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ToggleNesta entrevista, a ativista Dolores Arce, ex-diretora-executiva do Centro de Produções Radiofônicas da Bolívia (Cepra) e ex-chefe das Rádios dos Povos Originários (RPOs) – vinculadas ao Ministério da Comunicação – e operadas por organizações sociais e comunidades, fala da importância da vitória do Movimento Ao Socialismo (MAS) nas eleições do próximo 3 de maio para “a estabilidade, o crescimento e a inclusão do país”. Resgata o papel do ex-ministro Luis Arce Catacora e do ex-chanceler David Choquehuanca – candidatos à presidência e à vice-presidência – para a defesa da soberania nacional e do enfrentamento à submissão política, econômica e cultural.
Na batalha de ideias, defende que é preciso diferenciar dois tipos de mídia, e da relevância do investimento dado pelo governo de Evo Morales à sua democratização. Avalia que há “os grandes meios, que respondem a cadeias de notícias, juntamente aos meios comerciais, que de uma forma muito vergonhosa foram tendenciosos e parciais com os esforços golpistas”, feito por gente que “recebeu mais de 100 milhões de dólares do governo dos Estados Unidos para a preparação e desenvolvimento” da ação criminosa, bastante amparada em policiais e militares. “Por outro lado, os meios de comunicação comunitários, especialmente as rádios ligadas às organizações sociais, que realizavam o acompanhamento diário dos setores populares mobilizados, e foram os únicos que coletaram depoimentos e viralizaram as denúncias pelas redes sociais”.
Para o avanço da democracia e do nível de consciência da sociedade, reitera Dolores Arce, é essencial o investimento “nas rádios comunitárias que transmitem na língua nativa da região, respeitando e espalhando expressões culturais”, que “por isso têm uma alta audiência”. Por isso, quando perguntado sobre o que sentiu ao ver as rádios comunitárias fechadas e queimadas pela ditadura de Jeanine Áñez, disse: “impotência e tristeza, mas também raiva”. “Porque o ataque às rádios comunitárias é um golpe à liberdade de expressão, ao nosso direito de comunicação, um direito humano que está constitucionalizado na Bolívia”, frisou. Também a nível internacional a existência de uma ampla rede de comunicação é chave, avalia, para “a integração como povos irmãos em uma Pátria Grande”. “Esta é nossa única garantia de enfrentar o império e os cartéis que procuram nos dominar para continuar explorando nossos recursos naturais”, sublinha.
Arquivo pessoal
Dolores Arce, ex-diretora do Centro de Produções Radiofônicas da Bolívia (Cepra), destaca a importância da democratização da comunicação
Confira a entrevista
Leonardo Wexell Severo – Prezada Dolores, como ex-chefe das Rádios dos Povos Originários e ex-diretora-executiva do Centro de Produções Radiofônicas da Bolívia, acumulaste uma grande experiência, mas também uma enorme identidade. O que sentiste ao ver tantas destas rádios fechadas e queimadas pela ditadura de Jeanine Áñez?
Dolores Arce – Senti impotência e tristeza, mas também raiva, porque o ataque às rádios comunitárias é um golpe à liberdade de expressão, ao nosso direito de comunicação, um direito humano que está constitucionalizado na Bolívia.
Qual a importância da estrutura radial no cotidiano das pessoas e das comunidades?
O rádio é o melhor companheiro em momentos alegres e tristes, e especialmente na zona rural é de longe o meio de comunicação mais importante, já que em muitos lugares ainda não chega a televisão, nem jornais, pelo menos de maneira significativa. Além de sua natureza oral, esta rádio coleta as experiências e as reflete na programação. Geralmente, as rádios comunitárias transmitem na língua nativa da região, respeitando e espalhando expressões culturais, por isso têm uma alta audiência. Silenciar as rádios é silenciar as vozes de muitos e muitas, é um ataque aos nossos direitos.
Qual foi o papel da mídia boliviana frente aos massacres realizados pelos golpistas para depor o presidente Evo Morales? No caso de Sacaba, onde você viveu de perto o drama dos mortos e feridos, assim como de suas famílias, o que mais chamou sua atenção?
