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Cannabrava | O Golpe de 1º de Abril de 1964 e Eu

Há 58 anos, Paulo Cannabrava Filho presenciava os horrores da ditadura militar
Paulo Cannabrava Filho
Diálogos do Sul
São Paulo (SP)

Tradução:

Atualizado em 1º/04/2022 às 13:10

Não te rendas jamais, nunca te entregues, foge das redes, expande teu destino.

Eduardo Alves da Costa, poeta rebelde brasileiro 

Num dia 1 de abril, como hoje, há 58 anos, cheguei para trabalhar, na Última Hora de São Paulo, o jornal estava cercado por tropas. Tropas do II Exército, comandadas pelo general Kruel, compadre do presidente João Goulart que estava sendo deposto. Este jornal nunca mais voltou a circular.

Quem depois disso conheceu um jornal com esse nome, sabe que nada tinha a ver com aquele que era rodado no Vale do Anhangabaú, ao lado do Viaduto Santa Efigênia. O jornal tinha edições com redação e impressão também no Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre, Curitiba entre outras cidades. Eu era repórter político no Última Hora e correspondente da agencia de notícias Prensa Latina desde sua fundação em La Habana, em 1960.

Nesse mesmo dia foi invadida e depredada a sede da agencia no Edifício Avenida Central, na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro. Os últimos quatro ou cinco dias haviam sido de enorme tensão. São Paulo exalava cheiro de golpe. No dia 30, tentei falar com Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil do presidente João Goulart. 

Eu tinha informação estratégica e vital. Tampouco com Raul Riff, o secretario de Imprensa, consegui contato. Ocorreu-me então ligar para o professor Santiago Dantas, era o ministro da Fazenda, fora primeiro ministro e nunca se negara a dar-me atenção, fosse por telefone ou pessoalmente.

Atendeu-me seu secretario, José Gregori. Disse-me que não conseguiria interromper o professor. Sem alternativa, dei o recado: Diga pro professor dizer ao Jango que o Adhemar acaba de comprar o Kruel. Estamos todos fodidos em São Paulo. II Exército já aderiu ao golpe. No dia seguinte, utilizando o deputado Sampaio Dória, como fonte, preparei matéria em que denunciava que se articulava aqui o mesmo que havia ocorrido com Mossadeg, no Irã em 1953, ou com Jacobo Arbenz na Guatemala um ano depois. Trabalho intenso da CIA e demais agências estadunidenses. Em torno das onze da noite deixei o jornal e fui pra casa com um travo amargo na garganta. Com dois bebês em casa, um de um ano (Iatã) outro de dois (Iberê). No dia seguinte fiquei sem meus dois empregos. Bia (Beatriz Cannabrava) logo também perderia seu na odontopediatria do Sesc.

Capa da Edição do Última Hora de 1 de Abril de 1964 (Foto: Jornalismo Ibmec)

Os primeiros dias de regime militar foram de extrema brutalidade e ilegalidade. Trataram de neutralizar qualquer tipo de reação que pudesse haver. As primeiras vítimas foram os militares democratas que não aderiram ao golpe e os políticos que conformavam a equipe mais próxima a Jango. Paralelamente intervieram nos sindicatos, queimaram a sede da UNE, expulsaram os melhores professores universitários, empastelaram a Rádio Mairink Veiga e cassaram sua frequência no ano seguinte. Não cabia mais gente nos cárceres civis e militares habilitaram um navio para amontoar presos políticos, sindicalistas, militantes comunistas, militares de alta patente. Instalaram o IPM (Inquérito Policial Militar) da imprensa comunista. 

Expulsaram as missões diplomáticas de Cuba e da China. Os jornalistas cubanos de Prensa Latina, foram expulsos. Aroldo Wall, brasileiro, escapou pra São Paulo, ficou algum tempo em casa até organizarmos sua saída pelo Uruguai. Nós estávamos numa casa alugada no Brooklin, endereço provisório, pouco conhecido, achei que estava seguro. Mas, pelas dúvidas, um amigo com uma corretora me pediu que fosse chefiando uma equipe percorrer fazendeiros no Norte do Paraná. Ninguém me procuraria, concordei. Voltei, a situação geral já não estava tão tensa. Um amigo boliviano mandou um emissário oferecendo uma via de fuga e asilo político. Neiva Moreira, jornalista e deputado, e José Serra, presidente da UNE, entre outros, já estavam lá. Não carecia. 

