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ToggleO acordo, que vinha sendo discutido há cerca de 20 anos, resultará numa área de 32 países, com população de 750 milhões de pessoas, um PIB de US$ 17 trilhões, e facilitará o acesso de produtos industriais da Europa na América do Sul e, em menor escala, de produtos agrícolas do Mercosul nos países da União Europeia.
Para o economista Nilson Araújo de Souza, doutor em economia pela Universidade Autônoma do México (Unam), pós-doutor pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), o acordo é lesivo aos interesses do Brasil e do Mercosul. “Não há razão para comemoração a não ser por parte da União Europeia, porque, para ela, o acordo é um grande feito, afinal eles conseguiram impor ao Mercosul as condições que sempre quiseram”.
Hora do Povo
Nilson Araújo de Souza, doutor em economia pela Universidade Autônoma do México (Unam), pós-doutor pela Universidade de São Paulo (USP)
Desindustrialização
Este é um grande acordo para a União Europeia, e, particularmente, para quem hegemoniza a União Europeia, que é a Alemanha. Não é um bom acordo para os países do Mercosul. A prevalecer essas condições, a tendência é completar-se a desindustrialização regional”, alertou o economista.
“Eles sempre quiseram impor que os países da América Latina cedessem na abertura para os seus produtos industrializados e não cediam nada nas reivindicações feitas pelos países do Mercosul”, apontou o professor.
Segundo Nilson Araújo, “o Brasil já vinha sofrendo esse processo de desindustrialização há algum tempo”. “Principalmente em função da chamada abertura econômica e comercial praticada a partir dos anos noventa pelas políticas neoliberais. Se subsidiava na prática a importação de produtos industriais de fora. Eles chegavam aqui mais baratos – a indústria local não conseguiu competir – e se quebrava a indústria brasileira”, observou o economista.
Nilson, que é membro da Comissão Política e do Comitê Central do PCdoB, compara o acordo atual com o que foi proposto pelos EUA no início dos anos dois mil aos países da região. “Esse acordo tem um significado semelhante ao que teria a Alca (Área de Livre Comércio das Américas), proposta dos EUA para o conjunto da América Latina. Se ele tivesse sido assinado naquela época, teria se completado a destruição da indústria local”, afirmou.
“O Brasil na época já vivia um processo de destruição de sua indústria”. Houve, segundo o professor da Unila, uma reação muito forte do Mercosul e da Venezuela, que terminou brecando a assinatura da Alca. “Esta recusa em aderir à Alca deu mais um fôlego para a economia da região, mas, como permaneceram as políticas de abertura comercial, a desindustrialização continuou”, avaliou.
“No Brasil hoje, por exemplo, a participação da indústria de transformação no conjunto da produção de mercadorias, no conjunto da produção de bens e serviços, está em torno de 10%. Já foi de um terço na década de 1980′, avaliou Nilson. “No Brasil, que é a economia mais forte da região, a indústria está sendo dizimada, imaginem nos demais países, particularmente na Argentina, que é a segunda economia da região do Mercosul”, salientou.
“Então”, acrescentou o professor, “essa discussão do acordo entre o Mercosul e a União Europeia vinha desde 1999, foi paralisada em 2003, quando Lula assumiu o governo, e foi retomada em 2010, durante o governo Dilma, por pressão da União Europeia. Foi retomada, mas não avançou. E não avançou porque a Europa não abria mão de absolutamente nada dos seus interesses comerciais e queria que o Mercosul abrisse mão de seus interesses comerciais. Agora, o processo se completa no governo Bolsonaro”.
Aberura indiscriminada
Para o especialista, “o que a Europa quer com esse acordo é que se isente de impostos de importação e se faça uma franca abertura para produtos industriais, particularmente para produtos da indústria de ponta, para os serviços, principalmente serviços de tecnologia mais avançada, para as compras governamentais, para propriedade industrial e investimentos”, explicou.
“Eles querem também que seus investimentos na região não tenham nenhum controle por parte dos governos da região”, alertou Nilson. “É um tipo de acordo”, prosseguiu o professor, “que os EUA já fizeram com o Canadá e com o México, em que as empresas americanas que se instalam nesses países não se subordinam à legislação local. Estão querendo algo semelhante. E, ao mesmo tempo, eles não abrem praticamente nada do seu mercado”.
Ele alertou para a farsa da redução de tarifas. “A UE diminui as tarifas de importação, mas só que a principal forma de proteção hoje, que vem sendo adotado em boa parte do mundo, particularmente na Europa e EUA, não é a proteção tarifária, não é a barreira tarifária”, denunciou Nilson.
“As barreiras tarifárias diminuíram no mundo inteiro, em função dos acordos da Organização Mundial do Comércio. A principal proteção são as barreiras não tarifárias, que se manifestam principalmente em subsídios e em cotas, e também em barreiras sanitárias e fito-sanitárias”, salientou o professor.
Barreiras não tarifárias
“Na União Europeia, há barreiras não tarifárias muito fortes para produtos industriais, que o Mercosul poderia exportar para lá, mas principalmente para os produtos agrícolas do bloco. Estas barreiras se dão sob a forma de subsídios e cotas”, denunciou. “Medidas que eles chamam de antidumping”, explicou Nilson Araújo. “Na verdade, não há dumping algum por parte do Mercosul. O que há é a maior produtividade na produção agropecuária, mineração e certos produtos industrias, como o aço”, disse.
“Eles não abrem mão dos subsídios que são gigantescos na Europa. Além dos subsídios de cada país – a França é um dos que mais subsidiam sua agricultura -, há os subsídios coletivos, do conjunto da Europa, em função da chamada Política Agrícola Comum”, prosseguiu.
