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“Capitalização é imoralidade social e irracionalidade fiscal a favor de especuladores"

Economistas chilenos lançam documento clamando pelo fim do “abuso e insensatez” que só enriquece Administradoras dos Fundos de Pensão
Leonardo Wexell Severo
Diálogos do Sul
São Paulo (SP)

Tradução:

Com o título “Sistema das Administradoras dos Fundos de Pensão (AFP) é imoralidade social e irracionalidades fiscal”, o Centro de Estudos Nacionais de Desenvolvimento (Cenda) do Chile lançou uma carta conclamando os economistas do país a contribuírem para “saldar esta dívida pendente” com a população e ajudar a acabar com a lógica dos especuladores.

Expondo os principais motivos que “fazem imperioso pôr fim ao sistema de AFP, imposto pela ditadura de Pinochet e sustentado por todos os governos que lhe sucederam”, o documento assinado por Hugo Fazio Rigazzi e Manuel Riesco Larraín, presidente e vice-presidente do Cenda, destaca que “é hora de recuperar as contribuições que, em seus níveis atuais, permitem elevar com folga as aposentadorias a um nível digno para todos, e sustentá-las até o futuro”.

O problema é que como as poupanças acumuladas dos 10,7 milhões de filiados ao sistema “não têm sido suficientes para pagar pensões adequadas” e a “remuneração se deteriora ano após ano”, com o imenso desvio de recursos praticado pelas AFP, o atual governo de Sebastián Piñera tem pressionado para “diminuir ainda mais os benefícios, elevando a idade” para o trabalhador se aposentar. Qualquer semelhança com a dupla Bolsonaro-Guedes não é mera coincidência. O ministro esteve no Chile no início dos anos 80 quando os Chicago Boys implantaram a capitalização e acabaram com a Previdência pública, privatizando lucros e socializando prejuízos.

O estudo comprova ser completamente descabido manter um sistema em que para sustentar AFP que especulam com o patrimônio coletivo, 80% das aposentadorias pagas no país são inferiores ao salário mínimo – 44% abaixo da linha da pobreza -, apesar dos imensos subsídios estatais. Números que explicam a razão do Chile ter se tornado recordista em casos de suicídios na América Latina.

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“O verdadeiro caráter do sistema fica em evidência após quase quatro décadas de funcionamento”, avalia o Cenda, uma vez que tais empresas aportam “apenas uma quinta parte (20%) do gasto nacional em aposentadorias, cujo nível geral é intoleravelmente baixo e decresce constantemente em relação aos salários”. “O fisco se vê obrigado a endividar-se para aportar as quatro quintas partes restantes (80%)”.

A afirmação é comprovada por estudo do Movimento Não mais Administradoras de Fundos de Pensão (NO + AFP) e da Confederação Nacional de Profissionais Universitários dos Serviços de Saúde que recorda: “frente evidente fracasso do sistema e das suas pensões miseráveis, em 2008 o governo Bachelet decidiu instituir o Pilar Solidário, mecanismo de auxílio para pessoas em situação vulnerável, a fim de garantir um aporte mínimo”. “Passamos a ter a Pensão Básica Solidária para os que estão abaixo da linha de pobreza, 586.301 pessoas que ganham $ 107.304 (US$ 158) e se cria a Contribuição Previdenciária Solidária também para os que estão na pobreza extrema, 894.899 pessoas que recebem uma complementação à sua aposentadoria com um valor médio de $ 66.913(US$ 98). Não se acabou com as AFP, que continuaram lucrando, apenas se injetou recursos públicos para minorar o problema causado por elas. Com esse acréscimo, hoje o grosso das aposentadorias precisa ser pago pelo Estado: 1.481.200 contra 1.300.256 pagas pelas AFP [a maior parte destas em valores de miséria]”.

Ao mesmo tempo, o sistema das AFP acumulou um fundo sempre crescente – de cerca de US$ 220 bilhões – equivalente a 2/3 do seu Produto Interno Bruto (PIB) “conformado a partir de um imposto salarial”. Desfrutam dele, “um punhado de grandes grupos empresariais, que o embolsam para gerenciar comissões e prêmios na mesma ordem do que contribuem para as aposentadorias, e recebem uma boa parte do fundo na forma de empréstimos e capital acionário. Isso constitui uma imoralidade social inaceitável que, agravada por sua irracionalidade fiscal, são motivos mais do que suficientes para terminar com o sistema das AFP”, enfatiza o documento.

Como demonstra o estudo, apenas seis grandes grupos de negócios embolsaram 80% desses imensos recursos, “entre eles duas companhias de seguros dos Estados Unidos”. Entre os grupos chilenos que lucraram com o parasitismo aos cofres públicos “está o grupo Penta, que tem entre seus proprietários um amigo íntimo do presidente da República e que vem deixando a prisão onde permaneceu um bom tempo devido a fraudes fiscais”.

