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Encontro do FMI na Arábia Saudita (Foto: FMI / Facebook)

“Economia inclusiva” é hipocrisia do FMI para preservar capitalismo frente à desigualdade global

Discrepância entre recomendações de gasto social e medidas de austeridade do FMI mostra contradição entre a retórica de inclusão e ações reais
Michael Roberts
Sur y Sur
Londres

Tradução:

Ana Corbisier

Os grandes e melhores acabam de participar de um Fórum Econômico Mundial especial em Riad, Arábia Saudita. O tema da conferência, de que participaram mais de mil delegados de empresas, governos e agências internacionais, foi a cooperação global e o crescimento inclusivo. Em outras palavras, como reverter as crescentes guerras comerciais internacionais e a crescente desigualdade de renda e riqueza com políticas de cooperação e medidas econômicas inclusivas. Havia uma certa ironia em que todos estes participantes discutissem políticas econômicas “inclusivas” na Arábia Saudita, um país infame por sua discriminação e exclusão de mulheres, gays e exploração de sua população imigrante, que faz a maior parte do trabalho no país. No entanto, os dirigentes do FMI e do Banco Mundial estavam ali para promover com toda energia seu novo objetivo de um “pacto para o crescimento inclusivo”.

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O objetivo é “reverter” o que creem ser uma tendência recente de uma maior desigualdade de renda e riqueza em nível mundial. A líder do FMI, Kristalina Georgieva, esteve ali para pressionar a favor de políticas que impulsionem a colaboração global e reduzam a desigualdade econômica, aparentemente uma mudança por parte do FMI em relação a sua anterior defesa da competição, da “flexibilidade” do trabalho e da “prudência” fiscal que tem sido as consignas de sua política econômica durante décadas.

É como se o FMI tivesse mudado. Recentemente, inclusive, promoveu um artigo do vencedor do prêmio Nobel, Angus Deaton, que vem denunciando as crescentes desigualdades de renda e mobilidade social em seus livros e artigos. Em um artigo, intitulado “Rethinking my economics” (“Repensando minha orientação econômica”), Deaton expressa sua mea culpa sobre as mudanças de seus próprios pontos de vista. Deaton acredita que a teoria econômica convencional (e por implicação o FMI, o Banco Mundial e o Fórum Econômico Mundial) “estão em certa desordem. Não predissemos coletivamente a crise financeira e, pior ainda, é possível que tenhamos contribuído para ela por meio de uma crença demasiado entusiasta na eficácia dos mercados, especialmente os mercados financeiros, cuja estrutura e implicações entendemos pior do que pensávamos”. Portanto, os “mercados livres” não são tão eficazes como se afirma, e não se podem evitar as crises.

Deaton admite que “recentemente me vi mudando de opinião, um processo desconcertante para alguém que foi um economista em exercício durante mais de meio século”. Verá que a “ênfase nas virtudes dos mercados livres e competitivos e a mudança técnica exógena pode distrair-nos da importância do poder de fixação de preços e salários, na escolha da direção da mudança tecnológica e na influência da política para mudar as regras do jogo”.

De modo que Deaton teve uma epifania. Agora descobre que é o poder do capital e sua tentativa de explorar o trabalho que é a força motriz das economias, não a eficiência técnica ou os mercados “livres e justos”. Aparentemente, em algum momento, não definido por ele, “a justiça social ficou subordinada aos mercados, e a preocupação com a distribuição foi superada pela atenção à mídia, frequentemente descrita sem sentido como o interesse nacional”.

Quién es Angus Deaton, el nuevo Nobel de Economía | Punto Biz
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De forma mais concreta, Deaton criticou em que se concentra a economia convencional em lugar das questões do poder e da distribuição da riqueza: “os métodos atualmente aprovados, os ensaios controlados aleatórios, as diferenças nas diferenças ou os projetos de descontinuidade de regressão têm o efeito de focar nos efeitos locais e afastar-se dos mecanismos potencialmente importantes, mas de ação lenta que operam com atrasos longos e variáveis”. De fato, Deaton tem razão. É algo que muitos fora da teoria econômica convencional comentaram. Os prêmios Nobel (Riksbank) em economia se entregam por «nudging», ECA, etc., mas nenhum a análises da desigualdade ou à teoria da crise. Estes temas são persona non grata.

