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ToggleEu abrirei um caudal amoroso,
e os que vierem atrás de mim
terão que entrar pelo caudal.”
José Martí, 1892[1]
José Martí prestou especial atenção ao papel da educação nos tempos de transição que vivem as sociedades de nossa América, em um sistema mundial liberal que se esgota ante nossos olhos para outro ainda por definir em cada uma delas. Dentre os muitos textos que dedicou ao tema em seu tempo, quando as nações de nossa América transitavam da colonização para sua primeira modernidade – a do Estado liberal oligárquico – destaca-se um breve artigo intitulado “Professores ambulantes”, que publicou em maio de 1884 na revista La América, em Nova York.[2]
Para Martí, o importante na educação que demandava o progresso e o bem-estar da gente de nossa América, mais do que “a forma como for feita”, era fazê-lo a partir de sua circunstância histórica. A esse respeito, dizia que o conteúdo fundamental deste fazer radicava na importância que dava ao melhoramento humano e à utilidade da virtude na luta pelo equilíbrio de um mundo em transformação.
Assim, considerava necessário empreender a tarefa de educar a partir de “um acúmulo de verdades essenciais que cabem na asa de um beija-flor, e são, no entanto, a chave da paz pública, da elevação espiritual e da grandeza pátria”. Sua visão atribuía especial importância à necessidade de “manter os homens no conhecimento da terra e no da perdurabilidade e transcendência da vida”, para facilitar-lhes viver “no prazer pacífico, natural e inevitável da liberdade, como vivem no gozo do ar e da luz.”
Prazeres da vida
Desfrutar deste prazer, por outro lado, demandava desenvolver ao mesmo tempo “o apego à riqueza e ao conhecimento da doçura, da necessidade e dos prazeres da vida”. Por isso mesmo, o educador devia atender ao fato de que as pessoas “crescem, crescem fisicamente, de uma maneira visível, crescem, quando aprendem algo, quando passam a possuir algo, e quando fizeram algum bem”, para compreender que
Só os néscios falam de desventuras, ou os egoístas. A felicidade existe sobre a terra; e é conquistada com o exercício prudente da razão, o conhecimento da harmonia do universo, e a prática constante da generosidade. Aquele que a busque em outra parte, não a encontrará: que depois de haver degustado de todas as taças da vida, só nestas se encontra sabor.
Isto permitia entender também que ser bom “é o único modo de ser feliz”, como ser culto “é o único modo de ser livre”, atendendo ao próprio tempo a que “no comum da natureza humana, se necessita ser próspero para ser bom.” Nas sociedades de nossa América naquele – neste – tempo, acrescentava, o único caminho aberto à prosperidade constante e fácil é o de conhecer, cultivar e aproveitar os elementos inesgotáveis e infatigáveis da natureza.
A natureza não tem ciúmes, como os homens. Não tem ódios, nem medo como os homens. Não fecha o caminho de ninguém, porque não teme ninguém. Os homens sempre necessitarão dos produtos da natureza. E como em cada região só dão determinados produtos, sempre se manterá sua troca ativa, que assegura a todos os povos a comodidade e a riqueza.
Adormecidos sobre a terra
Atendendo a isto, para Martí não havia que empreender uma nova cruzada para reconquistar o Santo Sepulcro, pois Jesus não morreu na Palestina “mas está vivo em cada homem.” E acrescentava que a maior parte dos homens passou adormecido sobre a terra. Comeram e beberam; mas não souberam de si. A cruzada deve ser empreendida agora para revelar aos homens sua própria natureza, e para dar-lhes, com o conhecimento da ciência pura e simples, a independência pessoal que fortalece a bondade e fomenta o decoro e o orgulho de ser criatura amável e coisa vivente no magno universo.
Eis aí, agregava, “o que os mestres pelos campos. Não só explicações agrícolas e instrumentos mecânicos; e sim a ternura, que faz tanta falta e tanto bem aos homens.”
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Em sociedades assim, como em boa medida nas nossas, o camponês – que vê na educação o melhor meio para alcançar a prosperidade em liberdade a que aspira para si e para os seus – não pode deixar seu trabalho para ir longe ver figuras geométricas incompreensíveis, e aprender os cabos e os rios das penínsulas da África, e prover-se de vazios termos didáticos.
Os filhos dos camponeses não podem afastar-se léguas inteiras dia após dia da fazenda paterna para ir aprender declinações latinas e divisões abreviadas. E os camponeses, no entanto, são a melhor massa nacional, a mais sadia e sumarenta, porque recebe de perto e em cheio os eflúvios e a amável correspondência da terra, em cujo trato vivem.
As cidades como mentes da Nação
“As cidades”, dizia ainda, são a mente das nações; mas seu coração, onde se acumula, e de onde se distribui o sangue, está nos campos. Os homens são ainda máquinas de comer, e relicários de preocupações. É necessário fazer de cada homem uma tocha.
Entender isto, e atender a isto, era – é – fazer da educação “uma invasão doce, feita de acordo com o que tem de baixo e interesseiro a alma humana”, porque o mestre ensinaria aos trabalhadores do campo – e hoje, também da cidade – com modo suave coisas práticas e proveitosas, se lhes iria por gosto próprio e sem esforço infiltrando uma ciência que começa por louvar e servir a seu interesse; -que quem tente melhorar o homem não há de prescindir de suas más paixões, e sim contá-las como fator importantíssimo, e cuidar de não trabalhar contra elas, e sim com elas.
Como José Martí aliava "natureza" à construção de um mundo possível ao ser humano
Os educadores ideais para uma tarefa assim entendida, antes que pedagogos, deveriam ser “conversadores”. “Dómines”, dizia Martí, “não enviaríamos”, e sim gente instruída que fosse respondendo às dúvidas que os ignorantes lhes apresentassem ou as perguntas que tivessem preparado para quando viessem, e observando onde se cometiam erros de cultivo ou se desconheciam riquezas exploráveis, para que revelassem estas e demonstrassem aqueles, com o remédio ao pé da demonstração.
Para Martí, em breve, já será necessário abrir “uma campanha de ternura e de ciência, e criar para ela um corpo, que não existe, de mestres missionários”, porque “em campos como em cidades, urge substituir o conhecimento indireto e estéril dos livros, pelo conhecimento direto e fecundo da natureza.” Com tal educação, fica mais fácil não ver na transição uma ameaça, e sim um desafio a enfrentar. E isso é ainda mais importante naqueles que, como esses, novamente, andamos sobre as ondas, e viramos e reviramos com elas; razão pela qual não vemos, nem aturdidos pelo golpe, nos detemos a examinar as forças que as movem. Mas quando se aquiete este mar, pode assegurar-se de que as estrelas ficarão mais próximas da terra. O homem embainhará enfim no solo sua espada de batalha!
Alto Boquete, Panamá, 24 de novembro de 2024
[1] “A Fernando Figueredo”. 18 de agosto de 1892. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1974. II, 123.
[2] La América. Nova York, maio de 1884. Ibid., VIII, 288 – 292.
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