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ToggleNesse primeiro ano de governo, a equipe econômica do presidente Jair Bolsonaro repetidamente reiterou, quase como um mantra, que sua orientação é de cunho liberal. No entanto, conforme destaca o professor Denis Maracci Gimenez, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, o governo tem revelado uma visão bem particular de liberalismo. Isso porque até governos liberais economicamente, como o de Donald Trump nos Estados Unidos, têm agido no sentido de proteger a economia local, mesmo que isso requeira intervenção estatal. No Brasil, a ideia parece ser a de reduzir o Estado e entregar as chaves para o mercado. “Ninguém acredita que, neste momento, o livre jogo das forças de mercado vai produzir o crescimento, o desenvolvimento econômico. Olhando para a experiência internacional no momento atual, essa é uma tese desacreditada e por isso digo que o Brasil vai na contramão do que tem aparecido”, analisa.
Além disso, Gimenez observa como a estratégia reformista do governo revela a aposta em setores em que o Brasil tem menos competitividade como, por exemplo, na relação com os asiáticos. “Se está pensando que vai inserir o país em setores em que o trabalho é mais intensivo, significa dizer que o país vai se integrar aos setores menos dinâmicos da economia mundial e tecnologicamente mais atrasados”, aponta. Ou seja, abre-se mão de investimento em setores da economia que poderiam, além de gerar empregos de maior qualidade, estimular os avanços tecnológicos e científicos.
Para o professor, é isso que se esconde atrás da ideia de que é preciso reformar as relações de trabalho e mesmo a assistência previdenciária. Mas não é só: além de ser essa aposta em setores mais arcaicos e menos tecnológicos, ainda não se consegue gerar empregos como se imaginava. “Se vendeu à opinião pública a ideia de que flexibilizar o mercado de trabalho brasileiro melhoraria as condições de relação de emprego. E isso não se consumou”, destaca. E explica: “Se a economia não crescer, não vai gerar emprego. Flexibilizar o mercado de trabalho não gera emprego, fazer qualificação profissional não gera emprego; pode-se melhorar a qualidade da mão de obra, mas isso é um aspecto que não repercute na geração de emprego. O empresário não decide investir porque tem uma mão de obra mais qualificada, mas existe um conjunto complexo de componentes que levam o empresário a investir ou não”.
E como fazer a economia crescer, gerar emprego e fomentar o desenvolvimento científico e tecnológico? O professor Gimenez reconhece que, num país de dimensões continentais como o Brasil, não é tarefa fácil. No entanto, essas mesmas dimensões podem ser usadas a favor. Ele usa o exemplo do SUS, o sistema único de saúde que não tem similar no mundo. Para ele, em vez de pregar o desmonte desse sistema, por exemplo, poderia se investir para que a indústria nacional e o setor de serviços produzissem para alimentar o SUS. “Podemos imaginar uma política de desenvolvimento tecnológico e produtivo vinculada a tudo aquilo que nos representa em termos da oferta de serviço, de medicamentos, do desenvolvimento da indústria química, da indústria farmacêutica, e se pode articular isso contando com um sistema de saúde gigantesco como o que nós temos”, sugere. “Precisamos levar em conta a urgente necessidade de fazermos o país voltar a crescer com uma taxa mais robusta para melhorar as condições do mercado de trabalho, da renda e do emprego dos brasileiros. Caso contrário, a tendência é do agravamento da situação social com suas consequências mais variadas”, resume.
Denis Maracci Gimenez é doutor em Desenvolvimento Econômico e mestre em Economia Social e do Trabalho. É diretor do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho – Cesit do Instituto de Economia da Unicamp e professor do Instituto de Economia da Unicamp. Em 2019, ele esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ministrando conferências sobre a reforma da previdência. Ao fim da entrevista, assista ao vídeo da palestra.
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Governo brasileiro abre mão de investir em setores da economia que poderiam, além de gerar empregos, estimular os avanços tecnológicos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Num sentido mais amplo, como o senhor avalia o primeiro ano de governo de Jair Bolsonaro?
