Daniel Jadue é uma das figuras mais proeminentes da esquerda chilena. Arquiteto e sociólogo de ascendência palestina, militante do Partido Comunista Chileno (PCCh), do qual foi candidato presidencial e prefeito da municipalidade de Recoleta de 2012 até 2024; ali empreendeu uma série de transformações sociais sem precedentes no Chile que lhe deram um importante apoio popular que transcendeu as fronteiras de Recoleta.
Em 15 de outubro de 2015, Jadue inaugurou o que seria um de seus projetos-estrela como prefeito, a Farmácia Popular Ricardo Silva Soto, tornando Recoleta o primeiro município do Chile a replicar a iniciativa das farmácias populares. Um modelo que questiona o oligopólio farmacêutico por meio de um sistema que permite à municipalidade comprar medicamentos tanto de laboratórios nacionais como estrangeiros, reduzindo o custo da cadeia de distribuição e, assim, oferecendo até 70% de desconto nesses medicamentos.
Em 2016, os oito laboratórios farmacêuticos mais importantes do Chile foram investigados por aumentarem os preços de seus medicamentos na tentativa de boicotar as farmácias populares. A investigação foi realizada pelo Instituto de Saúde Pública (ISP), devido à denúncia feita pelo prefeito de Recoleta. Apesar das diversas tentativas de boicote por parte das farmacêuticas, a iniciativa das farmácias populares cresceu até alcançar 170 municípios chilenos, tornando-se um verdadeiro desafio para os negócios das multinacionais farmacêuticas, que transformaram Jadue em seu inimigo número um.
Em abril de 2024, iniciou-se um processo judicial contra Jadue por suposta “má administração” na Associação de Municípios com Farmácias Populares (Achifarp), em função de uma denúncia da empresa Best Quality. A partir de então, começou uma perseguição judicial que ainda continua e que o levou a passar 91 dias em prisão preventiva, encontrando-se atualmente em prisão domiciliar.
De sua prisão domiciliar, Daniel Jadue conversou com o El Salto sobre sua situação judicial, o que restou do levante social chileno de 2019, o governo de Gabriel Boric, o momento político internacional desde a vitória de Trump e sobre o genocídio em curso na Palestina.
Miguel Urbán Crespo — Qual é sua situação neste momento?
Daniel Jadue — Estou com uma medida cautelar de prisão domiciliar total por uma investigação contra mim que já dura quatro anos. Não estou há quatro anos em casa sob prisão; estou para completar um ano. Passei três meses em prisão preventiva no anexo penitenciário Capitán Yaber. A investigação é sobre supostas fraudes ao fisco cometidas por mim durante a pandemia, sob a forma de compras de insumos médicos e medicamentos para salvar vidas dos moradores de Recoleta, durante meu período como prefeito. O Ministério Público interpretou isso como perda de patrimônio fiscal por decisões mal tomadas.
Recoleta foi um município pioneiro na implementação das farmácias populares no Chile. Em que consistem?
Até o surgimento das farmácias populares, o Chile tinha os medicamentos mais caros do mundo. Não havia medicamento que não fosse vendido com 3.000% de lucro em um mercado absolutamente desregulado. As três maiores redes de farmácias concentram mais de 60% dos pontos de venda e 99% do mercado, tendo sido condenadas por conluio anos antes. Porém, como em todo sistema judiciário dos Estados liberais, a punição não teve efeito prático, e acabaram pagando multas irrisórias sem assumir o custo, o que significou colocar em risco a vida de muitas pessoas que não tinham acesso aos medicamentos.
O que vocês fizeram?
Nesse contexto, avançamos para um sistema que não é apenas a farmácia popular, mas um ecossistema de iniciativas populares que intervinha no mercado — um mercado que cumpre à risca a Constituição de Pinochet, criada por Jaime Guzmán para que o Estado nunca pudesse intervir no mercado. Contudo, encontramos uma brecha que nos permitiu implementar farmácias populares, óticas populares, livrarias populares, lojas de discos populares, imobiliárias populares e energia popular.