Segundo o economista “só em subsídios, dentro da Política Agrícola Comum, sem contar os subsídios de cada país, o valor total gira em torno de 60 bilhões de euros”. “Alegaram que não abririam mão desses subsídios nas negociações com o Mercosul, mas os negociariam nas rodadas da OMC, mas, nessas rodadas, mantiveram a intransigência, repetindo o exemplo dos EUA nas negociações da Alca. Liberam um pouco aqui e ali, mas mantém o essencial”, adverte Nilson.
O economista, que atualmente é diretor da Fundação Claudio Campos, avalia que “esse acordo implica em o Mercosul abrir mão de seu mercado para produtos industriais, serviços e compras governamentais da União Europeia e a UE praticamente não abrir mão de nada, porque o que ela cede em termos de tarifas não resolve para os produtos da nossa região”. “Isso porque eles têm a barreira não tarifária. A prevalecer isso, significa completar a desindustrialização da região”, apontou.
Balança Comercial
Segundo ainda o professor Nilson, o acordo não vai melhorar a balança comercial dos países da região. “O México fez esse acordo com a União Europeia. Quando fez o acordo já tinha déficit de comércio com a União Europeia. O resultado foi que o México dobrou o déficit com a UE. Outros países como Colômbia, Equador e Peru, que fizeram o mesmo acordo, também tiveram aumento do déficit”, informou.
“O Brasil tem saldo negativo há bastante tempo com a UE, mas, a partir de 2013, tem se mantido em déficit comercial com os países europeus. De 2016 para cá houve superávit. Mas não porque tenha aumentado as exportações, elas caíram violentamente nesse período. Em 2018 as exportações do Brasil para a União Europeia totalizaram US$ 42,1 bilhões (eram US$ 47,8 bilhões em 2013) e as importações, no mesmo período, caíram de US$ 50,7 bilhões para US$ 34,8 bilhões. Tivemos superávit porque diminuíram as importações, em função da recessão aqui no país”.
“Com esse acordo, a tendência é voltar o déficit e aprofundar a desindustrialização e seu corolário, o desemprego”, avaliou o economista.
Para o professor Nilson, a posição favorável ao acordo atual por parte da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), diferente da época da Alca, em que ela se posicionava contra, “deve-se à desindustrialização violenta, ocorrida de lá para cá, mas principalmente, pela desnacionalização da indústria”.
“As empresas transnacionais que estão instaladas aqui têm interesse num acordo como este, inclusive com os EUA, porque elas querem fazer só a montagem aqui. Elas querem comprar os componentes mais baratos na Europa e nos EUA. É por isso que a FIESP acabou mudando de posição”, avaliou o economista.
“As multinacionais que estão instaladas aqui acham bom esse acordo porque elas passam a comprar seus componentes lá fora, mas é ruim para o resto da indústria local, que tem que produzir toda a cadeia produtiva aqui dentro”, afirmou o professor.
“Nossa indústria não vai conseguir competir com a produção que vai vir de fora. A UE, particularmente a Alemanha, é uma economia mais forte do que a nossa e tem uma capacidade produtiva muitas vezes maior do que a nossa. Então, como as empresas nacionais vão ter condições de competir com essa produção externa subsidiada?”, indagou.
“Não têm condições de competir, e a tendência, ao manter-se esse acordo, é se intensificar o processo de desindustrialização e da reprimarização da economia, que implica, na prática, do ponto de vista econômico, na recolonização de toda a região”, avaliou.
Desemprego
“Na verdade, com essa política de nos submetermos à União Europeia, nós estamos exportando empregos para fora, para a Alemanha, para a França. Isso tende a colocar boa parte dos empresários locais e os trabalhadores contra esse acordo. Por isso, apesar das dificuldades dentro do Congresso Nacional, temos que seguir lutando e podemos derrubar isso lá dentro”, defendeu Nilson Araújo.
“Temos condições de montarmos uma ampla frente social com o empresariado, que vai ser prejudicado, e com os trabalhadores, que tendem a ser prejudicados também com o desemprego”, avaliou o professor.
Na opinião do economista, o governo Bolsonaro preferia fazer um acordo desse tipo com os EUA, mas não conseguiu. Se dependesse da orientação do guru de Bolsonaro, o astrólogo da Virgínia, Olavo de Carvalho, o Brasil faria preferencialmente um acordo de livre comércio com os EUA.
Ele se afastaria até da China, principal parceiro comercial do Brasil. Mas, o fato é que as negociações com os EUA não avançaram. Até porque Donald Trump, neste momento, não está nem pensando em reduzir tarifas, ao contrário, ele está só aumentando.
Em relação à nova ofensiva colonial das grandes potências, o professor destacou que, “a se concretizar esse acordo, essa é a terceira colonização da região”. “A primeira colonização ocorreu”, segundo ele, “na transição do feudalismo para o capitalismo, numa época em que éramos colônia de Portugal e Espanha, depois com o início do capitalismo no mundo, as colônias conquistaram a independência”.
Na fase do imperialismo, no final do século XIX e início do século XX, houve uma recolonização do mundo”, prosseguiu. “Boa parte dela foi extinta no pós-guerra”, destacou Araújo. “E agora”, observou ele, “se está querendo recolonizar novamente a América Latina, pela via de acordos comerciais, porque isso implica voltar à economia tradicional, colonial, que era a economia primário-exportadora”.
“A desindustrialização, que está em franco processo, implicaria voltar à economia primário-exportadora”, completou Nilson Araújo. “Barrar esse processo é o caminho para retomar o desenvolvimento”, conclui o professor.
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