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Foto: Romina Santarelli / Ministério da Cultura da Argentina

Dor transformada em luta: as lições e as tarefas deixadas por Hebe de Bonafini

Apesar de sua partida física, a praça e as ruas seguem resgatando Hebe de Bonafini, evocando seu exemplo de trabalho e dedicação em defesa dos direitos humanos na Argentina

Glenda Arcia
Prensa Latina
Buenos Aires

Tradução:

Ana Corbisier

Na Praça de Maio, em Buenos Aires, cenário de revoluções e lutas, permanece Hebe de Bonafini (1928-2022), símbolo da mulher na Argentina, da resistência e da denúncia dos crimes perpetrados durante a última ditadura cívico-militar neste país (1976-1983).

Junto com Azucena Villaflor, Mirta Baravalle e Nora Cortiñas, está ela, valente e incansável, a poucos passos da Casa Rosada, no lugar onde tantas vezes exigiram o aparecimento com vida de seus filhos e começou a batalha pela memória, a verdade e a justiça.

Apesar de sua partida física, a praça e as ruas a trazem de volta em cada reivindicação, especialmente diante do crescente negacionismo e dos discursos de ódio, dos ataques à universidade que ela fundou, do aumento da pobreza e de um ajuste feroz sobre os setores mais vulneráveis.

Em cada manifestação estão as Mães da Praça de Maio, a associação que ela dirigiu durante décadas e cujas integrantes lembram, a cada quinta-feira, que render-se não é uma opção.

“O maior legado de Hebe é e será sempre seu ensinamento”, afirma à Prensa Latina a atual representante da organização, Carmen Arias. “Ela nos mostrou que a luta nunca deve ser abandonada porque não é por um tempo, é para sempre. Dizia que aprendeu isso com seus filhos, como muitas outras coisas que eles nos ensinaram”, acrescenta.

Arias também destaca o exemplo de sua companheira e seu trabalho constante em defesa dos direitos humanos na Argentina: “Ela teve o papel mais importante para nós. Sua lembrança está sempre presente. Às vezes é doloroso e a gente se emociona, mas pensamos nela cada vez que temos que decidir algo — o que ela diria, o que faria. Foi e será sempre uma mulher valente, amorosa, desinteressada, que pensava primeiro no outro”, recorda.

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Socializar a maternidade

Por sua vez, o poeta, professor, jornalista e militante da associação, Demetrio Iramain, afirma que o maior legado de Bonafini é a marca que imprimiu às Mães: “Trata-se de uma organização coletiva, fruto da luta de um grupo de mulheres único em nossa história — mães de militantes políticos”.

Autor do livro Hebe e a fábrica de chapéus, entre outros textos, Iramain explica: “Elas decidiram encarar uma batalha muito importante, que consistiu primeiro em sair à procura dos desaparecidos, depois em reivindicá-los e, finalmente, em socializar a maternidade — isto é, não lembrar individualmente de cada um deles, mas sim de todos em conjunto, sem dividi-los por organização, pertencimento ideológico ou método de luta”. E segue: “Defenderam todos igualmente e os chamaram de revolucionários. A grande líder, ou a síntese dessa construção política, é Hebe”.

Bonafini foi a presidenta das Mães desde 1979, após ser eleita por suas companheiras na primeira formação da associação. Manteve esse cargo até o último dia de sua vida, em 20 de novembro de 2022. “Não era um posto formal, mas sim algo que se validava quinta-feira após quinta-feira, fato após fato, em todas as conjunturas que tiveram que enfrentar”, acrescenta.

Iramain lembra ainda que, para Bonafini, as melhores mães foram Azucena Villaflor, María Eugenia Ponce e Esther Ballestrino, desaparecidas desde 1977 pelas forças do regime. Sabe-se que essas três mulheres, que foram extraordinárias e absolutamente fundamentais na formação do grupo, fizeram parte dele por menos de um ano — de 30 de abril até dezembro de 1977, quando foram sequestradas.

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“A partir daí surgiu um núcleo que as substituiu, dentro do qual está Hebe como figura mais relevante. Seu legado principal é ter construído, moldado, dirigido e sintetizado figuras muito heterogêneas e diversas, e formado um movimento político tão importante quanto ainda é o das Mães da Praça de Maio”, assinala o jornalista. Segundo o escritor, o papel de Hebe na luta pelos direitos humanos está intimamente ligado ao das Mães.

Lutar nas ruas

A Mães da Praça de Maio é uma organização que se diferencia profundamente das demais, aponta Demetrio Iramain. “Para começar, escolheu como lugar para se constituir, se formar e desenvolver sua luta a Praça de Maio, a rua — colocar o corpo à intempérie em plena ditadura militar, algo que nenhuma outra organização de direitos humanos fez. Isso se manteve mesmo depois dos sequestros de Villaflor, Ponce e Ballestrino, o que foi uma grande prova de fogo”, revela.