O fato é que diferente do regime de Previdência brasileiro – em que as novas gerações sustentam as anteriores – “o sistema AFP é um mecanismo de poupança individual em que cada membro deposita uma parte de sua renda durante sua vida ativa para aproveitá-la após a aposentadoria”. “Tais poupanças são impostas pela força, através de um imposto que, na prática, apenas os trabalhadores pagam à medida em que são cobrados através de um desconto obrigatório na folha de pagamento”.

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A apropriação de parte dos salários, sob qualquer forma, constitui um enorme atropelo, alerta o Cenda, uma vez que os salários não deveriam ser tocados, pois “são sagrados, pertencem integralmente ao trabalhador e sua família, incluídos seus velhos”. “Quebrar essa regra é considerado imoral em sociedades modernas bem constituídas. Não está permitido, por exemplo, sobrecarregar os salários com o pagamento de juros usurários ou sobretaxas derivadas de monopólios e cartéis. Essas práticas, entre outras, são consideradas inaceitáveis, são geralmente ilegais e severamente sancionadas”, adverte.

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Hugo Fazio Rigazzi e Manuel Riesco Larraín, presidente e vice-presidente do Cenda

Poupança forçada

As AFP, comprova o documento, “não são um sistema de aposentadoria, mas uma poupança forçada, destinada a desviar, necessariamente e perpetuamente, parte dos salários para um fundo de investimento cada vez maior. Desfrutam principalmente do mesmo os grandes grupos econômicos que o administram e recebem sob a forma de empréstimos e capital  acionário”.

“A única relação que dito fundo guarda com as aposentadorias é que as contas individuais nas quais são registradas as contribuições dos filiados servem como regra de medida para calcular o valor dos parcos pagamentos mensais com os quais se devolve aos trabalhadores aposentados as também modestas economias acumuladas ao longo de sua vida ativa. Estas contribuições ou pensões ‘autofinanciadas’, como são denominadas no Chile, são financiadas sempre com contribuições correntes, sem tocar o fundo acumulado, que, portanto, só cresce e nunca será devolvido”.

Desta forma, nos últimos doze meses até março de 2019, em valores atualizados de junho deste ano, as contribuições obrigatórias – “abusivas, que cortam perpetuamente parte dos salários” – “arrecadaram, 7,3 trilhões de pesos (R$ 38,86 bilhões), enquanto o aportado para devolver aos aposentados a poupança de toda a sua vida ativa somou apenas 2,3 trilhões de pesos (R$ 12,77 bilhões), 32% do arrecadado”. “Deste modo, o imposto obrigatoriamente descontado dos salários pelo sistema das AFP gerou um excedente de quase cinco trilhões de pesos (R$ 26,09 bilhões), 68% do arrecadado no período”. “Os Administradores de sistemas, as AFP e seguradoras relacionadas, embolsaram pouco mais de 1,9 trilhão de pesos (R$ 10,55 bilhões) em comissões e prêmios líquidos, uma cifra da mesma ordem que o aportado às aposentadorias, e os 3 trilhões de pesos (R$ 16,66 bilhões) restantes foram registrados no fundo de pensão, enquanto o dinheiro foi imediatamente transferido para o sistema financeiro”.

“Como esse excedente é gerado todos os anos, o fundo de pensão cresce indefinidamente, sem prejuízo das oscilações bursáteis”, alerta o Cenda, e “isso ocorre necessariamente porque o número de contribuintes e suas remunerações cresce de forma constante, acompanhando os altos e baixos do ciclo econômico”. “Foram aumentadas, respectivamente, a taxas anuais de 3,2 e 2,6%, nas últimas duas décadas.Enquanto continuarem crescendo, os excedentes acumulados de cotizações aportadas ao fundo continuarão se acumulando e nunca serão devolvidos. Isto foi reconhecido pelo nosso colega Rolf Lüders, com a honestidade intelectual que o caracteriza, num recente debate público. Os valores registrados no fundo juntamente com seus ganhos permanecerão, na maior parte e na perpetuidade, nas mãos do pequeno grupo de grandes grupos empresariais que recebem o dinheiro na forma de reiterados empréstimos e capital acionário”.

Aposentados miseráveis

“Isso é agravado pelo fato de que essa poupança forçada não se traduz em boas aposentadorias, como sempre foi prometido, mas tudo pelo contrário. O valor médio das aposentadorias ‘autofinanciadas’ alcançou, nos doze meses até março de 2019, atualizado em moeda de junho, apenas 147.739 pesos (R$ 820,00) por aposentado por mês, equivalente a 18,5% das remunerações tributáveis. O magro aporte da poupança é complementado pelo fisco com títulos de reconhecimento e contribuições previdenciárias solidárias, com as quais as pensões alcançaram em média 219.529 pesos (R$ 1.218,00) pesos por pessoa, o equivalente a 27,4% das remunerações tributáveis”.