Precisamos diferenciar dois tipos de mídia: por um lado os grandes meios, que respondem a cadeias de notícias, juntamente aos meios comerciais, que de uma forma muito vergonhosa foram tendenciosos e parciais com os esforços golpistas, realizando coberturas unilaterais sem mostrar a crueza dos acontecimentos, demonizando os movimentos sociais, os dirigentes e autoridades ligadas ao governo do MAS. Ao mesmo tempo, eles endeusavam personagens ligados à autodenominada “resistência” ou “pititas”, sem se importar com suas ações violentas e racistas, da mesma forma que os autores dos massacres ganharam carta branca para dar livremente sua versão, que foi validada pela mídia.
Por outro lado, os meios de comunicação comunitários, especialmente as rádios ligadas às organizações sociais que realizavam o acompanhamento diário dos setores populares mobilizados, foram os únicos que coletaram depoimentos e viralizaram as denúncias pelas redes sociais.
O que mais me impressionou foi o infame pacto de silêncio da mídia comercial, que apesar de estar no lugar dos fatos, se fez de cega, surda e muda, em total cumplicidade com os golpistas. É inconcebível que as famílias não tenham recebido atenção. Há mais interesse por parte dos jornalistas do exterior para difundir estes dramas do que a nível nacional.
Para confrontar a hegemonia dos jornais e emissoras de rádio e televisão pelos setores golpistas, de quais instrumentos as forças democráticas dispõem para fazer com que sua mensagem chegue ao eleitor e a voz das urnas seja respeitada?
Temos a força da verdade, mas é uma luta desigual, nossos meios são de menor alcance e estão sendo assustados e silenciados. Temos redes sociais para tentar equilibrar o bombardeio de mentiras. Mas, acima de tudo, contamos com nossos espaços para recorrer a métodos mais personalizados, de porta em porta, em reuniões, no mercado, nos transportes públicos, nos mercados, nos lugares onde as pessoas estão concentradas.
Os constantes atropelos e erros cometidos por este governo golpista e autoproclamado serão parte de nossas ferramentas de conscientização, apelando à memória histórica dos nefastos períodos de neoliberalismo e ditadura de décadas passadas, e compreender que o que está em jogo nesta eleição é não permitir que se consolide o retrocesso que estamos vivendo.
Hoje, mais do que nunca, como avalias a importância da democratização da mídia?
A democratização da mídia é fundamental para superar a exclusão histórica das nossas vozes. Houve um grande avanço nos 14 anos de Evo Morales, foi constitucionalizado pela primeira vez o direito à informação e à comunicação. Além disso, com a Lei 164, de agosto de 2011, se deu um grande passo na democratização do acesso às frequências de rádio e televisão (33% para o setor privado, 33% para o Estado e 34% para social-comunitários e de povos indígenas originários-camponeses).
Lástima é que cinco anos depois, em agosto de 2016, o próprio governo do MAS tenha borrado o que havia escrito. Com a Lei 829 se ampliou o prazo de validade (concedido de 1996 a 2016) das licenças por três anos e, no ano passado, por mais absurdo que pareça, essas licenças foram prorrogadas “por uma única vez” por outros 15 anos, até 2034. Na prática, isso permitiu a consolidação da hegemonia da mídia comercial, que até agora continua com 80% do espectro em suas mãos.
Mas, sem dúvida, hoje temos muito mais meios, e mais diversos, existindo organizações matrizes, entidades camponesas, mineiras, operárias, que contam com meios de comunicação legais, principalmente rádios. Entre os temas pendentes está alcançar a democratização também no acesso às diretrizes publicitárias, a fim de garantir a sustentabilidade dos meios.
Menos de 24 horas após ser indicado como candidato do MAS à Presidência, o ex-ministro Luis Arce Catacora tornou-se vítima de múltiplas acusações de corrupção. Como derrotar uma guerra midiática tão desigual?
Sabemos que por trás desta guerra de perseguição está o medo dos partidos da direita, perdedores, de terem uma nova derrota. Apesar de tanta sanha, perseguição e calúnia, eles não conseguem apagar os resultados do governo do MAS, em que um dos principais artífices da estabilidade econômica foi precisamente Luis Arce Catacora. Por isso, vamos apelar à memória, à recordação desses anos em que não houve apenas crescimento, mas, sobretudo, inclusão social.