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Muitos pensavam que era incorreta a estratégia de marchar após esses acontecimentos, mas as Mães sustentaram que era exatamente o contrário, pois consideravam que aquela presença, aquela ocupação política daquele lugar, tinha sido tão forte e eficaz que a ditadura buscou castigá-las.

“Decidiram persistir nesse caminho e assim o fizeram. Várias não queriam sair e foi aí que começou a liderança de Hebe, que ia de casa em casa para convencê-las a continuar, como lhes havia dito Azucena. Evidentemente, elas tinham razão e nunca mais abandonaram a praça desde então”, afirma.

Para Iramain, uma das contribuições mais relevantes dessas mulheres foi transformar a defesa dos direitos humanos em uma luta revolucionária contra o sistema capitalista, pois “as duas coisas não podem coexistir”. Além disso, as Mães não se concentram em dar testemunho do horror, da tortura e da morte, nem em ocupar o lugar de vítimas, mas sim em destacar o que os desaparecidos fizeram — suas ações revolucionárias, a solidariedade, a ousadia, a coragem e o altruísmo que demonstravam em sua prática política.

“Foi isso que nos ensinaram e que saíram para reivindicar. Sempre colocaram aqueles jovens no lugar de sujeitos políticos, e isso também é algo que as distingue e confere a esse movimento uma singularidade muito grande, uma subjetividade absolutamente fundamental”, comenta.

Iramain considera ainda que Hebe é lembrada hoje como uma mulher valente, coerente, que viveu conforme dizia, defendeu sua origem humilde, nunca teve medo de ninguém e sentia um grande amor por seus filhos e uma forte identificação com eles. “Nesse caminho, aprendeu que sua família também eram os 30 mil detidos-desaparecidos. Além disso, destacou-se por sua coragem, pois sabia que não havia outro caminho neste país tão injusto, tão cruel às vezes”, salienta.

É por essas e tantas outras razões que Hebe de Bonafini sempre será lembrada como uma digna mulher de seu povo, orgulhosa de sua origem e dos filhos que teve. Nunca permitiu que se dissesse uma única crítica ou mentira sobre eles, e conseguiu fazer com que aquela geração — a dos revolucionários desaparecidos — ocupasse hoje um lugar de grande destaque, sendo valorizada social e politicamente.

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“Claro que ainda falta, e ela sempre dizia que era necessária, uma grande reivindicação política, vinda da mais alta investidura do Estado”, diz Iramain, que assegura: “Estou certo de que, à medida que o tempo passar, Hebe será cada vez mais importante e será possível compreender melhor sua grande contribuição à tradição de luta do nosso povo”.

Um testemunho de luta

As Mães começaram a se reunir em 30 de abril de 1977 na praça, iniciando assim um extenso caminho ao longo do qual seriam perseguidas, vigiadas, detidas, torturadas e, algumas delas, assassinadas por não se renderem. A partir daquele momento, não sem incontáveis obstáculos e ameaças, continuaram incansavelmente reivindicando, não apenas por seus próprios filhos, mas pelas mais de 30 mil vítimas do regime instaurado pelas chamadas Juntas Militares.

Dessa forma, tornaram-se uma das mais importantes forças de resistência da Argentina, e seus lenços brancos se converteram em símbolo de oposição à ditadura e de luta contra a injustiça imposta pelo novo comando, apoiado pelos Estados Unidos no contexto da Operação Condor.

Desde então, toda quinta-feira, às 15h30, marcham ao redor da Pirâmide de Maio — não para que compreendam sua dor, mas para que entendam sua luta.

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“Voltar à Praça é como reencontrar aqueles que nos faltam, um encontro tácito, mas verdadeiro”, comentou Bonafini em entrevista concedida à Prensa Latina em abril de 2022. “Quando descemos da caminhonete, há algo que nos comove, que faz passar as dores, e ficamos bem, não sentimos nada. Parece um milagre, porque todas nós temos mais de 94 anos e, quando entramos ali, estamos em outro mundo. A praça é um lugar de encontro, de luta e de vida”, afirmou.

Jorge Omar Bonafini tinha 26 anos quando foi sequestrado em fevereiro de 1977, na cidade de La Plata, e seu irmão Raúl Alfredo, de 24, sofreu o mesmo destino dez meses depois. A esposa de Jorge, Maria Elena Bugnone, foi detida em 1978.

“Mudamos a história daqueles que queriam que reconhecêssemos nossos filhos como mortos sem saber o que lhes havia acontecido, quem os havia assassinado e por quê. Esse encontro a cada quinta-feira e esse senti-los vivos é real. Eles nos acompanham sempre em tudo o que fazemos, nos inspiram a fazer melhor e a crescer”, declarou também Bonafini na entrevista.