Denis Maracci Gimenez – Do ponto de vista da economia, foi um ano de baixo desempenho, repetindo os dois anos anteriores – ainda do mandato do presidente Michel Temer –, com crescimento próximo a 1%, o que coloca a economia brasileira em uma situação de semiestagnação. A promessa da recuperação da economia, que envolveu, inclusive, o processo eleitoral do ano passado, não se cumpriu. Terminamos o ano com crescimento baixo, e se olharmos o crescimento da população e o da economia, veremos que a renda per capita está praticamente estagnada.
Alguns indicadores, neste momento, mostram alguns sinais de dinamismo, mas são muito isolados e que, no conjunto, não indicam, na verdade, uma situação de recuperação mais consistente. Vemos alguma melhora no consumo, mas o investimento é ainda muito deprimido, os gastos do governo também não ajudam e os projetos de infraestrutura, tão necessários para uma recuperação mais sustentada, também não estão acontecendo.
Muito da popularidade do presidente Jair Bolsonaro estava associada à expectativa de recuperação econômica. Como o senhor analisa a relação entre os índices de popularidade do presidente e do governo e a questão econômica?
A popularidade do presidente reflete, entre outras coisas, a dificuldade de crescimento na economia que acabei de descrever. Ele termina o ano com uma avaliação positiva abaixo dos presidentes que o antecederam. Isso demonstra que parte da população acreditou que a eleição do presidente Jair Bolsonaro pudesse ter um efeito de recuperação da economia, mas se frustrou, e agora já avalia o governo de maneira negativa, conforme mostram os indicadores. A popularidade, e isso não é um problema exclusivo de Jair Bolsonaro, dos presidentes, e a aprovação dos presidentes e dos governos, em geral, são muito sensíveis ao comportamento da economia e do mercado de trabalho. Isso aconteceu com o presidente Lula, com o presidente Fernando Henrique e com a presidente Dilma Rousseff.
No fundo, a popularidade do presidente e do governo realmente é muito sensível ao comportamento da economia. Portanto, é muito difícil imaginar que, sem a recuperação mais consistente da economia brasileira já num outro patamar, a aprovação do governo suba ou que os indicadores de popularidade do presidente possam avançar.
O governo de Jair Bolsonaro se diz liberal, mas que projeto liberal tem sido posto em prática?
Esses rótulos que consideram um governo conservador ou liberal precisam ser qualificados quando vamos tratar disso. Na minha avaliação, este governo tem de fato na economia, com o ministro Paulo Guedes, toda uma visão liberal de funcionamento dessa área. E, ao mesmo tempo, é um governo que nos costumes e na política tem traços bastante conservadores. Assim, se dá uma combinação que, no fundo, coloca o Brasil na contramão, em vários sentidos, do que está acontecendo no mundo.
Por exemplo, na economia, as discussões que avançam hoje são de um processo de desglobalização, um processo de reversão do fundamentalismo de mercado que dominou os anos 1990 e parte dos anos 2000. O Brasil vai na contramão de um movimento de ascensão de políticas nacionais em suas várias dimensões e com diferenças entre os países. Claramente, mesmo governos conservadores, como o governo do presidente Trump, não hesitam em fazer na economia uma atuação mais contundente do Estado. E quando digo que vai na contramão é porque ninguém acredita que, neste momento, o livre jogo das forças de mercado vai produzir o crescimento, o desenvolvimento econômico. Olhando para a experiência internacional no momento atual, essa é uma tese desacreditada e por isso digo que o Brasil vai na contramão do que tem aparecido.
Essa perspectiva foi reforçada agora na eleição na Inglaterra, na posição dos ingleses na relação com a União Europeia e, dentro da própria União, a ascensão de teses antiliberais na economia que na realidade expressam essa tendência. Isso ainda sem considerar os asiáticos, China, Índia, que nunca, na realidade, aderiram a uma agenda liberal de política econômica ou desenvolvimento.
Qual a repercussão dessa postura no mundo do trabalho, nos índices de emprego e desemprego?
No nosso caso, isso se reflete num anseio do governo, que não é só desse governo. Já vem do governo do presidente Temer, no encaminhamento da própria reforma trabalhista, de tornar o mercado de trabalho brasileiro mais flexível a partir de um conjunto de reformas liberalizantes das relações de trabalho. O que chama atenção nesse sentido é que se vendeu à opinião pública a ideia de que flexibilizar o mercado de trabalho brasileiro melhoraria as condições de relação de emprego. E isso não se consumou, fundamentalmente por dois motivos.