Que efeitos teve?
Asseguramos, em todas essas áreas que são muito sensíveis para a vida, que as pessoas paguem um preço justo. Estamos em um país absolutamente neoliberal e, portanto, o máximo que se pode aspirar em termos de assegurar direitos sociais é que se pague o justo e que não haja abuso. Com exceção da saúde primária — hoje garantida como um direito essencial, assim como a educação primária e secundária —, todo o resto são mercadorias que se comercializam a valores de mercado em um mercado completamente desregulado, que ultimamente tem aumentado, como em todo o mundo, o preço das mercadorias para contrabalançar a taxa de lucro do capital em escala global.
Como as farmacêuticas viram isso?
Desde que pusemos em prática as farmácias populares, fomos acusados de que eram inconstitucionais. Mas a lei nos deu razão. Depois houve uma campanha midiática, que ainda hoje se mantém, para dizer que fracassaram. Mas continuam funcionando em mais de 200 municípios dos 340 existentes no Chile. E dentro dessa campanha, durante a pandemia, houve a falência de uma associação de municípios com farmácias populares, porque não puderam pagar os insumos comprados no início da pandemia, que os fornecedores — BestQuality — entregavam por um preço dez vezes superior ao valor dos insumos que compramos antes da crise sanitária mundial. Embora, depois de algumas semanas, o preço e o mercado tenham se normalizado, como aconteceu no mundo inteiro com muita gente, a associação não pôde cumprir os compromissos que havia contraído e, por isso, foi submetida à falência.
O que aconteceu depois?
Essa falência hoje está em discussão porque há a questão sobre se essa associação é uma instituição pública ou privada. Se for privada, pode falir, mas se for pública, deveria ter presunção de solvência e nunca deveria ter falido. E os crimes que me imputam são sob a figura de uma associação pública. Um caso judicial que está atravessado por uma rede de interesses, a própria procuradora é parente direta de um dono de uma rede de farmácias.
Algumas semanas antes da explosão social, Sebastián Piñera afirmou que o Chile era um oásis na América Latina. E de repente, 15 dias depois, o oásis se quebrou. O que resta hoje da explosão?
Primeiro, eu nunca chamei de explosão social, porque o conceito de explosão tem uma armadilha conceitual: faz parecer que a revolta popular foi um fato inorgânico, sem direção, espontâneo, e que, por isso, ninguém pôde prever ou entender. O que aconteceu em 18 de outubro de 2019 no Chile foi que o governo Piñera foi a gota que transbordou um copo que vinha enchendo desde a transição pactuada para sair da ditadura. Um copo que começou a encher em 1990, com protestos e com uma minoria de chilenos convencidos de que precisávamos de uma nova Constituição e de um caminho para superar o neoliberalismo. E, na medida em que esse caminho de transição e superação do neoliberalismo foi desaparecendo das expectativas dos chilenos, os protestos começaram a crescer.
Como?
Primeiro 50 mil, depois 60 mil, 500 mil, um milhão. Em 2001, 2006, 2011, 2014 e 2019. O país explodiu porque tínhamos o pior governo da história e, além disso, um conjunto de ministros que riam das pessoas desde suas torres de cristal, com frases que pareciam tiradas de um romance de Kafka. Por exemplo, lembro do ministro da Fazenda convidando todos os chilenos a comprar flores em um mês em que a inflação tinha subido muito e a única coisa que havia baixado de preço eram as flores. Então saiu o ministro da Fazenda dizendo que os chilenos podiam ir comprar flores. Lembro também da ministra da Saúde daquela época dizendo que as filas insuportáveis dos consultórios, que as pessoas fazem desde às 5h da manhã, eram lugares onde se fazia muita vida social. Outro caso foi quando o custo do transporte coletivo aumentou em 30 pesos e havia faixas horárias de menor custo. Daí o ministro dos Transportes saiu convidando as pessoas a se levantarem duas horas mais cedo para poder usar as faixas de menor valor.
