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Por não entender que regime militar está na gênese da República, esquerda brasileira está se suicidando

15 de novembro foi uma quartelada a mais que virou golpe militar, vieram outros golpes e a esquerda nunca se apoderou do processo. Como diz Safatle, morreu
Paulo Cannabrava Filho
Diálogos do Sul
São Paulo (SP)

Tradução:

15 de novembro foi uma quartela a mais que virou golpe militar. Houve antes várias tentativas e naqueles dias os quarteis estavam sublevados, os oficiais queriam ser reconhecidos “por seus méritos”, estavam pressionando o governo, desestabilizou o gabinete, e o que era mais uma quartelada virou golpe porque acharam que o general Deodoro seria punido. Não foi, não seria, e não houve sequer tentativa de resistência por parte da Coroa dos Bragança.

Em meio à crise de gabinete, falta de governo e insubordinação da oficialidade do Exército nasce a República. Os governos dos generais Deodoro da Fonseca e em seguida de Floriano Peixoto e logo o de Hermes da Fonseca, parente do primeiro, transcorrem em Estado de Sítio e é sob a tutela dos generais que surge a primeira Constituição Republicana. Quem eram esses militares? Heróis das guerras imperiais foram agraciados com mais terras do que já possuíam. Terras e gentes, ou seja, gente escravizada, talvez um que outro originário da terra, a maioria trazida de África. Por serem ricos, proprietários de terras e gentes, participavam das reuniões e de festas na corte e faziam parte da Guarda Imperial.

15 de novembro foi uma quartelada a mais que virou golpe militar, vieram outros golpes e a esquerda nunca se apoderou do processo. Como diz Safatle, morreu

Montagem Diálogos do Sul
Marechal Deodoro é um personagem importante do 15 de novembro do Brasil

A primeira Lei Penal promulgada por Deodoro foi para punir vagabundagem e a capoeira. O que era ser vagabundo? Era como é até hoje, estar desempregado. Em 1888, acabaram com a escravatura legal, meses depois, em 1889, instalaram a República, mas não incluíram os libertos nem no processo econômico nem no cultural. Isso gerou uma outra nação que sobrevive nas favelas e nos bairros periféricos. Capoeira era como o desempregado se defendia da repressão. 

Capoeira como Marighella se defendeu quando o prenderam assistindo um filme num bairro do Rio de Janeiro: só foi dominado e preso, sangrando com um tiro no peito. O “Preto”, um dos apelidos de Carlos Marighella, poucos anos depois, desarmado, seria fuzilado por um comando de uns trinta policiais. Como foram fuzilados os quase 30 “pretos” no massacre de Jacarezinho. Nada mudou na eterna guerra civil do Estado contra o povo.

Estava em curso um movimento encabeçado por liberais. Frustrada a Revolução Liberal, a transição do regime monárquico para o republicano, mediatizada pelos militares, foi praticamente uma restruturação do poder oligárquico sem o imperador. Implanta-se a República dos Oligarcas, ficou na história como a República do Café com Leite, dado que se alternavam no poder oligarcas de Minas Gerais (Leite) e São Paulo (Café).

Oficiais militares de classe média, protagonizam a revolta dos tenentes que culmina na Revolução de Outubro de 1930. É o início da modernização do Estado, criando as condições para o país deixar de ser mono produtor agrícola exportador e entrar no mundo do capitalismo global. Investimentos em Educação, Saneamento e Infraestrutura mudam completamente a fisionomia da Nação e do Estado. 

Esses mesmos militares que conduziram o processo antioligarca e nacionalista de 1930, ficaram onze anos no poder e conduziram a transição que vai dar na organização dos partidos políticos, eleições gerais, Constituinte (não exclusiva) em 1945, e culmina com a Constituição de 1946, que se caracteriza por afiançar a restauração do poder oligarca. 

A República Oligarca transcorre num regime multipartidário, grande parte partidos feudos, com donos e currais eleitorais. O primeiro governo dessa transição foi do general Eurico Gaspar Dutra, que havia estado ao lado de Góis Monteiro, o homem forte da ditadura do Estado Novo. Não é preciso explicar a obviedade do porque Dutra. 

