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Prisão de Belo após show na Maré é “racista e motivada por preconceito”, diz professora

Especialista em direito penal, aponta “seletividade” na prisão do cantor após realizar um show no sábado no Rio: “não se tem notícia de prisões em evento no Jockey Clube”
Caê Vasconcelos
Ponte Jornalismo
São Paulo (SP)

Tradução:

O cantor Marcelo Pires Vieira, conhecido como Belo, virou alvo da Polícia Civil do Rio de Janeiro após realizar um show no Complexo da Maré, na zona norte da cidade, no último sábado (13/2). As imagens da aglomeração do show circularam pelas redes sociais durante o fim de semana.

O show foi realizado dentro de uma escola estadual na Favela Parque União, na Maré, e o cantor foi preso nesta quarta-feira (17/2) durante a participação em programa de rádio, na cidade de Angra dos Reis. Para a Polícia Civil, Belo praticou os crimes de epidemia, esbulho possessório e organização criminosa.

Belo foi encaminhado para a DCOD (Delegacia de Combate às Drogas), na cidade do Rio de Janeiro, onde prestou depoimento. Segundo o G1, o cantor informou que não tinha conhecimento do local do show e não teve contato com ninguém do tráfico de drogas. Ainda de acordo com o G1, a polícia teria encontrado em sua casa dinheiro e duas pistolas .40, registradas legalmente no nome do cantor.

O desembargador Milton Fernandes de Souza, segundo a Folha, aceitou o pedido de habeas corpus solicitado pela defesa do cantor, que foi solto na manhã desta quinta-feira (18/2).

Para Luciana Boiteux, professora de Direito Penal e Criminologia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e doutora em Direito Penal, a prisão de Belo é “racista e motivada por preconceito contra a favela e os territórios”.

“[A prisão é uma] tentativa de impedir, inclusive, que se faça cultura. É claro que temos que entender que não deveria ter sido autorizado, e não foi, e nem deveria ter ocorrido esse evento, mas a questão é a utilização da prisão, do sistema punitivo, para lidar com essa violação, e que não é utilizada em nenhum outro caso”.

Boiteux explica, ponto por ponto, a ilegalidade da prisão do cantor. “Epidemia é um crime que você teria que ter causado, então acusar o Belo de epidemia, em um país em que o governo federal faz o que faz, já seria uma absoluta contradição. Ainda em relação às condições sanitárias, ele teria que ser o responsável pela organização e ele estava ali como artista”.

“O esbulho possessório é em relação à escola e também deveria ser investigado e me parece um crime não existente no caso. A organização criminosa é típica e se destina a homens negros que tem alguma relação com áreas culturais ou familiares nas favelas, que são territórios vistos pelas polícias como controlados pelo crime organizado aqui no Rio”, explica.

Especialista em direito penal, aponta “seletividade” na prisão do cantor após realizar um show no sábado no Rio: “não se tem notícia de prisões em evento no Jockey Clube”

Foto: Reprodução/Instagram
Belo foi preso após show no Complexo da Maré, zona norte da cidade do Rio de Janeiro

A especialista também aponta que as duas passagens anteriores de Belo influenciaram na prisão. O cantor foi condenado em dezembro de 2002 a seis anos de prisão, acusado de associação ao tráfico. Ficou preso um mês e teve o direito de responder em liberdade. Em novembro de 2004 foi preso novamente após o Ministério Público recorrer da decisão anterior. Dessa vez, Belo passou três anos e oito meses preso.

“O Belo tem registros anteriores de prisão nos quais ele, por ser um homem negro e um homem negro que alcançou destaque, mas manteve ligações e conexões com a favela, a família e amigos, eu vejo aqui como um exemplo da seletividade, em especial da Polícia Civil do Rio de Janeiro, que pouco investiga e quando investiga quer pegar pessoas como o Belo e atribuir a ele crimes que não tem nenhuma base”, aponta Luciana Boiteux.

A professora também aponta para “seletividade da atuação da polícia”. “Podemos verificar que diversas aglomerações que vem acontecendo e eles não atuam em nada. Tivemos aqui na sexta passada (12/2) uma situação de um evento no Jockey Club, na zona sul da cidade, que é um lugar onde a elite frequenta, e estava ocorrendo uma festa ali, com uma delegacia quase ao lado, e não se tem notícias de prisões. Mas quando o show é na favela a prisão preventiva é a lógica”.