Que efeitos isso teve?
Diziam isso a um povo que estava completamente angustiado, exausto. Que trabalha mais de 12 horas por dia. Mostravam não só uma desconexão, mas um desprezo absoluto pela qualidade de vida das pessoas. Portanto, não foi uma explosão, foi uma revolta que eu, aliás, não assumo com a mesma sensação de derrota que muitos.
Por quê?
Porque, se olharmos para 1990, não tínhamos texto constitucional proposto e éramos uma minoria convencida disso. Em troca, a revolta de outubro conseguiu que hoje tenhamos um texto constitucional com uma proposta maravilhosa, plurinacional, com direitos sociais, direitos trabalhistas efetivos, e com a capacidade dos povos do Chile de intervir na democracia. E que tem 4,8 milhões de votos. Tem mais votos do que todos os presidentes que tivemos no Chile depois da ditadura no primeiro turno.
E o que restou?
O que restou? O mesmo de sempre. Há uma etapa de derrota. E a esquerda tem que sair da derrota, voltar a pegar o texto constitucional que foi derrotado e se levantar para continuar a caminhada. É um processo de acumulação de forças. O processo constitucional tinha uma armadilha: mudava o cadastro eleitoral do plebiscito de entrada para o plebiscito de saída. De entrada era com voto voluntário e, no plebiscito de saída, era com voto obrigatório. Então, no plebiscito de saída, foram obrigados a votar 5 milhões de chilenos que não queriam votar, que estavam irritados com o governo de Boric porque ele havia retirado os auxílios sociais da pandemia e porque também havia rejeitado o quinto saque dos fundos previdenciários após ter aprovado quatro quando era oposição. Foi um voto de manutenção do status quo, mas por rejeição ao então governo, não por rejeição ao texto, que, aliás, não conheciam e que estava submetido a uma campanha de mentiras da direita. Portanto, insisto, é um tremendo avanço civilizatório que 4,8 milhões de chilenos tenham acreditado em uma Constituição que é a que a maioria do povo quer. Hoje podemos seguir.
Estamos quase terminando a legislatura, no próximo novembro serão as novas eleições. Qual é o balanço que você faz do governo de Gabriel Boric?
A primeira coisa é que este governo teve que renunciar ao seu programa de transformações no primeiro turno das eleições em que foi eleito. Porque, nesse primeiro turno, não foi só o presidente atual que chegou em segundo lugar: como no primeiro turno é resolvida a configuração do Congresso Nacional, naquele mesmo dia perceberam que não teriam os votos para desenvolver nenhum processo de transformação. Ao ficarmos com minoria no Congresso, Gabriel teve que abrir o governo ao Partido pela Democracia, que fazia parte da Concertación — mas não só para integrar, e sim para tomar o governo e o programa. A única possibilidade de que esse processo de transformações fosse concretizado era que, em 4 de setembro (de 2022), a nova Constituição vencesse, porque a nova Constituição determinava que o Estado chileno fizesse a proposta de governo.
Era o momento chave.
Havia uma coincidência entre a proposta constitucional e o programa de Gabriel Boric: se a proposta constitucional fosse aprovada, o programa de Gabriel Boric seria um mandato para todos os setores políticos, não só para o Governo. Mas já não era a promessa de transformações que muitos pensavam. De fato, Camila (Vallejo), em 28 de fevereiro, fez uma declaração na rádio ADN dizendo que não seríamos um governo de esquerda. E disse isso textualmente, a 14 dias do início do mandato. Mas durante os primeiros meses restava a esperança do 4 de setembro; depois da derrota do “aprovo”, o governo renunciou abertamente a qualquer mudança possível. De fato, entregou o Governo à Concertación.
Como ocorreu essa entrega?