Medidas do Estado argentino

Por decretos do ex-presidente Raúl Alfonsín (1927–2009), em 1983 foi criada a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas. Em 1985 começou o processo contra os ditadores Jorge Rafael Videla, Emilio Eduardo Massera, Orlando Ramón Agosti, Roberto Eduardo Viola, Armando Lambruschini, Omar Domingo Rubens, Leopoldo Galtieri, Jorge Anaya e Basilio Lami Dozo. A sentença de cinco dos nove processados foi considerada um fato histórico e um marco contra a impunidade do terrorismo de Estado. Não obstante, os familiares e amigos das vítimas da ditadura continuaram exigindo a continuidade das investigações e a aplicação da justiça contra todos os responsáveis pelos crimes cometidos.

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Como lembra a jornalista e escritora Stella Calloni em artigos sobre o tema, diante de pressões militares e políticas, em 1986 e 1987 foram aprovadas pelo Congresso as leis de Obediência Devida e Ponto Final, que estabeleceram a impunidade para centenas de acusados. Os chefes militares permaneceram na prisão, mas foram indultados pelo ex-mandatário Carlos Menem (1930–2021) entre 1989 e 1990.

Após sua chegada ao governo em 2003, Néstor Kirchner (1950–2010) implementou medidas para afastar das Forças Armadas os responsáveis por aqueles atos, transformar os centros clandestinos de detenção e anular as leis que permitiram aos culpados evitar as devidas condenações. Desde então, mais de mil ex-militares e policiais foram processados por crimes contra a humanidade.

Presidentes da América Latina exaltam Hebe de Bonafini, líder das Mães da Praça de Maio

“Faz tempo que nós, as Mães, deixamos de ir aos julgamentos porque não se chega a lugar algum”, disse Bonafini na conversa de abril de 2022. “Os militares dizem tudo o que foram capazes de fazer, mas nada é esclarecido e, se por acaso são presos, são transferidos para instalações do Exército ou da Marinha, onde estão com suas famílias e têm comida da melhor qualidade. Isso não é prisão […] Quando menos se espera, estão soltos. Apesar dos processos iniciados há 40 anos, os maiores responsáveis não estão realmente presos”, garantiu.

Para Hebe, a verdadeira justiça é que seus filhos “vivam em cada companheiro que levanta sua bandeira, em cada marcha e nas reivindicações dos trabalhadores e dos pobres”. E destacou: “É isso o que eles queriam. Haverá justiça quando houver universidades para todos, quando as crianças não passarem fome e quando as pessoas defenderem seus direitos, sobretudo o direito ao trabalho”.

Stella Calloni: Hebe de Bonafini se solidarizou com todos os povos em luta

Além das numerosas perdas sofridas, as mulheres que decidiram transformar a dor em força e divulgar a verdade do ocorrido durante a ditadura foram submetidas, naqueles anos, a horrores indescritíveis e ao silêncio pungente de uma sociedade tomada pelo medo.

“Um dos momentos em que nos sentimos mais ameaçadas foi quando sequestraram, torturaram, estupraram e jogaram vivas no rio Azucena, Mary e Esther, e este povo não saiu para reivindicá-las. Ninguém disse nada”, lembrou Bonafini. As fundadoras da Associação foram assassinadas com a colaboração de Alfredo Ignacio Astiz, que fingiu ser familiar de um desaparecido para espionar as Mães.

“Naquele momento, tomamos maior consciência de nossa responsabilidade. Não haviam levado apenas nossos filhos, mas também nossas companheiras. Quando encontraram seus corpos, vieram à tona todos os crimes cometidos contra elas”, relatou a militante. Apesar desse duro golpe, a luta continuou e cresceu a necessidade de mostrar ao mundo o terror perpetrado na Argentina.

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Ainda na entrevista de abril de 2022, Hebe reafirmou o compromisso das Mães com os setores mais humildes e assegurou que sempre voltaria à Praça de Maio. Em cumprimento dessa promessa, suas companheiras continuam indo a esse lugar toda semana, na mesma hora, com os lenços brancos inspirados nas fraldas de seus filhos, símbolos de luta e amor.

“Nesse caminhar, tomando-nos pelo braço, apoiando-nos umas às outras, partilhando entre nós, também fomos solidificando nosso pensamento, crescendo e tomando consciência”, afirmou Hebe em uma conferência, desta vez em 1988.

“Não nos interessa que recordem os desaparecidos e que gostem das Mães. Nos interessa que acompanhem as Mães, mas, acima de tudo, que imitem os desaparecidos. Que tentem ser como eles, que lutaram por seu povo, para seu povo e com seu povo”, convocou.

Prensa Latina, especial para Diálogos do Sul Global – Direitos reservados.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Glenda Arcia

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