Deaton se concentra mais tarde no equilíbrio de poder entre o capital e o trabalho: “Durante muito tempo considerei os sindicatos como um mal que interferia na eficiência econômica (e frequentemente pessoal) e acolhi com satisfação seu lento desaparecimento. Mas hoje as grandes corporações têm demasiado poder sobre as condições de trabalho, os salários e as decisões em Washington, onde os sindicatos atualmente têm pouco a dizer em comparação com os grupos de pressão corporativos. Os sindicatos precisam estar na mesa para tomar decisões sobre inteligência artificial”. Soa melhor, mas se os sindicatos estiverem “na mesa”, isso realmente alteraria o equilíbrio de poder do capital sobre o trabalho?

Deaton rejeita agora a ideia de que a “globalização” reduziu a pobreza mundial nos últimos 30 anos. De fato, como demonstrei neste blog além de uma série de outras pesquisas, a pobreza global não se reduziu em absoluto, uma vez excluída a China. O colunista do FT e economista liberal keynesiano Martin Wolf provavelmente não estaria de acordo com o livro que escreveu há exatamente 20 anos chamado Why globalisation works. Mas até ele se preocupa com o fim do comércio global, o crescimento do investimento e a passagem ao protecionismo.

La crisis del capitalismo democrático - Martin Wolf | PlanetadeLibros
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Wolf afirma que isto nos está afastando do fim da eliminação da pobreza extrema em nosso planeta, o que aparentemente estivera ao alcance da mão. Agora existe o risco de uma «década perdida» para os pobres do mundo. Segundo o documento do Banco Mundial apresentado na conferência da Arábia Saudita, “O choque da pandemia e as posteriores crises superpostas exacerbaram os desafios que enfrentam estas economias e levou a uma reversão no desenvolvimento: durante 2020-24, a renda per cápita na metade dos países da AIF, a maior parte desde o começo deste século, foram crescendo mais lentamente que a das economias ricas. Um de cada três países da IDA é mais pobre do que era às vésperas da pandemia. A pobreza continua obstinadamente alta, a fome aumentou e, em meio às restrições fiscais e às crescentes necessidades de investimentos, as perspectivas de desenvolvimento poderiam dar uma guinada ainda mais sombria, especialmente se persistirem as débeis perspectivas de crescimento”.

E o que Wolf não disse é que estava falando de “pobreza extrema”, que atualmente é calculada pelo Banco Mundial como uma renda inferior a 2,15 dólares por dia de um adulto. Isso representa uns 770 milhões de pessoas, um número não pequeno, mas que é apenas 10% da população mundial. Mas como discuti muitas vezes antes neste blog, este limiar de pobreza é ridiculamente baixo. Um limiar de pobreza de, digamos, 7 dólares por dia ou em torno de 2.500 dólares por ano afetaria 4.000 milhões de pessoas. Lembrando que a maior parte da queda da taxa de pobreza oficial do Banco Mundial se limita à China e partes da Ásia.

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Deaton também defende que os líderes dos países ricos devem dar prioridade a seus próprios cidadãos sobre as pessoas mais pobres do mundo. O economista convencional “progressista”, Joseph Stiglitz, não está de acordo: “se o Ocidente der prioridade a sua própria população, não se fomentará a cooperação global, por exemplo, contra a mudança climática”. Mas, quanta “cooperação” é possível quando tanto as administrações democratas como as republicanas buscam isolar e debilitar o progresso econômico da China por meio de políticas protecionistas e de “guerra fria”?

