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Privatização de araque de Guedes e Bolsonaro é absurda, diz professor da USP

Sem planejamento, governo prova não ter competência para executar sua própria agenda. Desmoralização afasta investidor e aprofunda crise econômica
Amaro Augusto Dornelles
Diálogos do Sul
São Paulo (SP)

Tradução:

* Atualizado em 26.10.2020 para correção de informação

Desde meados de outubro corre na mídia hegemônica notícia sobre os “últimos retoques da equipe econômica” na lei que vai regulamentar a privatização da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. 

Pública, federal, a gigante estatal é responsável pela entrega de correspondências no Brasil continente. Além de distribuir encomendas em todo o território nacional e prestar serviços de apoio em todas as esferas do Governo, ela auxilia a população com sua rede, principalmente em regiões inóspitas como Amazônia e Pantanal, entre outras. 

Desde que a venda dos Correios foi apresentada no Congresso Nacional, soube-se que o texto já estava assinado por Paulo Guedes, o ministro da Economia. Já o modelo de privatização ainda não está pronto. Curiosa maneira de atrair interessados. A equipe econômica trabalha com um cronograma que prevê o leilão para meados de 2021. Seria de se supor que o astro do ministério bolsonariano conseguisse encantar o mercado com seu ultraliberalismo, que sempre prioriza privatizações pr’adoçar o bico do empresariado. 

Pois é. Mas o fato é que a esta altura do ano, a privatização anda a passos de cágado. Agenda complexa, reuniões, degraus, etapas … Tudo requer planejamento, articulação — produto raro nos luxuosos gabinetes da Ministério da Economia em Brasília. Lá as coisas estão mais difíceis a cada dia que passa, delicado. Parece que tudo está além das forças da equipe formada pelo economista preferido do general Augusto Pinochet e sua ditadura.

Tudo errado

“O governo não cumpriu nada do que falou até agora”, constata Paulo Feldmann, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) – USP; engenheiro, doutorado pela FGV. 

Ele foi presidente da Eletropaulo (quando estatal) e de outras empresas ao longo de 35 anos. Professor em duas universidades húngaras, é pesquisador da Universidade Fudan na China; morou muitos anos na Europa e nos EUA, onde trabalhou para multinacionais como Citibank, Microsoft, EY, Philips. 

Para o perito, a decantada venda dos Correios é insana: “se conseguirem, vai ser um absurdo. No mundo inteiro este serviço é estatal. Nos EUA há uma privatização, parcial, com ‘US Post Office, FEDEX e DHL’. Mas, no Brasil, seria uma tragédia”. Como se sabe, os Correios sempre prestaram um bom serviço no Brasil, tanto para entregar correspondência em todos os locais, por mais inóspitos que sejam. E ainda “manda bem” na função de atender o crescente comércio eletrônico nas entregas, que não costuma falhar, igualmente.

Dá pra contar nos dedos da mão os países que privatizaram seus correios – como Argentina, Portugal e Alemanha. Todos eles de reduzida extensão. A experiência foi frustrante, para dizer o mínimo.  Nenhum país grande sequer cogita privatizar esse serviço. E diga-se de passagem: aqueles três que privatizaram estão revendo a decisão porque o serviço privado deixou muito a desejar.

Afastando Investidores

A iniciativa privada busca o lucro. Benemerência ela deixa para o Estado. Para entregar cartinha lá “onde Judas perdeu as botas”, cobrariam os tubos. Isto na hipótese de a empresa vencedora do eventual leilão não resolver desistir de se aventurar sabe-se lá onde, só pra prestar serviços em regiões perdidas nos quadrantes deste país continente e que rendem muito pouco.

Paulo Feldmann ressalta que o governo fala as coisas e logo em seguida volta atrás. Como aconteceu agora, em relação à privatização das Unidades Básicas de Saúde (UBS), do SUS – que eles queriam passar para a iniciativa privada. Tudo isso vai desmoralizando a governo, o que afastaria eventuais investidores. 

“A privatização dos Correios é uma aberração. É preciso ter competência para promovê-la: montar um leilão internacional, fazer avaliações corretas do patrimônio. Pra fazer isso tem de ter competência — coisa que este ministro e o governo (muito menos) não tem. Não é por acaso que a debandada da equipe de Guedes  não termina” (veja no quadro 1), constata o mestre e doutor pela FGV. O ex-funcionário de Microsoft, EY, Philips, Citibank não tem dúvidas de dizer com todas as letras: “a privatização bolsonariana conduzida por Paulo Guedes é absurda”. 