O primeiro sinal foi quando Carolina Tovar entrou como ministra e avisou ao país que seria aprovado o TPP 11, um tratado que havia sido fortemente rejeitado pelo nosso setor. O próprio presidente, com a ministra porta-voz do Governo, Camila Vallejo, havia liderado a campanha contra o TPP 11. E justamente quando o socialismo democrático entra para tomar o governo, decidem dar passagem a essa medida, gerando um ponto de inflexão que todos já sabem onde termina. De uma coalizão completamente inimiga da militarização do Wallmapu, passamos ao período de militarização mais extenso depois da mal chamada Pacificação da Araucânia, que foi uma campanha muito similar à que Israel pratica hoje em Gaza: de despejo total, destruição de aldeias, violação, assassinato em massa.
Uma guinada de 180 graus.
O que sempre foi ruim passou a ser bom, amparando-se no suposto espírito republicano de consensos com a direita. Portanto, tudo o que foi aprovado depois foi o que a direita permitiu aprovar. Nesse contexto, a base de apoio de Boric, que havia começado em 56%, caiu para 30%. É o que o Governo tem hoje. De qualquer maneira, é muito melhor que os governos de Piñera e que o segundo governo de Bachelet. Mas uma porcentagem absolutamente insuficiente para garantir a continuidade do Governo, sobretudo quando muito insistem que os representantes dessa possível continuidade sejam ministros do próprio governo. Já vimos isso na Argentina com Massa e nos Estados Unidos com Kamala Harris.
Em 16 de novembro de 2025, haverá eleições presidenciais no Chile. Como se apresentam?
A eleição deste fim de ano será uma eleição difícil, na qual os candidatos vão lutar não só contra a avaliação existente do governo atual, contra a avaliação da diferença entre o prometido e o realmente feito. Também enfrentarão a frustração e indignação de um país que ainda não decola economicamente, um país onde os bancos, as Isapres (Instituições de Seguro de Saúde, entidades privadas responsáveis por financiar os atendimentos e benefícios de saúde) e as Administradoras de Fundos de Pensão (AFPs) têm lucros milionários, enquanto a inflação — independentemente de ter sido controlada por este governo — consumiu todos os avanços salariais da classe trabalhadora. Há conquistas, mas não são tão significativas. Alguns pensam que sim. Pode haver essa diferença, mas claramente estamos numa situação em que, probabilisticamente, a eleição está aberta. Ainda assim, sem dúvida a maior probabilidade hoje é da direita, se os candidatos [da esquerda] não forem capazes de seduzir e convencer a esquerda a voltar a confiar nela.
Falemos justamente da direita. Parece que está dividida entre três candidatos: a mais tradicional, representada por Evelyn Matthei, da União Democrata Independente; a ultradireita tradicional, representada por José Antonio Kast, do Partido Republicano; e a irrupção nos últimos meses de Johannes Maximilian Kaiser, conhecido como o Milei chileno, do Partido Nacional Libertário.
A esquerda costuma cometer um erro, porque para mim não existem três direitas, há uma só. São todas a mesma. A questão é que quando a centro-esquerda e a esquerda não perdem oportunidade de errar, a indignação se torna maioria. É quando a esquerda não cumpre sua promessa de transformação e se transforma no defensor mais fervoroso da democracia liberal e da democracia capitalista. E a globalização neoliberal dá espaço para que a direita, em uma estratégia, se divida formalmente para que dentro da direita surja um representante próprio capaz de demonstrar mais empatia com a indignação e frustração. O que aconteceu na Argentina é absolutamente claro. O que acontece com Trump nos Estados Unidos, absolutamente claro.
Em que sentido?
Se Kaiser chegar a ganhar, vai governar com a equipe de Matthei. Se Kaiser chegar a ganhar, vai incorporar a equipe de Kast, porque ele é simplesmente a peça que formalmente representa a indignação na era do enfrentamento. A direita sabe muito bem disso, tem hoje melhores cientistas do que nós. Em algumas áreas, tem melhores especialistas da comunicação política e sabe que hoje há tanta informação no espaço radiofônico, televisivo e nas redes sociais que ninguém tem capacidade para processar e, portanto, ninguém vê mais nada.
É a generalização de um “trumpismo discursivo” em nível global.