O primeiro: o que acontece no mercado de trabalho é reflexo do que acontece na economia. Se a economia não crescer, não vai gerar emprego. Flexibilizar o mercado de trabalho não gera emprego, fazer qualificação profissional não gera emprego; pode-se melhorar a qualidade da mão de obra, mas isso é um aspecto que não repercute na geração de emprego. O empresário não decide investir porque tem uma mão de obra mais qualificada, mas existe um conjunto complexo de componentes que levam o empresário a investir ou não. Então, pode flexibilizar, tirar todos os direitos trabalhistas, pode fazer o que quiser que isso não vai gerar emprego.
O segundo aspecto é que se vende à opinião pública que a flexibilização das relações de trabalho e do mercado de trabalho brasileiro teria condições de ampliar o nível de emprego, mas só que isso se dá num mercado de trabalho que já é historicamente muito flexível. Mais da metade da força de trabalho brasileira não tem trabalho formal, são trabalhadores por conta própria, assalariados sem carteira. Historicamente essa é uma característica do mercado de trabalho brasileiro, que sempre contou com um percentual muito elevado de trabalhadores que estão no mercado de trabalho sob formas variadas e atípicas das relações de trabalho. E entre os contratados com carteira de trabalho, que são os chamados trabalhadores formais, também há uma rotatividade muito alta. Estimamos que quase dois terços do estoque de emprego formal no Brasil mudam de trabalho todo ano. E pelo menos um terço do estoque de emprego formal troca de emprego a cada três meses, inclusive se valendo dos contratos de experiência de 90 dias.
Chamo atenção para o fato de que se está dizendo que vai se gerar emprego flexibilizando o mercado de trabalho, sendo que, como já disse antes, o que acontece no mercado de trabalho responde ao que acontece na economia; portanto, o mercado de trabalho autonomamente não gera emprego. E, ainda, se vai flexibilizar um mercado de trabalho que historicamente é marcado por enorme flexibilidade e pouca rigidez do ponto de vista de suas relações. Nesse sentido, o liberalismo, a ideia liberalizante do mercado de trabalho não tem aderência nem com a boa compreensão macroeconômica da determinação do emprego e tampouco tem aderência com características históricas de nosso mercado de trabalho. Pesquisas que temos feito recentemente no Cesit mostram que essas reformas liberais sobre o mercado de trabalho tendem simplesmente a aprofundar a sua desorganização, sem que isso signifique melhores condições de geração de emprego.
Ou seja, passa-se de uma ideia de flexibilização para uma fragilização?
É, exatamente, de uma desorganização. A verdade é que teremos uma crescente desorganização do mercado de trabalho. Vamos falar concretamente: se olharmos a taxa de desemprego medida pelo IBGE, a partir do dado da Pnad Contínua, veremos que o desemprego subiu muito fortemente durante o segundo mandato da presidente Dilma – foram de 6 milhões para 12 milhões de desempregados. No primeiro ano de governo Bolsonaro, o desemprego não subiu, se manteve o desemprego aberto em torno de 12 ou 13 milhões de pessoas. Mas tem uma outra desorganização do mercado de trabalho que é olhar, pelos próprios dados do IBGE, a taxa de subutilização da força de trabalho que hoje está próxima a 30 milhões de pessoas que incorporam os 12 milhões de desempregados.
O desemprego aberto, aumentado no segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, expressa a degradação do mercado de trabalho, com duas quedas expressivas do PIB, em 2015 e 2016. Onde isso aparece ainda mais? Não é no aumento do desemprego aberto, mas pela extensão da faixa de subutilização. Na verdade, há trabalhadores que ingressam no mercado de trabalho, mas trabalham menos horas do que gostariam ou do que necessitariam para obter uma renda adequada. Isso é uma questão, uma característica diferente do que aconteceu no segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, com a subida do desemprego aberto, e o que seguiu acontecendo nos governos de Temer e agora do presidente Bolsonaro, no seu primeiro ano.
Alguns especialistas apontam que, por mais que a economia cresça, a geração de empregos pode não se dar na mesma proporção em função da incidência das novas tecnologias no mundo do trabalho. Como o senhor analisa esse cenário?