Programa Fracassou

De qualquer forma, a mídia segue preenchendo espaço com a utópica privatização. A questão é saber até onde ela chegou até agora. Seria possível calcular prejuízos e eventuais lucros? 

Segundo o professor Feldmann, faltam números precisos para fazer uma estimativa. O que se poderia dizer, sem margem de erro, é que as vendas foram poucas: uma refinaria, pequenos poços de petróleo no Nordeste (onde as reservas podem ser reduzidas). Tudo com impacto muito pequeno. Ou seja: “até agora o programa é um fracasso. Não conseguiram nada do que buscavam”. 

A carteira do Programa de Parcerias e Investimentos do Ministério da Economia (PPI)  reúne 155 ativos federais, além de projetos municipais que estão sendo estruturados com o apoio do governo federal. De acordo com o governo, os investimentos decorrentes da agenda de leilões previstos até 2021 somam ao menos R$ 466 bilhões.

Para privatizar a Eletrobras, anunciada ainda em 2017, durante o governo de Michel Temer, a meta era aumentar o capital gigante de energia brasileira mediante à venda do controle acionário. Só falta combinar com os parlamentares, que continuam contra. 

O Amapá é notícia há algum tempo graças a seu apagão regional — ao melhor estilo FHC, em 2001: temos aí um bom exemplo de privatização mal feita”, esclarece o mestre. “Os cidadãos do Amapá estão passando por um apagão drástico no fornecimento de energia porque a empresa privada, que opera o estado extrapolou todos os limites da incompetência. E agora só resta pedir socorro para a Eletrobrás”.

‘Privatização ao Vinagre’

Se todos os leilões previstos (leia tabela) para ocorrer até o final do ano fossem aprovados no Congresso e realizados, a estimativa seria de que os investimentos decorrentes das assinaturas dos contratos somassem R$ 35 bilhões. 

Destaque para o leilão de transmissão de energia (R$ 7 bilhões) e para a renovação da concessão da Estrada de Ferro Carajás (EFC), no sudoeste do Pará, além da Estrada de Ferro Vitória-Minas (EFVM), com compromissos de investimentos de R$ 17 bilhões. Pesadelos de uma gélida noite de inverno.

É claro que o “economista ministro” sempre pode relativizar seu fracasso com a recessão provocada pela pandemia, por mais que o plano do governo fosse privatizar 64 ativos estatais neste ano. Pois quase tudo foi “p’ro vinagre”: apenas quatro leilões foram concretizados até setembro, como até a mídia hegemônica noticiou. 

Setores radicais do mercado financeiro caíram de pau no pífio resultado. O reflexo pode ser visto nas baixas na equipe do pequeno Paulo Guedes. No início de sua gestão, ele havia prometido uma arrecadação R$ 1 trilhão com privatizações. Quá, quará, quá quá.

Governo Inepto

Quando se fala de privatização não é possível ignorar a postura da população, por mais manipulada que ela seja, historicamente. No último levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisas Datafolha — em agosto de 2019 — dois em cada três brasileiros são contrários a qualquer tipo de privatização, o equivalente a 67% da população. 65% dos entrevistados se opõem à venda da Petrobras. Não é por acaso que o insuspeito professor da FEA-USP vai direto na ferida:  

“Eles não conseguiram fazer praticamente nada. O pouco que aconteceu até agora em termos de privatização foi através do Congresso. A reforma do governo foi discutida e detalhada no governo Temer. A cada dia que passa o atual governo se revela mais inepto sob todos os aspectos”. Mesmo projetos como a reforma da Previdência, lembra ele, foram discutidos e aprovados graças a articulações do presidente da Câmara, Rodrigo Maia. 

O auxílio emergencial foi torpedeado por Bolsonaro. A oposição no Congresso sugeriu RS 1.000. Bolsonaro bateu pé nos R$ 200. Até que o congresso aprovou os RS 600,00. Ao ver o resultado dar certo, o ‘Messias’ saiu Brasil afora assumindo a paternidade do programa.

Guedes: Mal a Pior

“Paulo Guedes vive falando bobagens. Naquela reunião de ministros que foi filmada, em abril, ele disse, entre várias lorotas, que iria privatizar o Banco do Brasil. Não falou mais no assunto. Estamos em novembro e não aconteceu nada”. 