Um contexto em que o desafio fundamental já não é comunicar, é captar a atenção. E para captar a atenção, você precisa de alguém capaz de romper todas as normas da conduta democrática e da amizade cívica, que seja capaz de vociferar, insultar, destruir verbalmente tudo de tal maneira que também se identifique com a indignação, para captar a atenção, fazer com que todos fixem o olhar nele e que ele se torne o único candidato. Não é o melhor, mas é o único que se vê, porque todos os outros têm um discurso politicamente correto. E se há algo que deixa as pessoas irritadas e entediadas é o discurso politicamente correto das promessas não cumpridas.
Por quê?
Não podemos esquecer algo tremendamente relevante no mundo: a centro-esquerda e a centro-direita governaram nos últimos 40 anos. Governaram todo o mundo sem contrapesos e não resolveram nada. Por isso, o centro em todo o mundo entrou em colapso. Porque são ineptos, porque são mentirosos, porque, efetivamente, nem sequer conhecem a situação em que vivem os povos do mundo hoje. Ao contrário da centro-esquerda, a direita sabe que a democracia burguesa, a globalização neoliberal, o Estado de direito e o direito internacional já não lhes servem neste momento do capital, porque neste momento a taxa de lucro caiu tanto que a única possibilidade de mantê-la é ficando com tudo. E, portanto, hoje estão dispostos a passar por cima do direito internacional, por cima do Estado de direito para ficar com tudo.
Isso acontece em todo o mundo, tanto na Espanha quanto no Chile, com presidentes teoricamente de centro-esquerda, onde Sánchez aparece como amigo dos marroquinos, enquanto supostamente critica o genocídio de Israel sobre a Palestina, ao mesmo tempo que o alimenta vendendo armas e o financia comprando material militar de Israel. Aqui no Chile é a mesma coisa, Boric critica o genocídio palestino, mas o financia. E vão a Marrocos, ao Congresso Futuro, legitimando a ocupação ilegal do Saara ou apoiando o golpe de Estado no Peru porque renovariam as concessões mineradoras.
O que significa, a nível global, o golpe que ocorreu no Peru em 2022 contra Pedro Castillo?
O exemplo do golpe de estado no Peru demonstra como o capital transnacional não tem espaço para ceder em lugar nenhum, e está disposto a tudo para evitar a possibilidade de que um presidente popular detenha as concessões mineradoras às transnacionais e as devolva ao Estado. O poder corporativo tem que ficar com todos os mercados, com todos os territórios, com todos os povos, e dominar todos. Isso gera a contradição de que eles estão desprezando seu modelo de democracia liberal e nós o estamos defendendo como se fosse nosso.
Me chama a atenção algo sobre o qual você refletiu: como a direita ou a extrema-direita aparecem como antissistema, enquanto a esquerda aparece defendendo a democracia liberal. Quanto mais se radicaliza a direita, mais se modera a esquerda.
Veja, se lembra de quando a esquerda em todo o mundo foi contrária aos tratados de livre comércio? E hoje toda a esquerda está defendendo os tratados de livre comércio e as tarifas zero. E a ultradireita? O trumpismo está defendendo o aumento das tarifas e das barreiras. Protecionismo. O mundo ao contrário.
Inclusive se apropriaram da palavra soberania.
A maior responsabilidade é da esquerda. Porque não podemos criticar a direita por fazer o seu trabalho. Os que não estamos com o povo, os que não estamos disputando o senso comum, os que não estamos disputando a consciência, somos nós. Passamos de estar em todas as ruas e fora das instituições para estar em todas as instituições e fora das ruas. Demoramos 100 anos para nos institucionalizar, tanto que hoje o povo nos olha e sente que somos o mesmo que a burguesia, porque nos tornamos uma classe burocrática de dominação empregada pelo capital transnacional que, por meio dos Estados, nos paga os salários, nos cala e nos esmaga.