A Justiça estava funcionando, Habeas Corpus liberando presos, mas, em meio a isso tudo, muita perplexidade, principalmente nas esquerdas. Nesse clima o Correio da Manhã foi o primeiro a dar-se conta de que a intenção dos militares não era a de dar um passeio e devolver o governo para os civis, mas um projeto de longo prazo, que havia que barrar. Foi o primeiro, e sem dúvida o único grande jornal a fazer oposição ao novo regime. Mandaram um emissário me encontrar em casa para convidar-me a reassumir como repórter político. Não demorou muito, eu estava na redação da sucursal do Correio da Manhã, recebi a visita de Dorival de Abreu, dono da Rádio Marconi. Fechada nos primeiros dias do golpe, porque ligada ao trabalhismo de Jango, Dorival conseguira reabri-la e me convidava para, junto com João Adolfo da Costa Pinto, fazer a programação jornalística da emissora. De novo com dois empregos, os dois de alto risco.

O Correio da Manhã, apoiou a campanha pelo respeito à legalidade em agosto de 1961, que garantiu a posse de Jango e, nos primeiros anos do governo não fez oposição. O grande tema em debate posto pelo governo eram as reformas de base. O Correio da Manhã, em parceria com a Folha de São Paulo, organizou o I Congresso Brasileiro pelas Reformas de Base.

Intelectuais e políticos de vários estados, discutiram e produziram documentos sobre Reforma Agrária, Bancária, Urbana, Tributária etc., entregue como subsídio ao governo. O Correio da Manhã tinha mais força e prestígio político que qualquer outro jornal de circulação nacional. Mas, no início de 1964 assumiu uma oposição furibunda. Seus editoriais de capa, Basta e Fora, nos estertores do governo republicano, ajudou a fazer a cabeça da classe média. Não obstante, ainda em 1964, mudaria da água pro vinho e assumiria uma linha de oposição e denúncia. O Correio da Manhã foi o único jornal, e a Radio Marconi a única voz de oposição ao regime. Por isso mesmo, os únicos veículos que não sobreviveram. Ambos não resistiram à fúria de uma direita comandada e financiada pelos Estados Unidos. A Radio Marconi, de 1964 a 1967 foi tirada do ar pela Polícia Federal, a mando de um Departamento de Telecomunicações, controlado pelos militares, pelo menos umas cinco vezes ou mais. Cada vez que tiravam os cristais levavam o Dorival, o diretor proprietário, preso. Como era cardíaco conseguíamos que o internassem em hospital sob vigilância, mas com certa liberdade. 

Há 58 anos, Paulo Cannabrava Filho presenciava os horrores da ditadura militar

Rreprodução: Flckr
Ato Ditadura Nunca Mais

E era solto por habeas corpus ou acordo com juízes corruptos. Deixei a redação em 1967, a radio ainda teve uma sobrevida, mas foi fechada irremediavelmente depois do AI-5. Nem o prédio sobreviveu. Situado na praça da Sé, foi implodido para o alargamento do local. Para se ter uma ideia da força e prestígio político da Marconi, na campanha eleitoral de 1965, elegeu três deputados federais (Dorival de Abreu, David Lerer e Gastoni Righi) e um deputado estadual (Fernando Perroni). Era a emissora preferida dos trabalhadores.

Com as únicas exceções da Última Hora e A Nação, todos os jornalões fizeram oposição a Jango e apoiaram o golpe

Dá enjoo no estômago ver os jornalões, agora, publicando páginas e páginas rememorando o golpe, alguns, cinicamente querendo fazer crer que assumiram uma autocrítica. Com as únicas exceções da Última Hora e A Nação, todos os jornalões fizeram oposição a Jango e apoiaram o golpe. Após 1o de abril continuaram a apoiar. Eles (os donos dos jornalões) lamentam que havia censores nas redações. A censura, que de fato existiu, era contra nós, jornalistas, que trazíamos para a redação informação que o regime não queria fosse pública. Este é um aspecto da realidade. 

Outro, é que em termos de editoriais, cobertura econômica, cobertura política, todos eles lambiam as botas dos militares. Nenhum censor  teve que cortar matérias sobre o fechamento do Congresso, extinção dos partidos; leis como a de Diretrizes de Base que estraçalhou com o ensino no país. Menos ainda, qualquer oposição ao servilismo ao FMI e entreguismo das riquezas nacionais. O único jornal que fez oposição foi o Correio da Manhã. 