O golpe contra o governo de Evo Morales foi patrocinado (apoiado, financiado) por forças externas? Por que isso aconteceu?
De fato, os Estados Unidos vinham planejando esse golpe há muito tempo, já que Evo Morales se transformou numa pedra em seu sapato e um exemplo perigoso de que outro tipo de modelo econômico e político é possível, um Estado plurinacional e soberano.
Os ianques investiram mais de 100 milhões de dólares para a preparação e desenvolvimento do golpe, ou seja, dispunham de cerca de três milhões diários para gastar no acirramento dos conflitos sociais. Isso sem falar dos anos anteriores, com o desgaste pela internet e o financiamento de todos os tipos de ataques ao processo de mudança. Não nos esqueçamos que os Estados Unidos eram o “refúgio” de grande parte dos políticos autoexilados como Goni Sánchez de Lozada, Carlos Sanchez Berzain, Manfred Reyes Villa e tantos outros. Todos eles estavam em contato permanente com a oposição boliviana, para conspirar e financiar atos de violência.
Durante toda a administração do MAS, David Choquehuanca foi ministro das Relações Exteriores, deixando o governo de Evo para secretariar a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba). Como você vê a relevância da integração?
A integração como povos irmãos em uma Pátria Grande é nossa única garantia de enfrentar o império e os cartéis que procuram nos dominar para continuar explorando nossos recursos naturais. Uma integração que vai muito além do modelo impulsionado pelas grandes potências, onde o que manda é a subjugação aos interesses do norte e ao capital.
Nas eleições do dia 3 de maio, além do presidente e vice-presidente, serão eleitos os 36 senadores, 130 deputados e nove deputados supraestatais. Qual é a sua avaliação de cada uma dessas estruturas? Como mulher e moradora de Cochabamba, qual é a sua expectativa dos nomes dos movimentos sociais que se apresentaram para a disputa?
Há uma boa representação de líderes, dirigentes e personalidades na chapa do Movimento Ao Socialismo, embora certamente não faltem os problemas na nominata de candidatos. É difícil satisfazer a todos e concordar, mas acima de tudo deve prevalecer a unidade. Infelizmente, há vários casos de intromissão ou desrespeito às decisões orgânicas que espero não nos custem caro, porque são atitudes que, em vez de somar, subtraem e desmotivam, o que é aproveitado pelos outros partidos.
Existe a eleição de quatro senadores para cada um dos nove departamentos, para deputados uninominais, vinculados ao número de votos do partido na circunscrição eleitoral; e um plurinominal, em função dos votos do presidente. Fale um pouco mais sobre o que esses espaços de poder representam e suas expectativas para a construção de uma nova sociedade.
Na Bolívia, o órgão legislativo é chamado de Assembleia Legislativa Plurinacional, e a eleição de deputados e senadores combina critérios de paridade e alternância, uma representação territorial e populacional.
O número de deputados (as) plurinominais do departamento reflete o número de habitantes, um total de 62 membros. Para garantir a representação territorial, há 68 circunscrições uninominais, não necessariamente com a mesma quantidade de habitantes, mas que garantiram a inclusão de setores e povos indígenas anteriormente invisibilizados. Há também deputados especiais de povos indígenas originários-camponeses, num total de sete representantes, refletindo o caráter plurinacional do Estado boliviano. Da mesma forma, os quatro senadores por departamento, independentemente do número de habitantes, garantem que as demandas e necessidades de departamentos menores tenham o mesmo tratamento que os grandes. Por fim, há os nove deputados supraestatais, com funções específicas de representar o Estado em organismos parlamentares supraestatais, bem como de apresentar e promover projetos de lei voltados ao fortalecimento das relações internacionais.
Ocorreram muitos avanços na democratização desse espaço de poder, que antes de Evo Morales chegar ao governo era reservado às elites e a presença de setores indígenas era inexpressiva. Como órgão encarregado pela construção do marco legal, bem como pela auditoria do órgão executivo, é fundamental defender esse avanço em sua composição, para que nunca mais uns poucos decidam por cima das maiorias.
Leonardo Wexell Severo é jornalista e colaborador da Diálogos do Sul.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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