“Nos últimos doze meses até março de 2019, o Tesouro gastou 1,1 trilhão de pesos (R$ 6,1 bilhões) na suplementação das aposentadorias das AFP. Se somarmos o que o Estado gasta em um número similar de aposentadorias civis e solidárias do antigo sistema, em pensões militares e outros benefícios que são principalmente planos de aposentadoria e outros subsídios indiretos ao sistema das AFP, a despesa fiscal com as contribuições sobe para 8 trilhões de pesos (R$ 44,41 bilhões). Eles se somam aos 2,3 trilhões (R$ 12,77 bilhões) ‘autofinanciados’ pela poupança, para totalizar um gasto nacional com aposentadorias de 10,3 trilhões de pesos, no período indicado”.

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Reiterando, o Tesouro financia cerca de quatro quintos das pensões pagas no país, enquanto a parte financiada com o retorno da poupança contribui apenas com o quinto restante e, por sua vez, é financiada com uma parte menor das contribuições atuais. “Isso significa que no Chile, como em todos os países do mundo, as pensões são pagas integralmente com os impostos correntes, sem tocar um peso do fundo acumulado supostamente para esse fim. Se o sistema AFP for mantido, ele continuará acontecendo até o final dos tempos, ou pelo menos até que o número e/ou renda dos contribuintes continue a crescer, o que continuará acontecendo pelo menos até final do século”.

Endividando o tesouro para o “mercado”

“O enorme gasto do Estado do Chile com aposentadorias – que lhe absorve um quinto de seu orçamento -, é amplamente responsável pelo déficit fiscal atual, que é financiado pelo endividamento. Deste modo, o Chile incorre na prática irracional de endividar o Tesouro para pagar aposentadorias, enquanto economiza num fundo sempre crescente, investido em mercados financeiros incertos, a maior parte do imposto destinado a pagar aposentadorias e que, nos seus níveis atuais, pode sustentá-las com folga e de forma sustentável”.

“Acabar com essa irracionalidade fiscal tem sido a razão determinante pela qual, após a crise de 2007, vários governos terminaram com os esquemas de capitalização individual, que haviam sido introduzidos na década anterior sob pressão das instituições financeiras internacionais”, recorda o Cenda. E assinala: “como é de conhecimento público, governos de países europeus como Polônia, Hungria, Rússia, Bulgária e Romênia, bem como Argentina e Bolívia em nosso continente, recentemente encerraram ou congelaram seus esquemas de capitalização de uma parte menor das contribuições para a Seguridade Social”.

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“A recuperação desse imposto permitiu reduzir significativamente o déficit fiscal – na Hungria diminuiu pela metade, por exemplo – e diminuir o risco-país com a conseqüente redução do custo do endividamento, mantendo e, em alguns casos, melhorando os benefícios previdenciários. A maioria desses governos não pode ser descrita como esquerda ou algo semelhante, mas, pelo contrário, há alguns de direita e extrema-direita. Os respectivos ministérios das finanças respaldaram a medida em todos eles”.

Irracionalidade e idiotice

“Em condições de déficit fiscal, manter a poupança forçada é irracional. Em tempos de folga fiscal, essa política pretendia se justificar com o argumento de que os lucros do fundo seriam mais altos do que o crescimento das contribuições, mas isso também não é real”. O Cenda condena o “argumento idiota das AFP e de outras pessoas acerca da suposta inviabilidade dos sistemas de repartição [como o do Brasil] devido ao envelhecimento da população, que seria resolvido em troca do desempenho supostamente maior da poupança nos mercados financeiros”. “É necessário acrescentar que o argumento das AFP não é apenas falso e irracional, mas também desonesto. Não é por acaso uma canalhice ficar martelando para que os jovens desviem às suas ‘contas individuais’ as contribuições que hoje podem facilmente financiar aposentadorias decentes aos seus velhos, com a falsa promessa de que a magia financeira lhes proporcionará boas aposentadorias em um futuro em que seus próprios filhos não poderiam fazê-lo porque haverá muitos idosos?”

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Como relembra o Cenda, os pais “foram sustentados por seus filhos em todas as épocas históricas, ninguém mais pode fazê-lo. Isso constitui um dever moral das gerações jovens, que ao envelhecer serão sustentadas pelos seus sucessores”. Sendo assim, “cada um deve manter seus idosos de maneira digna, sem prejuízo do que costumavam fazer durante sua vida ativa”. “E se, em boa hora, aumentar a proporção de idosos, será necessário alocar uma fração maior da jornada dos trabalhadores ativos para produzir os bens e serviços que necessitam. Ou eles serão condenados a uma velhice infeliz? Felizmente, como demonstram as economias desenvolvidas, o rápido aumento da produtividade do trabalho nos permite assumir essa carga maior com jornadas cada vez mais curtas”. Uma conclusão tão simples quanto honesta.

*Leonardo Wexell Severo é jornalista e colaborador da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Leonardo Wexell Severo

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