Os estudos indicam que o Brasil, até pela falta de dinamismo da economia, tem se integrado muito marginalmente aos ramos mais dinâmicos da economia mundial, particularmente aqueles tecnologicamente mais avançados. Na verdade, se olharmos o movimento da estrutura econômica brasileira, veremos que temos nos distanciado dos setores mais dinâmicos tecnologicamente. Isso é importante dizer, porque a regressão do mercado de trabalho brasileiro desde 2015 não pode ser compreendida pelo avanço de novas tecnologias.
Ou seja, a chamada Revolução 4.0, no atual cenário do Brasil, não tem impacto no aumento dos números do desemprego?
Não, inclusive porque se tem uma economia semiestagnada e incapaz de incorporar de maneira mais dinâmica essas novas tecnologias. A estagnação tem também esse outro lado cruel para a economia brasileira que é de nos distanciar dos setores mais dinâmicos da economia mundial tecnologicamente mais avançados. Estou dizendo isso porque só assim se pode compreender que não tem nada consistente indicando que essa regressão no mercado de trabalho seja fruto das novas tecnologias.
Agora, é evidente que o se o país voltar à rota do crescimento, de desenvolvimento, de incorporação de programas tecnológicos de forma mais orgânica, haverá efeitos sobre o emprego. O desenvolvimento tecnológico sempre tem efeitos sobre o emprego, mas aí precisamos olhar que tipos de efeitos, em que condições, quais os segmentos da força de trabalho e quais os setores que, na verdade, respondem a isso.
O senhor quer dizer que a atual conjuntura do Brasil – de desemprego e subutilização de mão de obra – sequer permite que se reflita sobre os impactos da Revolução 4.0 no mercado de trabalho de hoje?
Sim, e vou destacar outra coisa que é importante para compreender a problemática do que estamos conversando: se o governo, por exemplo, e não somente o governo de Bolsonaro, mas desde a gestão do ministro Henrique Meirelles, ainda no governo Temer, fala que a reforma trabalhista era essencial para gerar empregos, quer dizer que se está apostando numa estratégia de inserção da economia brasileira em setores mais intensivos em força de trabalho. Se está dizendo que a estratégia é desregulamentar o mercado de trabalho, flexibilizar as relações de trabalho, isso quer dizer que se aposta em setores em que o custo do trabalho, a presença de trabalho, é maior. É o que chamamos de setores mais intensivos em trabalho e menos intensivos em capital como, por exemplo, têxteis, bebidas etc.
E se está pensando que vai inserir o país em setores em que o trabalho é mais intensivo, significa dizer que o país vai se integrar aos setores menos dinâmicos da economia mundial e tecnologicamente mais atrasados. Porque os setores tecnologicamente mais desenvolvidos são pouco intensivos em força de trabalho, e aí não faz sentido dizer que se tem no país uma estratégia de desenvolvimento e de progresso tecnológico etc., uma vez que a aposta é nos setores em que se tem mais força de trabalho.
E acrescento: se essa estratégia projeta a intenção de integração do país em setores menos dinâmicos e mais arcaicos no comércio mundial, em hipótese, ao projetar o país para isso também tem uma outra dificuldade, que é estabelecer um padrão de concorrência com os concorrentes já estabelecidos. Uma parte importante da produção têxtil que tem trabalho assalariado hoje está na Ásia, não exatamente na China, mas em países que são satélites do poder chinês, vinculados à economia chinesa e que têm grande parte da produção vinculada a esses setores. Estou falando de países como Bangladesh, Paquistão e outros que se especializaram nesse nicho. Significa que, se projetar o país dessa forma, vai competir nos setores menos dinâmicos, tecnologicamente mais arcaicos e contra competidores já estabelecidos e com uma estrutura econômica e social muito mais ajustada a um custo do trabalho muito mais baixo. Que tipo de reforma, o que se teria de fazer no mercado de trabalho brasileiro para tornar essa economia competitiva com Bangladesh, por exemplo? Essa é uma pergunta importante.
Assim se afasta o país dos setores mais dinâmicos, tecnologicamente mais avançados, e se aposta numa estratégia de liberação do mercado de trabalho e do rebaixamento dos custos laborais. É, no mínimo, uma estratégia questionável quando se olha de forma global o que está acontecendo.