A prisão, finaliza Luciana Boiteux, é “uma tentativa de criminalizar as favelas, com a utilização da polícia e acusações de ligação com o tráfico”. “Isso mostra a precariedade dos processos de investigação, em que a polícia não investiga e ela dá respostas superficiais, na maioria dos casos, e tem foco não no grande traficante, não naquele que financia o tráfico e produz, que faz tráfico internacional e ganha dinheiro, a polícia quer legitimar mecanismos de controle social e racial sobre os moradores de favelas. Isso fica muito claro no Rio de Janeiro e temos que repudiar”.

Ativistas de direitos humanos e moradores de favelas do Rio de Janeiro se manifestaram nas redes sociais questionando a prisão do cantor. A socióloga Buba Aguiar usou o seu Twitter para repudiar a prisão. “Isso é muito mais sobre o lugar do que sobre o cantor”, afirmou.

“E não, não é passando mão em cabeça de gente irresponsável se aglomerando em eventos em favelas não. É sobre o 2 pesos e 2 medidas. Não só sobre a seletividade da repressão, mas também o tom criminalizatório disfarçado de preocupação”, completou Buba.

O advogado Joel Luiz, fundador do Instituto de Defesa da População Negra, também questionou a prisão em seu Twitter. “Evento no Jockey club – Interdição e nenhum detido. Evento na Maré – até o cantor vai preso. Não estou falando sobre a aglomeração, estou falando sobre seletividade”.

A deputada estadual Monica Francisco, do PSOL-RJ, também usou a rede social para questionar a prisão. “As aglomerações não param no Rio de Janeiro, mas a punição continua seletiva e racista. Na Favela, gera prisão e na Zona Sul…”.

O que diz o cantor

Em longa nota publicada em suas redes sociais, a assessoria de Belo informou que ele, sua família e equipe ficaram “surpresos e consternados” pelo mandado de prisão cumprido pela Polícia Civil do Rio de Janeiro.

“O show foi legalmente contratado pela produtora Série Gold, conforme comprovam notas fiscais e outros documentos já entregues às autoridades. O espanto se dá em razão da prisão ter ocorrido mesmo após parecer contrário do Ministério Público e também da falta de isonomia quando se trata de apresentações artísticas durante a pandemia da Covid-19, pela qual Belo teve a saúde acometida há três meses e a agenda cancelada integralmente há um ano”.

A assessoria também afirmou que, ciente da gravidade da crise sanitária, o cantor pedia desculpas por ter se apresentado em uma aglomeração. “O cantor retomou há pouco uma agenda parcial de shows, com compromissos ainda insuficientes para reverter o prejuízo dos meses em que esteve impedido de trabalhar, enquanto indústria, comércio e outras atividades de lazer — inclusive as casas de show — voltaram a funcionar, ainda que com restrições. Como qualquer brasileiro, Belo é um cidadão com contas a pagar por meio de sua atividade profissional e sempre o fará sem distinções, principalmente de classe social”.

Show de Belo na Maré teve aglomeração | Foto: Reprodução/Redes Sociais

A assessoria também completou que não foi o primeiro e nem o último evento em que a aglomeração fugiu do controle dos organizadores. “No entanto, chamou atenção das autoridades, de maneira mais expressiva, justamente um episódio na Maré, uma das maiores favelas cariocas, onde eventos culturais já são comumente reprimidos pela ideia de que os moradores de comunidades não merecem vivenciar a arte da mesma maneira do que aqueles que residem em áreas mais ricas da cidade”.

“Ecoando o questionamento feito ao longo do dia nas redes sociais, a equipe de Belo também se pergunta se a situação seria a mesma caso o show ocorresse em bairros da Zona Sul e com artistas de gêneros musicais menos negligenciados do que o pagode. Um exemplo dessa distinção é o fato de não haver registro de prisões na interdição de um baile de carnaval realizado na mesma data, na Lagoa”.

O que diz a Polícia Civil

A reportagem procurou a assessoria da Polícia Civil do Rio de Janeiro, questionando os crimes que Belo foi acusado e questionando o motivo de outras aglomerações, feitas em áreas ricas, não tiveram o mesmo tratamento. Mas, até o momento, não recebemos retorno.

Caê Vasconcelos, jornalista para a Ponte


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

   

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