Vargas volta ao poder, nos braços do povo, quer continuar a modernizar o Estado. Para isso conta com a ajuda valiosa de seu ministro do Trabalho, gaúcho como ele, João Marques Goulart, com a missão de garantir os direitos aos trabalhadores. Não é de estranhar que seriam os militares que tornariam a vida do presidente impossível facilitando a reação oligarca até que o levam à morte.A morte de Vargas provoca tal comoção nacional que os militares, divididos entre legalistas e golpistas, dão uma folga ao regime civil. Havia uma geração de oligarcas esclarecidos interessados na modernização do Estado. Alguns deles estavam transferindo riqueza acumulada no agro para o nascente processo de industrialização.  

Dirigido pelo Estado e tendo um Projeto Nacional o país cresce exponencialmente. Esse pacto entre o capital e o trabalho articulado pelo Estado não vai durar muito. Surge em cena um valor mais alto, os Estados Unidos empenhados em expandir sua hegemonia por todas as Américas.

Umas poucas tentativas de golpe militar foram frustradas, não obstante, acumulam forças e se articulam com as empresas transnacionais e o governo dos Estados Unidos para capturar o poder. O Golpe de 1º de Abril de 1964 foi isso. Uma estratégia de captura do poder e de permanência no poder pelos generais do Exército, e a cumplicidade das demais armas e demais instituições do Estado. 

Já haviam tentado capturar o poder em 1961, com a renúncia de Jânio da Silva Quadros. O golpe frustrou porque uma voz se levantou no Sul e empolgou a nação inteira em defesa da legalidade. Brizola no governo do Rio Grande do Sul havia expropria as empresas estadunidenses que monopolizavam energia e telefonia, feito uma reforma agrária e colocado todas as crianças na escola. Nem os Estados Unidos, nem as oligarquias o perdoaram jamais e isso explica o ódio que a ele devotavam os militares. Impediram por todos os meios que ele organizasse seu partido e chegasse à Presidência da República.

Os possíveis focos de resistência ao golpe de 64 foram esmagados no primeiro momento. Nem foi preciso o desembarque de tropas ianques, embarcadas numa frota naval, que já estava em águas territoriais do Rio de Janeiro com destino a São Paulo.

Em 1964 já estava claro que os militares haviam tomado o poder para ficar indefinidamente. Nessa perspectiva, o Correio da Manhã denuncia e se torna a única voz impressa dissidente entre os meios de comunicação, e a Rádio Marconi de São Paulo a voz radiofônica com o mesmo objetivo. Ambos seriam extintos antes mesmo de 1968, ano do dezembro fatídico em que foi editado o Ato Institucional 5. Sob o regime militar tivemos mais uma Constituição outorgada e 17 Atos Institucionais. Os demais meios de comunicação aderiram ao novo regime e enriqueceram.

Getúlio Vargas, Juscelino Kubitscheck, João Goulart, nos ofereceram um decênio de democracia, desenvolvimento e certa tranquilidade. Foi muito para as oligarquias e para os militares que estavam fora do poder e passaram a conspirar até a captura do poder em 1º de abril de 1964. Ocuparam o poder e permaneceram 21 anos.

Abertura gradual e segura, anistia e nova Constituinte (1987/88), tudo sob tutela militar. Ou seja, mais uma transição conduzida pelos militares. Na recomposição das forças políticas, de novo são priorizados partidos políticos organizados para restaurar o poder oligárquico. Contudo, o mundo e a sociedade brasileira já eram diferentes e foi possível organizar também partidos representando democratas, nacionalistas, desenvolvimentistas com forte apelo popular. Destaque para a reorganização do movimento sindical e de associações comunitárias.

A Nova República nasce sob a égide do neoliberalismo 

Quem foi o traidor, não sei, mas está lá na Constituição o Estado preso às questões fiscais e da dívida pública. Nessa transição mediatizada não se fez a necessária reforma do Estado. Os civis assumem o poder com as mesmas instituições que atravessaram os séculos e os golpes de Estado. Transição mediatizada sem as reformas política e eleitoral necessárias. Transição sem Justiça Reparadora. 