E quais os desafios para se realinhar essa estratégia no Brasil?
Na verdade, se olharmos para um país continental como o Brasil, perceberemos que as nossas necessidades são fundamentalmente vinculadas ao redesenho de uma estratégia de desenvolvimento que possa incorporar o país ou projetar o país nos setores mais dinâmicos, tecnologicamente mais avançados, aproveitando certas vantagens que nós temos. Fazendo tudo certo, já não será fácil. Mas, por exemplo, temos vantagens competitivas importantes, com o maior sistema de saúde do mundo, que é o Sistema Único de Saúde – SUS. Então, podemos imaginar uma política de desenvolvimento tecnológico e produtivo vinculada a tudo aquilo que nos representa em termos da oferta de serviço, de medicamentos, do desenvolvimento da indústria química, da indústria farmacêutica, e se pode articular isso contando com um sistema de saúde gigantesco como o que nós temos. Dificilmente em alguns setores já consolidados se terá condição de entrar, mas em alguns outros setores isso é possível. Em petróleo, por exemplo, temos a Petrobras como uma das empresas mais importantes do país que poderia ser usada como uma estratégia de articulação de seus investimentos.
E, ao contrário, abre-se mão de uma estratégia do jogo de mercado, pois grande parte do consumo de nosso sistema de saúde é importado. Temos importantes instituições do país, como a Fundação Osvaldo Cruz e outras instituições nacionais, que poderiam avançar sobremaneira auxiliando na redução, por exemplo, do déficit comercial no setor de saúde e importando coisas que poderíamos fazer aqui, se houvesse investimentos em pesquisa, tecnologia, articulando as universidades com os institutos de pesquisa e com o setor privado nacional, por exemplo.
Isso pode não dar resposta direta em relação ao emprego em setores tecnologicamente muito avançados, pode não enfrentar o desemprego em massa e coisas desse sentido. Mas, de qualquer maneira, é um setor que geraria empregos de muito boa qualidade e com repercussões no sistema de saúde que para nós é importante, como atender melhor a população brasileira, desenvolver mais o país tecnologicamente e assim por diante.
Essa mesma perspectiva que o senhor usa para falar da reforma trabalhista pode ser a mesma para se analisar a reforma da previdência?
Sim, porque ela vai também na mesma lógica. É o que alguns organismos internacionais chamam de estratégia de competitividade espúria, a partir do rebaixamento de custos. Custos laborais e da proteção social. Ou seja, é a mesma lógica que acabei de falar com relação à reforma trabalhista, pois a reforma da previdência não gera emprego, não amplia o horizonte de investimento dos empresários. Na realidade, na forma como foi feita a reforma da previdência, pensando basicamente em corte de gastos e exclusão de pessoas do sistema de proteção, não encaminha nenhum dos problemas estruturais que acabamos de discutir. Vai na mesma lógica da reforma trabalhista e com um potencial muito grande de desorganização de nosso sistema previdenciário construído a partir de 1988.
Não passa pela cabeça de ninguém que tenha a compreensão do que é o mercado de trabalho brasileiro que se vá conseguir oferecer aposentadoria para os brasileiros, para os nossos idosos, a partir de um sistema previdenciário fundado em contribuições individuais. Não foi aprovado dessa maneira, mas a ambição do governo era fazer isso, sair de um sistema de repartição para um sistema contributivo individual. Isso retrata que cada brasileiro terá que cuidar de sua proteção na velhice. Se olharmos o mercado de trabalho brasileiro, fundado em baixo padrão de salário, pois metade do mercado de trabalho hoje ganha até R$ 1.800,00, como é possível imaginar que o sujeito terá capacidade contributiva para garantir a aposentadoria na sua velhice? O que se está dizendo, no fundo, é que os brasileiros não irão se aposentar.