O Concil of América, sessão Rio de Janeiro, deu ordem para as agencias de publicidade: nenhum anúncio para o Correio. O novo regime, através do SNI e os EUA através de suas agencias, pressionavam por todos os meios no intuito de afogar para calar o jornal. Niomar Bettencourt Sodré, viúva de Paulo Bettencourt e herdeira do jornal, forçada a ceder, por acordo saíram os doze apóstolos, ou seja, os jornalistas que eram a alma e a raiva do jornal. 

Niomar ainda conseguiu uma sobrevida com apoio de alguns empreiteiros, mas, não tardou para fechar definitivamente. Os demais jornalões cresceram e enriqueceram, apoiados pelos golpistas e o governo militar. 

Rolou muito dinheiro, em moeda nacional e principalmente dólares. Jornalistas recebiam e publicavam artigos de opinião entregues pelas agencias estadunidenses. A CIA tinha dinheiro a fundo perdido, sem precisar prestar contas, para corromper políticos e jornalistas e estava atuando desde 1961. Em 1962, ou 63, não me lembro bem, a Folha de São Paulo, do Otávio Frias de Oliveira, inaugurou novas rotativas na Alameda Barão de Limeira. 

Nas colunas laterais da grande, bela e moderna máquina, o selo metálico da famigerada Aliança para o Progresso. Más tarde esse periódico contribuiu com os organismos da brutal repressão desencadeada contra os resistentes pela democracia. Mário Wallace Simonsen, o rei da Bolsa de Café de Londres, ou seja, o maior comerciante de café do mundo. Fundador e dono da Panair do Brasil e de umas trinta empresas, todas dinâmicas e lucrativas. Era amigo de Juscelino Kubitschek e de João Goulart e apoiou a ambos em suas campanhas eleitorais e em seus governos. Não se pode falar de comunicação nesse período sem falar de Simonsen. 

Simonsen, em meados de 1960 inaugurou em São Paulo a TV Excelsior, que funcionou no Teatro Cultura Artística, na rua Nestor Pestana, na capital de São Paulo, prédio hoje em ruínas após incêndio. Em 1962, também em São Paulo lançou o jornal diário, tablóide, A Nação, mesmo ano em que inaugurou os modernos estúdios para a TV. 

Mais adiante incluiria na rede o Canal II do Rio de Janeiro. A TV Excelsior foi verdadeiramente um fato espetacular na história das comunicações brasileiras. Foi pioneira em tudo. Inventou o telejornalismo e as telenovelas, realizou os primeiros festivais de música, que teriam continuidade anos depois na Record, fez as primeiras transmissões em cores.

Eu estava no Correio da Manhã, com a cabeça pedida pela direção da Light and Power, quando me convidaram para integrar a equipe que estava sendo formada para lançar A Nação, sob o comando do grande mestre, o maior fazedor de jornais que este país já teve, Nabor Caires de Brito. 

Lançou jornais para o Chateaubriand no Rio em São Paulo, lançou a Folha da Tarde, antes de existir a Folha de São Paulo. A Nação se destacou por fazer um jornalismo moderno, ousado (grandes campanhas, com cobertura da TV, como fazer chover em plena seca paulistana), desenvolvimentista e nacionalista, apoio ao pluralismo nas relações exteriores, assim por diante. Mas não durou muito. 

Em 1963 o grupo empresarial decidiu que não valia a pena o investimento sem perspectiva de retorno a curto ou médio prazo. Fechado o A Nação fui pra Última Hora onde fiquei até 1o de abril de 1964. A TV Excelsior se manteve crescendo sempre com a melhor programação do país. Após o golpe os militares investiram com um ódio implacável contra o Simonsen, a ponto de levá-lo ao suicídio. Cassaram a concessão da Panair, uma empresa em crescimento, a única com voos internacionais, queridíssima do público, por puro ódio pessoal. 

Cassaram também as concessões de televisão. Injustificável sobre todos os aspectos. A maior parte do espólio da televisão foi para a Globo e o da Panair para a Varig, empresas que enriqueceram e cresceram à sombra da ditadura. Porém essa já é uma outra história.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1967. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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