governo local, a descontaminação das áreas atingidas pela propagação desse fósforo químico. É trabalho para muito tempo. E não eliminará os danos que já causou a milhões de nativos e milhares de americanos, também contaminados por seu próprio veneno.
Já a Volkswagen, como milhares de outros investidores, recebeu dinheiro do tesouro nacional, a partir de renúncia fiscal da União.

O governo federal deixava de recolher parte do imposto de renda devido pelos empresários para que a Amazônia se desenvolvesse em maior velocidade, através da iniciativa privada. Não era crédito, que retorna à fonte, mas subsídio mesmo. Desenvolver a Amazônia seria menos difícil e mais barato. Devastá-la, mais ainda. A proporção chegou a ser de 75% de recursos públicos para 25% de capital privado, dinheiro nem sempre corretamente aplicado.

Às vezes a contrapartida do investidor particular era fraudada, fictícia. Também acontecia de o empreendimento fracassar, pondo a perder tudo que fora feito a partir da eliminação da paisagem original.

Foi o que sucedeu com a fazenda da Volks. Ela acabou sendo vendida sucessivamente. Ao invés de abrigar um grande rebanho do melhor gado do mundo, como a empresa pretendia, se tornou um assentamento rural. Desses assentamentos fadados a ter vida curta e não dar certo também.

Uma vez vendida a madeira da área, a permanência da maioria dos beneficiados pela suposta reforma agrária se torna improvável.

O episódio, contudo, teve também um aspecto positivo. Por causa do impacto mundial, o governo militar, promotor e avalista do processo de ocupação da Amazônia, através de colonizadores externos, teve que fazer uso da mesma tecnologia de ponta para dar uma resposta à comunidade internacional sobre aquela façanha negativa (o que colocou o Brasil na vanguarda desse tipo de tecnologia). Para terem efeito, as medidas corretivas precisam ter o reforço da pressão externa.

Um levantamento que então se procedeu, a partir da interpretação de imagens de satélite, revelou que, até 1976, apenas 0,8% da Amazônia tinha tido sua cobertura vegetal alterada pelo homem. A “última grande fronteira mundial de recursos naturais” mal tinha sido arranhada: era, como observou Euclides da Cunha, na primeira década do século XX, a página do Gênesis que Deus deixou para o homem escrever.

Hoje, 46 anos depois do incêndio recorde da Volks (que nunca mais voltou a pensar em montar bois), a alteração se aproxima de 20% da superfície amazônica – a uma velocidade menor, mas sempre constante, e cumulativa, com a perspectiva de se tornar irrecuperável. Se quer pagar pelos crimes que cometeu em relação à violação dos direitos humanos durante a ditadura, a Volkswagen precisa remir também a sua culpa pela destruição da natureza na Amazônia.

Lúcio Flávio Pintopara Amazônia Real


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Lúcio Flávio Pinto

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