Não estou dizendo que o sistema tributário brasileiro é perfeito. Existem correções que poderiam e deveriam ser feitas. Tampouco estou dizendo que nada foi feito nos últimos tempos. O presidente Fernando Henrique fez uma reforma previdenciária importante em 1998, o presidente Lula fez outra reforma previdenciária em 2003 que também foi importante e a presidente Dilma também fez uma reforma previdenciária. Portanto, ao longo dos governos dos três últimos presidentes foram feitas reformas previdenciárias que endureceram os critérios de acesso e criaram condicionalidades maiores e com regras que nos aproximam ou até superam regras dos países desenvolvidos. Inclusive com uma situação demográfica não tão radical como a dos países desenvolvidos. Ou seja, como disse, não é que não haja problemas no sistema, mas o que foi feito nessa reforma não enfrenta nenhum dos problemas estruturais da nossa previdência com o objetivo de atender melhor e com mais segurança à população brasileira.
Diante do atual cenário econômico nacional, o que o senhor projeta para 2020, especialmente no que diz respeito ao mercado de trabalho?
Falar do futuro é sempre muito difícil. Nós temos que ter em conta o que o governo pode fazer e o que o governo vai fazer no sentido de dar mais vigor à economia brasileira. E é isso que vai definir o que vai acontecer no mercado de trabalho. Temos avaliado que é possível que a economia brasileira mantenha o ritmo de crescimento relativamente lento, não há nenhum sinal de uma recuperação mais vigorosa. E, quando falo em lento, reconheço que é possível crescer 1,5% em 2020. Ou, melhor, sem falar em números: é possível crescer um pouco mais do que em 2019, mas mesmo assim não vai se resolver nenhum dos problemas estruturais.
É possível que a taxa de desemprego caia um pouco, inclusive pelo aumento dos trabalhadores informais, por conta própria, empreendedores individuais, refletindo não uma recuperação mais dinâmica e vigorosa do mercado de trabalho, mas de alguma forma a inserção por estratégias de sobrevivência que são historicamente presentes no nosso mercado de trabalho. Então, é possível que, com um crescimento maior do que o de 2019, tenhamos até uma redução do desemprego aberto, por vários fatores.
Essa é uma possibilidade que vemos num cenário mais próximo do que se tem hoje. Mas isso é muito incerto porque evidentemente o governo brasileiro tem condições de atuar para que seja melhor. Como também tem condições para que seja pior. Então isso é um campo para observarmos ao longo do ano.
Situação social dramática
Nós temos de ter em conta que a situação social do Brasil é dramática, o desemprego é muito alto, as condições de vida da população e a desigualdade vêm piorando, a pobreza está aumentando depois de mais de 20 anos de queda – desde o governo do presidente Fernando Henrique a pobreza no Brasil vinha caindo, a desigualdade vinha caindo, isso se acentuou no governo Lula e no governo da presidente Dilma, e a partir dali piorou muito.
Então, precisamos levar em conta a urgente necessidade de fazermos o país voltar a crescer com uma taxa mais robusta para melhorar as condições do mercado de trabalho, da renda e do emprego dos brasileiros. Caso contrário, a tendência é do agravamento da situação social com suas consequências mais variadas: violência, exclusão social e todas as patologias que temos visto crescer no país.
Nesse sentido, pensando na geração de emprego, é mais interessante o governo agir no sentido macro da economia em vez de ficar bolando programas como o da Carteira Verde e Amarela?
Sim, sem dúvida. Na verdade, a Carteira Verde e Amarela não tem capacidade de geração de emprego. Ela pode mudar o marco regulatório do mercado de trabalho, mas ela não gera emprego. O governo tem que atuar nos determinantes do crescimento da economia brasileira. Quais são os determinantes do crescimento? Investimento das empresas ou consumo das famílias e os próprios gastos do governo. Sem contar o comércio exterior, que também não tem ajudado e que tem, na verdade, patinado. A economia internacional também não é muito favorável a nós neste momento.
O governo tem que atuar nos grandes determinantes macroeconômicos que na verdade condicionam o que acontece no mercado de trabalho. Esse tipo de reforma, Carteira Verde e Amarela, Programa Primeiro Emprego, tudo isso pode funcionar se tiver emprego. É possível abrir emprego para os jovens se o emprego estiver criado pelo movimento da economia, e não pelo programa.
Deseja acrescentar algo?
Só desejo que 2020 seja melhor que os últimos cinco anos terríveis que o Brasil viveu e que isso se reflita na melhoria das condições de vida que os brasileiros têm neste momento.
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