Gostaria de voltar sobre o genocídio na Palestina e a ruptura da governança global, sobre como o chamado direito internacional dos direitos humanos está indo pelos ares. Vimos mobilizações em todo o mundo em solidariedade à Palestina. E talvez o Chile seja um dos lugares da América Latina que mais se mobilizou. De fato, o Chile é um dos países do mundo com a mais importante diáspora palestina.
Jerusalém e Santiago do Chile têm as mesmas latitudes norte e sul, portanto têm o mesmo clima, frutas, flora e fauna. Quando, um pouco antes e um pouco depois da Primeira Guerra Mundial, pela primeira vez, judeus e cristãos foram obrigados a se alistar no exército para defender o Império Turco, as famílias começaram a mandar seus primogênitos para fora dos territórios do Império Otomano para que não fossem alistados; eles partiram e se dispersaram pelo mundo inteiro e terminaram estabelecidos nos lugares mais parecidos com o que era a pátria. A gente traça as linhas e percebe que há uma faixa na qual a maioria dos palestinos que estão fora da Palestina se concentrou nas diferentes migrações. Nesse sentido, o Chile tem a maior comunidade palestina de origem cristã fora do mundo árabe. É uma migração que vem do tempo da Primeira Guerra Mundial. Depois, ela se complementa com as diferentes migrações decorrentes das guerras, da partilha colonial, dos processos de independência, da Nakba, da guerra de 1967, da guerra do Canal de Suez e da primeira e segunda Intifada. Por isso temos uma comunidade palestina muito forte, que, por ter primeira, segunda, terceira e até quarta geração, conta com alguns que estão mais próximos da Palestina e outros que estão completamente inseridos na realidade nacional chilena. Militantes em todos os partidos, donos de empresas, presentes nas AFPs, na banca, com classe dominante e proletária.
Como isso influenciou a situação atual?
Conseguimos, ao longo do tempo, desde a década de 1980, transformar o Chile em um país amigo da causa palestina, mas com o mesmo problema de todos os povos do mundo: são povos amigos da causa palestina, mas não seus governos. Nisso sou bem duro, sou bem duro porque minha experiência tem gerado algumas convicções mais profundas e radicais. Eu já não acredito nos amigos da Palestina que são amigos do império, que se solidarizam com a Palestina enquanto permitem a ocupação de outros povos irmãos, como o saaraui, ou de qualquer outro país onde o império faça o mesmo que faz na Palestina. Todas as manifestações mundiais em prol da Palestina são manifestações louváveis, movidas pela sensibilização absoluta de que estamos vendo um genocídio, mas que ainda não têm a profundidade da mobilização consciente. Porque o que acontece na Palestina não é diferente do que acontece no Saara Ocidental, não é diferente do que acontece em Cuba com o bloqueio, não é diferente do que acontece no Curdistão, nem do que acontece hoje com todos os movimentos de emancipação que aspiram a expulsar os europeus do continente africano. Então, hoje estou convencido de que a luta é de classes, do Norte global contra o Sul global. Qualquer matiz nacionalista, chauvinista, religioso, qualquer fundamentalismo, para mim é completamente funcional ao neoliberalismo e ao capital transnacional. E só alimenta os estados de guerra.
Qual você acha que é a solução?
Eu nem sequer sou partidário da chamada solução dos dois Estados. Não acredito nela e nunca acreditei. Sempre fui partidário da tese do Estado plurinacional, laico, democrático, para judeus, cristãos, muçulmanos e ateus. Porque a Autoridade Nacional Palestina jamais vai convencer um habitante de Haifa que já não pode voltar, nem o governo israelense, mesmo que fosse de esquerda, conseguirá convencer os fundamentalistas sionistas de que o território do Nilo ao Eufrates não lhes pertence, porque um Deus, que para mim não existe, lhes deu. Então, aqui o problema não é esse. E temos que entender que o problema não é esse. Por mais irreal, ingênuo e utópico que pareça a solução do Estado plurinacional, acredito que o verdadeiramente utópico é pensar que a solução dos dois Estados seja viável.