Deaton não é o único economista convencional que se esforçou por entender em que se equivocou nos últimos 30 anos. Durante a conferência de ASSA de 2020, a maior conferência sobre economia do mundo, justo antes da pandemia, houve uma grande reunião organizada por um novo grupo que chama si mesmo Economia para a Prosperidade Inclusiva (EfIP), dirigido por alguns grandes nomes da corrente principal da teoria econômica, como Dani Rodrick e Gabriel Zucman. Seu objetivo declarado era mostrar que “as ferramentas dos economistas convencionais não só ajudam, como são fundamentais para o desenvolvimento de um quadro político do que chamamos “prosperidade inclusiva”. Embora a prosperidade seja a preocupação tradicional dos economistas, o modificador “inclusivo” exige tanto que consideremos o interesse de todas as pessoas, não simplesmente da pessoa média, como que consideremos a prosperidade em termos gerais, incluídas as fontes não pecuniárias de bem-estar, desde a saúde até a mudança climática e os direitos políticos”.

Portanto, a “economia inclusiva” deve basear-se na suposição de que os mercados e o capitalismo continuam sendo o melhor de todos os mundos possíveis, mas requerem “gestão e participação das pessoas”, para que possam apoiar a maravilhosa experiência dos economistas na solução de problemas sociais!

Um abrigo improvisado em acampamento na província de Hodediah, para refugiados da crise humanitário no Iemen (Foto: Peter Biro / UE)

Alguns economistas convencionais estão buscando rever os modelos econômicos falidos dos últimos 30 anos. Um novo modelo se chama HANK, “Agente heterogêneo novo keynesiano”! Em lugar de reduzir os consumidores a um “agente representativo” médio, os modelos de HANK incluem uma distribuição mais completa das pessoas, cujo gasto poderia depender de se estão com a água no pescoço em sua hipoteca, do quão expostos estejam a um choque de inflação, ao risco de perderem seu trabalho, etc., e à interação dos três. Portanto, alguns problemas reais no consumo de bens e serviços no mercado. Até agora, HANK não parece estar funcionando muito bem. Como afirma um colunista keynesiano do FT: “Embora pareça claro que a medição da desigualdade é importante, ainda não está claro que os economistas tenham chegado exatamente à forma correta de fazê-lo. Em última instância, adequar uma parte dos modelos simplificados à realidade não será muito eficaz se outras partes estiverem equivocadas”.

O que nos leva de volta à realidade das políticas do FMI e do Banco Mundial contra a retórica da economia inclusiva. O FMI afirma que agora se preocupa com as consequências negativas da austeridade fiscal, mostrando frequentemente como o gasto social deve ser protegido dos cortes nas condições que determinam os níveis de gasto. No entanto, uma análise da Oxfam de dezessete programas recentes do FMI detectou que por cada dólar que o FMI adiantou a estes países para gastar em proteção social, recomendou-lhes cortar 4 dólares por meio das medidas de austeridade. A análise concluiu que os níveis de gasto social eram “profundamente inadequados, inconsistentes, opacos e, em última instância, fracassaram”.

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Mas o FMI está preocupado. A mudança climática, o aumento da desigualdade e o aumento da “fragmentação” geopolítica ameaçam a ordem econômica mundial e a estabilidade do tecido social do capitalismo. De modo que é preciso fazer algo. Como eu disse, Georgieva argumenta que “nos próximos anos, a cooperação global será essencial para gerir a fragmentação geoeconômica e revitalizar o comércio, maximizar o potencial da IA sem ampliar a desigualdade, evitar gargalos na dívida e responder à mudança climática”.

Cooperação global? Estamos em um mundo em que a rivalidade entre as principais potências econômicas está se intensificando, com os Estados Unidos impondo taxas comerciais, proibições tecnológicas e medidas militares contra a China, enquanto a Europa trava uma guerra por delegação com a Rússia. As corporações, os bancos e os governos continuam subvencionando a produção de combustíveis fósseis ao mesmo tempo que evitam cortes significativos nas emissões de gases de efeito estufa; ricos enriquecem mais e os pobres não conseguem deixar de ser pobres. Estamos em uma década perdida não só para os pobres do mundo, como também para reverter o aquecimento global e evitar conflitos geopolíticos.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Michael Roberts

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