Feldmann ressalta que o mercado — leia-se empresários da Av. Faria Lima, como se diz em São Paulo — registra tudo. O resultado é que hoje em dia quase ninguém mais estaria levando a sério o ex-“Posto Ipiranga-sabe tudo” do início do governo bolsonariano. 

A economia do Brasil vai de mal a pior. Sinal vermelho da inflação (segundo o próprio Paulo Guedes); finanças piores ainda; dívidas em cima de dívidas; alimentos cada vez mais caros, país endividado. Não há nenhum ponto positivo na atual gestão? Para o experiente doutor em economia que dá aulas na USP, Hungria e China, “já não há razões que justifiquem a permanência do senhor Paulo Guedes no ministério da Economia do Brasil.” 

Não há planejamento

Analisando os dados disponíveis, ele garante: o governo não tem a menor condição de levar o projeto de privatização adiante, a começar pela falta de maioria confiável no Congresso. Como se comprova dia após dia, nem sempre o Centrão fecha com o governo. Só quando lhe convém, como Bolsonaro sabe muito bem.

A área de pesquisa do professor Feldmann na USP é o estudo do desenvolvimento econômico, além de orientar teses. Ele se diz horrorizado com o que vê acontecer no Ministério da Economia: “quando a gente compara a América Latina e a Ásia nos últimos 20 anos é estarrecedor. A renda per capita dos povos asiáticos subiu 80%. Na América Latina, foram 18%. Só uma região no mundo cresceu menos do que os latinos: a África, com 15%”.  

Este baixo crescimento tem uma explicação, segundo ele: o Consenso de Washington. A Ásia não deu a menor bola. Só a América Latina, além da Hungria, Tchecoslováquia e Polônia, no começo. Depois largaram.

Uma das principais razões do baixo desenvolvimento, assegura o docente, foi acabar com o planejamento econômico do país, como fez o “honorável” FHC já em seu primeiro governo. “Ele seguiu à risca o modelo do Estado mínimo”, desfecha o mestre doutor, ao lembrar Pedro Malan, então ministro da Economia, sempre a repetir: “deixa que o mercado resolve”. 

Só se for a favor de multinacionais dos EUA, tornando o Brasil exportador de commodities. O que mais estarrece o estudioso é a aparente ausência de planejamento dos responsáveis pela gestão econômica do país.

Quintal dos EUA

O resultado de tanta inépcia o país sente agora, com uma produtividade baixíssima, como mostram os índices: “perdemos importância no mundo, mas isso não é de agora, infelizmente. Vem da época da “desindustrialização de Collor”, quando a indústria do país foi obrigada a competir com importados de China e Coreia, entre outros”. O programa foi mantido por FHC, defensor do Consenso de Washington “grande amigo de Bill Clinton”.

“Nem os militares da ditadura de 1964 deixaram de lado o planejamento econômico. Criaram a reserva de mercado da informática, que permitiu a fundação das indústrias nacionais do setor, assim como o álcool, combustível feito do milho, em 1975. Antes de inaugurar a Embraer, criaram o Instituto Tecnológico Aeronáutica, em São José dos Campos (SP), para formar mão de obra especializada. Isto é planejamento”, ensina o professor.

“Filosofia do Estado Mínimo”

De acordo com ele, quando se observa a forma pela qual outras regiões do planeta se desenvolveram, vemos que o grande problema do Brasil foi ser o ‘quintal’ dos EUA. A proximidade geográfica que temos nos induziria a acatar “recomendações” dos “irmãozinhos do Norte”. 

Todos os presidentes, garante, têm como “missão” abrir mercados para suas empresas, observou ele, que viveu boa parte de sua vida por lá. A única região não poderia ir contra os EUA seria a América Latina, onde se abre tudo sem nunca receber uma contrapartida. 

“Muito sintomático que, excetuando se África, todas as regiões do mundo tenham tido um crescimento econômico muito maior do que a América Latina nos últimos 25 anos, observa o estudioso, ao ressaltar: “a diferença é que nas outras regiões não houve a influência exacerbada dos Estados Unidos  sobre o desenvolvimentos econômico de cada país. Naquelas bandas o ‘Consenso de Washington’ não pegou”. Ele garante que nenhum país asiático importante adotou a “filosofia do estado mínimo”. E todos basearam seu crescimento em planos de longo prazo, elaborados pelos respectivos governos.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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