Transcorreram 12 anos de Fernandato (Fernando Collor e Fernando Henrique) 16 anos de governo petista, ou seja, 28 anos sem os militares como protagonistas. 

O que fizeram os militares nesse tempo? Essa é uma questão chave para se compreender o que ocorre hoje e vai ocorrer amanhã no país.

Oficiais e praças apreenderam com instrutores e oficiais ianques a atuar como força policial de controle social. Aprenderam isso em missões disfarçadas de pacíficas, mas que foram verdadeiras ocupações militares, com todas as sequelas que uma ocupação militar pode deixar num país. Mostraram o que aprenderam quando chamados a intervir no Rio de Janeiro. Tropas aterrorizaram as populações pobres dos morros e periferias do Rio de Janeiro. 

Os militares frequentaram escolas, academias, no Brasil e nos Estados Unidos que lhes ensinaram tão somente as cartilhas de uma Guerra Fria já superada, doutrinas anacrônicas de guerra contra o inimigo interno, colocando o povo como inimigo a ser combatido. Diferente das gerações anteriores, essa geração de militares é analfabeta funcional, não lê, não estuda, se prepara tecnicamente para sobreviver no exercício da função. Abandonaram a noção de estratégia, são meros oficiais operacionais às ordens do comando superior dos Estados Unidos. 

Isso é muito grave porque o que foi realmente abandonada é a soberania do país.

Tropas pretorianas a proteger os interesses do Império. Deslumbrados a pretender sentar ao lado de gente importante e ganhar dinheiro, muito dinheiro, não importa como. Destituídos de moral os oficiais que ocupam cargos públicos acumulam dois salários, o soldo de militar e a remuneração do cargo público. Generais ganhando de 100 mil a 200 mil reais.

Em pelo menos dez dos 28 anos que ficaram fora do governo, os militares planejaram e executaram uma Operação de Inteligência para a captura do poder, que culminou em outubro de 2018, com a farsa eleitoral. Manobraram para tirar da disputa o principal adversário e utilizaram inteligência artificial e o poder de todo o dinheiro do mundo para alcançar o objetivo.

Para as velhas oligarquias, nada a perder; para as novas plutocracias tudo a ganhar, desde que se assegure o cumprimento do decálogo do Consenso de Washington. As regras de ouro impostas pelo capital financeiro, assegurada pelo pensamento único, acrítico, das universidades e das mídias. Ocuparam todos os centros de decisão do governo. O judiciário, sempre fiel à velha oligarquia a qual pertencem, entraram no jogo, assim como os parlamentares financiados pela nova plutocracia. 

O touro dourado copiado da Wall Street, em frente a Bolsa de Valores em São Paulo, a réplica da Estátua da Liberdade no cais de Nova York colocada no pátrio de lojas de varejo, generais batendo continência para a bandeira dos Estados Unidos e recebendo ordens no Comando-Sul do império representam bem o que é essa nova plutocracia. Só não entendo porque se vestem de verde-amarelo, quando as cores que preferem são o azul e o vermelho da bandeira ianque.

Cerco fechado, o circo armado, é só deixar andar.

A esquerda morreu

Estamos há onze meses da eleição de 2022. Está evidente que os militares possuem um plano de permanência no poder. Afinal, são mais de nove mil no governo federal, 12 mil exercendo funções fora dos quartéis. É ou não é uma ocupação militar? Difícil acreditar que eles queiram deixar o poder. 

Vladimir Safatle, filósofo, em entrevista ao jornal El País, diz que a esquerda morreu e é preciso ver o porquê. 

É um chamado à reflexão que requer muita coragem, paciência. Ficarei apenas com estas provocações que espero contribuam para essa busca do porquê.

A esquerda começou em 1922 com a fundação do Partido Comunista, e se desenvolveu por décadas com intenso trabalho de organização dos trabalhadores tanto no campo como nas cidades através de sindicatos e de células. O PCB tinha abrangência nacional e grande influência entre intelectuais e nos meios de comunicação.

