No primeiro concurso estadual do processo eleitoral presidencial, na segunda-feira (15), em Iowa, não houve nada surpreendente nem inovador, além do possível fim da democracia estadunidense. Mas isso também já se sabia. O que o processo de assembleias (caucus) ofereceu foi a confirmação local do que já se havia anunciado em múltiplas pesquisas nacionais: um amplo segmento dos eleitores republicanos opina que o sistema político estadunidense já não funciona, que o presidente Joe Biden ganhou por fraude e que o único que pode salvar o país das garras de uma “esquerda radical” é Donald Trump.
Também confirmou que o tema da migração está no centro desta contenda eleitoral ao longo do ano; em Iowa, esse foi o tema prioritário dos participantes no exercício eleitoral segundo enquete de AP, o que beneficia Trump, mas nada surpreendente. O que continua surpreendendo é que o primeiro ex-presidente que foi acusado de crimes graves – 91 acusações penais em 4 julgamentos separados e que foi também declarado culpado de violação sexual, de fraude empresarial e que terá que dividir seu tempo este ano entre fazer campanha e comparecer a múltiplos tribunais para defender-se em julgamentos e outros processos judiciais contra ele (como foi o caso nesta terça-feira quando compareceu a julgamento civil em Nova York), o qual está formalmente acusado de instigar o que em qualquer outro país seria qualificado como um golpe de Estado, é o favorito, e por muito, para ganhar a nomeação presidencial do Partido Republicano e que está empatado ou até ganhando frente ao seu adversário, o presidente Joe Biden.
Assista na TV Diálogos do Sul
Em Iowa, 71% dos republicanos expressaram que votarão a favor de Trump mesmo se for condenado por um delito maior, e só 9% dos republicanos que participaram no caucus de Iowa creem que Joe Biden ganhou a presidência em 2020. Votaram a favor de Trump porque acreditam que tanto o sistema eleitoral como o judicial já não funcionam, e seu candidato diz que só ele pode reparar isso.
Daqui até março haverá múltiplas eleições primárias – o que segue na próxima semana é a de New Hampshire – e se espera que para meados desse mês, muito antes da conclusão do ciclo de primárias estaduais, Trump consolidará o apoio necessário para obter a coroa republicana na convenção nacional no verão, e no caso democrata, por ora a coroa pertence a Joe Biden e isso só mudará se ele decidir abdicar.
Nem Biden, nem Trump: oligarquia é quem controla a democracia dos EUA
Por isso, a intenção dos meios, dos comentaristas e da classe política de prestar uma tintura dramática endereçada a este processo “democrático” com infinitos adjetivos (“histórico”, “crucial”, “sem precedente” foram alguns dos empregados nas reportagens de segunda-feira). Fingem que há um concurso, ou como dizem os que cobrem esses assuntos, “uma corrida de cavalos” real, e acabam distorcendo uma realidade onde – se tudo seguir igual com os mesmos candidatos e não houver algum desastre natural ou humano – já se sabe o final desta primeira parte do processo eleitoral. Mas ambos os lados insistem que nesta contenda se definirá o destino dos Estados Unidos. Bem, os políticos sempre dizem isso mesmo, mas desta vez, há algo diferente: o sistema político e legal do país agora está em julgamento.
“Seria o fim da democracia, da democracia funcional” se Trump for eleito presidente, afirma o senador Bernie Sanders em uma entrevista recente ao The Guardian. Instou que a Casa Branca adote posições mais progressistas sobre a desigualdade econômica, saúde, moradia e outras preocupações das famílias trabalhadoras.
“O povo estadunidense está profundamente descontente com o status quo econômico e político. Querem mudança, mudança real”, adverte em suas mensagens a seus seguidores. Afirma que se faz um compromisso de uma mudança real para as maiorias, e mostrar que uma sociedade democrática pode abordar as necessidades dessas maiorias, se poderá derrotar Trump. “Se não fizermos isso, então estaremos na república Weimar dos princípios dos anos trinta”, afirma.
Biden e a cúpula democrata ainda não estão se comprometendo com uma grande mudança econômica e política, mas decidiram centrar sua mensagem eleitoral sobre como Trump representa um perigo existencial à democracia. Em anúncios publicitários da campanha, o ex-presidente Barack Obama se apresenta junto a Biden dizendo que nesta eleição “a democracia está em jogo”, com Biden agregando, “isso não é brincadeira”.
Esta fase de coroar aos candidatos de ambos os partidos nacionais, por ora, não tem grande suspense, apesar do grande esforço dos meios, comentaristas e outros profissionais do jogo político de tentar injetar adjetivos como “histórico”, “sem precedente”, “crucial” a este exercício democrático, ou apresentá-lo como um evento esportivo. Mas quem ganharia os prêmios Emmy de televisão teve mais drama e suspense, e seguramente mais público, que o concurso no estado de Iowa com o qual começou o processo eleitoral formal de 2024. Aí também havia algumas preocupações pelo futuro do país.
A série Succession ganhou o prêmio principal da noite como melhor drama, e seu criador Jessy Armstrong, ao aceitar o prêmio, declarou, com umas notas sarcásticas, que “este é um show sobre família, mas também se trata de quando a política partidária e a cobertura noticiosa se entrelaçam com políticas divisórias direitistas. Depois de quatro temporadas de sátira, esse é um problema que, segundo entendo, já solucionamos”. Todos sabem a que se referia.
David Brooks e Jim Cason | La Jornada, especial para Diálogos do Sul – Direitos reservados.
Tradução: Beatriz Cannabrava
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
Assista na TV Diálogos do Sul
Foto: Adam Schultz/Casa Branca
“Isso não é brincadeira”, diz Biden sobre ameaça à democracia durante discurso de Barack Obama