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Perfil: Novo ministro da economia é aposta de Alberto Fernández para salvar Argentina

Diferentemente da agenda de Macri, o novo programa do governo argentino não se baseia em riscos análogos aos dos jogos de azar e em ilusões
Joseph E. Stiglitz
Carta Maior
São Paulo (SP)

Tradução:

 A julgar pela nomeação de um economista de primeira linha para seu gabinete como ministro da Economia, o novo presidente da Argentina, Alberto Fernández, começou bem o confronto com os problemas econômicos de seu país. Martin Guzmán, em conjunto com quem desenvolvi trabalhos com frequência nos últimos anos, está entre os principais especialistas do mundo em dívida soberana e problemas causados por ela, fazendo dele a pessoa certa, no lugar certo, na hora certa.Alberto Fernández e Cristina  Kirchner durante cerimônia de poseDepois de concluir seu doutorado na Brown University sob orientação de Peter Howitt (coautor com Philippe Aghion de um trabalho seminal na teoria moderna do crescimento), Guzmán obteve uma cobiçada posição na Columbia University, onde forjou uma carreira acadêmica e se tornou um especialista influente em debates políticos cruciais, tanto no nível doméstico, como global. Ele foi ouvido pelo Congresso dos EUA sobre a crise da dívida de Porto Rico e expôs, nas Nações Unidas, sua defesa sobre a necessidade de um melhor sistema internacional para resolver as crises de dívida soberana. Nos últimos anos, ele dividiu seu tempo entre Nova York e Argentina, onde é professor de macroeconomia na Universidade de Buenos Aires.Quando o ex-presidente Mauricio Macri assumiu o cargo, sua equipe econômica admitiu abertamente que, apesar de terem herdado muitos problemas, eles começavam com uma vantagem muito significativa: um baixo nível de dívida. Eles se arriscaram demais em um conjunto de políticas, por exemplo, quando cortaram impostos de exportação, de forma prematura e desnecessária; quando pagaram dívidas atrasadas antigas aos chamados fundos abutres, com retornos absurdamente altos; e quando tomaram novos empréstimos de longo prazo, indexados ao dólar e com altas taxas de juro. Todas essas medidas foram tomadas na esperança de que sinais favoráveis ao mercado fossem levar a uma corrida de investimentos estrangeiros que estimularia o crescimento. Já naquele momento, classifiquei essa aposta como temerária.

Diferentemente da agenda de Macri, o novo programa do governo argentino não se baseia em riscos análogos aos dos jogos de azar e em ilusões

Reprodução Twitter Martin Guzmán
Alberto Fenandez e Martin Guzmán

O que se seguiu é bem conhecido. Não deu certo e, com as coisas indo de mal a pior, Macri ainda agravou os erros. Mais empréstimos, incluindo um programa de US$ 57 bilhões com o Fundo Monetário Internacional. Austeridade. Esforços equivocados de esterilização para evitar a inflação que saturaram a capacidade de endividamento do país. Em pouco tempo, os argentinos se veriam frente a frente com o pior dos mundos: mais inflação (atingindo quase 60% no corrente ano), maior desemprego (já com dois dígitos e subindo) e a reimposição dos controles cambiais, cuja remoção Macri havia saudado, no início de seu governo, como a pedra angular de sua política econômica.

Como resultado, Fernández herda uma situação econômica muito pior do que a da posse de Macri: inflação mais alta, desemprego mais alto e, agora, uma dívida que demanda juros maiores do que a capacidade da Argentina de pagá-los. Insistir com uma política equivocada não funcionará; assim como não bastará tentar voltar às políticas que precederam o governo Macri. É por isso que é tão importante que Fernández nomeie um economista experiente e brilhante que combine energia jovem com uma sabedoria muito além dos seus 37 anos.

Dada a desordem que Macri entregou a Fernández, não há soluções mágicas. É mais fácil dizer o que não se deve fazer. Como o próprio Fernández sustentou, não se resolve um problema de dívida excessiva assumindo mais dívida. Nem se resolve um problema de recessão e desemprego impondo mais austeridade. Em toda recessão, medidas de austeridade levam a mais contração econômica. A realidade é que não haverá fluxos substanciais de recursos oriundos do setor privado no futuro imediato, independentemente das políticas adotadas pelo governo.
Mas a Argentina deve administrar prudentemente seus recursos limitados, dedicando-os a reativar a economia. Espera-se que os bancos multilaterais de desenvolvimento forneçam empréstimos anticíclicos para projetos de investimento que estimulem o crescimento e o alívio da pobreza (durante a gestão Macri, a pobreza voltou a crescer enormemente, para mais de 35% da população). A Argentina tem um potencial enorme. O turismo, por exemplo, cresceu após a última grande desvalorização. A Argentina possui universidades de primeira linha e um grande número de pessoas altamente instruídas e empreendedoras.

No entanto, os detentores de títulos não necessariamente pensarão no povo argentino ou no potencial de longo prazo do país. Muitos deles pensarão apenas nos ganhos de curto prazo ao espremer a Argentina para mais austeridade. Eles vão, mais uma vez, contar uma história sobre um país esbanjador que gastou além de suas possibilidades, apesar de terem, eles próprios, incentivado Macri em suas políticas equivocadas e de terem dado a ele os empréstimos que levaram a Argentina à atual crise da dívida. Presumivelmente, eles sabiam que havia um risco: é por isso que exigiram e receberam taxas de juros tão altas. Alguns podem ser mais reflexivos e entender que a restauração da capacidade de pagamento da dívida soberana do país depende da recuperação econômica.

Nos últimos meses, muitos outros países da região enfrentaram instabilidade política e turbulência econômica. Não é do interesse de ninguém que a Argentina passe a fazer parte dessa lista. Deveríamos celebrar a transferência ordenada de poder e o compromisso de todos os lados de manter e defender a democracia. Também devemos celebrar a visão compartilhada de que qualquer programa econômico eficaz deve envolver não apenas sacrifício compartilhado, mas também prosperidade compartilhada quando os frutos desse programa são alcançados.

Fernández, com Guzmán, parece estar formulando um programa de moderação, evitando os extremos do passado. Diferentemente da agenda de Macri, o programa Fernández não se baseia em riscos análogos aos dos jogos de azar e em ilusões. É baseado nas duras realidades da situação que ele herdou. Representa a melhor chance da Argentina de obter uma restauração gradual do crescimento. Obviamente, quanto mais assistência a comunidade internacional puder fornecer, mais rápida e mais robusta será a recuperação.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Joseph E. Stiglitz

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