A célula militar, ou melhor, o Aparelho do Partido Comunista nas forças armadas era muito grande. Promoveram uma limpeza em 1935, outra maior ainda em 1964 quando mais de três mil militares foram expulsos. Interessante, depois de cada expurgo sempre sobrava alguma coisa, sempre havia um militar de esquerda ou democrata e legalista com quem conversar.

Militares, operários, estudantes, intelectuais, artistas e comunicadores militantes entendiam que a luta era antioligarca, anti-imperialista e pelo socialismo, que seria alcançada através de uma frente de libertação nacional. Acharam que com os militares poderiam tomar o poder. A tentativa de sublevar a tropa em 1935 foi erro de avaliação estratégica tremendo com sequelas até hoje entre os militares e a sociedade.

Essa debaclé diminuiu, mas não anulou a influência do partido no meio castrense. Militares participaram da luta interna no início dos anos 1960, que gerou Dissidências no movimento estudantil em vários estados, o Agrupamento Comunista de São Paulo, o Partido Comunista Revolucionário no Rio de Janeiro e a Ação Libertadora Nacional, ALN para desencadear a luta armada em todo o país.

Como avaliou Carlos Marighella, desde 1945, todas as tentativas de levar adiante uma democracia e um projeto de desenvolvimento nacional foram frustradas. Contra a força armada do Estado Oligarca vamos organizar uma força armada popular para enfrenta-la. O processo seria longo e foi abortado ainda nos primórdios da fase de preparação.

A esquerda armada foi dizimada em curto tempo. Não satisfeitos os militares passaram a exterminar também a esquerda desarmada. Acabaram com os quadros dirigentes tanto do PCB como do PCdoB. Tudo isso com a benevolência dos poderes legislativo e judiciário e a ajuda técnica e financeira do amável Tio San.

Assim chegamos aos anos 1980 para mais uma transição feita pelos militares e o início de uma nova ditadura, essa muito complicada, difícil de entender, posto que transcorre com as instituições chamadas democráticas funcionando a plenitude.

Foram 28 anos de uma Revolução Cultural às avessas em que, variando, com maior ou menor intensidade, o pensamento único imposto pelo capital financeiro foi se espalhando até permanecer hegemonicamente nas escolas em todos os níveis, e tendo os meios de comunicação como porta-voz. 

É ditadura de uma classe que se impõe no Legislativo como um rolo compressor anulando todas as conquistas dos trabalhadores. Conta com um poder judiciário que desde o império foi instituído para proteger a propriedade, e ponto final. É uma ditadura midiática, uma só voz em defesa do status quo.

Tem razão Safatle ao dizer que a esquerda morreu

Sucumbiu entre a violência do pensamento único, a teologia da prosperidade, e a cooptação dos quadros para exercer cargos bem ou mal remunerados na Administração Pública. Isso de um lado. De outro lado, não entendeu até hoje a essência do regime, oligárquico ou militar ou militar-oligárquico, e tampouco logrou formular propostas alternativas. 

A maior tragédia foi ter o capital financeiro implantado o pensamento único. 

A ocupação militar do governo é apenas mais uma das consequências desse pensamento único dominante na mídia, nas escolas. As Ciências Sociais abominadas, a economia encarada como ciência exata formando quadros para manutenção do status quo. Não bastasse, a militarização das escolas de primeiro e segundo grau, formando criaturas disciplinadas e obedientes.

A primeira delas, é libertar-se da servidão intelectual, livrar-se da ditadura do pensamento único. Para isso, é necessário recuperar a boa escola e colocar todo mundo dentro dela, a começar pelos analfabetos funcionais diplomados, com beca ou com farda. 

A pergunta que não quer calar: tem como eximir a esquerda e os que se dizem democratas da culpa pela deterioração da escola pública, ou de pôr ser a mídia portadora do pensamento único? 

O atraso é imenso. Muitas revoluções serão necessárias para recuperar essas décadas perdidas. 

A população ao conhecer a realidade dos fatos e readquirir o pensamento crítico e criativo poderá dar o passo adiante, repensar as instituições, repensar a política, planejar o desenvolvimento. 


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1967. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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