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Stella Calloni: Eleições sob governo de fato e ameaças imperiais

As eleições no Brasil não são eleições comuns, pois se realizam sob um governo surgido de um golpe de Estado judicial-midiático-parlamentar
Stella Calloni

Tradução:

As eleições celebrados no Brasil não são eleições comuns, pois se realizam sob um governo de fato, surgido de um golpe de Estado judicial-midiático e parlamentar contra a presidenta Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT), destituída em agosto de 2016, julgada sem causa e sem provas, em uma armação ilegal, perversa e criminosa, com a mão dos Estados Unidos por trás.

Entre maio e agosto de 2016 se debateu o processo de destituição de Rousseff, em uma verdadeira operação de guerra suja que ultrapassou todos os limites da ilegalidade, e nesse período, a substituiu seu vice-presidente Michel Temer, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), que governou interinamente e de forma ilegal trocou o gabinete e dispôs medidas que afetaram profundamente os trabalhadores, a sociedade e a soberania do Brasil.

As eleições no Brasil não são eleições comuns, pois se realizam sob um governo surgido de um golpe de Estado judicial-midiático-parlamentar

Foto: Wikipédia

Quando o Congresso, integrado majoritariamente por parlamentares denunciados por corrupção, destituiu a presidenta, o senado decidiu a continuidade de Temer até completar o período presidencial, apesar de ele ter sido acusado, com provas concretas, de gravíssimos atos de corrupção.

Em pouco mais de dois anos o governo de fato deixou o país em uma severa crise econômica, política e social, submetido e envolvido em ações conjuntas com os Estados Unidos em todas as áreas, inclusive a militar.  

Marco Antonio Teixeira, cientista político da Fundação Getúlio Vargas, explicou à BBC Mundo que a relação de Temer com o Congresso estava baseada na “oferta de bens em troca de apoio”, o que sempre foi muito comum na política brasileira.

Dirigentes sindicais do Brasil denunciaram que o presidente de fato favoreceu os setores poderosos em todas as suas medidas e afetou os trabalhadores e milhões de brasileiros que haviam saído da pobreza nos tempos em que governou Lula, quando mais de 35 milhões de pobres eternos excluídos do sistema foram favorecidos pela política do líder do PT, que recuperou direitos perdidos em um país com dramáticas desigualdades, onde ainda vigora a escravidão.

Da mesma forma, Temer priorizou projetos de parlamentares golpistas que os favoreciam politicamente e sem dúvida destinados a incrementar os lucros dos grandes grupos econômicos,  empresários e proprietários de terras, e aos meios de comunicação cúmplices na guerra midiática destinada a afetar a consciência da população, não apenas com a desinformação, mas com as inescrupulosas mentiras e os entretenimentos desenhados para submeter grande setores da população, em favor dos interesses do poder hegemônico, que decidiu se apropriar colonialmente da América Latina e seus grandes recursos naturais e reservas.

A submissão de Temer aos Estados Unidos no nível militar afeta seriamente a soberania do Brasil, a grande potência latino-americana, até o ponto de negociar a entrega da Base Espacial de Alcântara, única na região e nestes momentos assumiu compromissos com Washington que levaram à colaboração do Exército do Brasil nos planos de uma invasão estadunidense contra Venezuela, como evidencia a presença do exército no Estado de Roraima, fronteiriço com esse país, entre outros preparativos.


Nesta situação, o povo brasileiro, vítima das medidas impostas totalitariamente por Temer que o submeteu a um retrocesso brutal do ponto de vista econômico-social, despojando-o de todos seus direitos, expressou sua vontade de votar no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que sempre esteve em primeiro lugar em todas as pesquisas, e por isso se decidiu tirá-lo do meio.

Utilizando a justiça convertida em um organismo de perseguição política, mediante outro julgamento totalmente armado no esquema judicial da guerra contra insurgente – que se aplicam em nossos países – condenando-o sem provas, e ilegalmente, impedindo a participação de Lula no processo eleitoral, o que provocou um severo rechaço no nível mundial.  

Lula é mantido como refém, em uma ação de extrema violência, sob as decisões ilegais do juiz Sergio Moro, o mesmo que perseguiu a Rousseff, ligado estreitamente a Washington, ao Departamento de Estado e aos organismos de segurança e inteligência desse país.

De fato, estas eleições estão cheias de irregularidades e se dão no marco de uma Guerra de Baixa Intensidade e Quarta Geração encabeçada no aspecto midiático pelo monopólio do grupo Globo, partícipe e beneficiário direto da ditadura militar instalada no Brasil em 1964, que perdurou até 1985, convertendo esse país em um enclave de irradiação para instalar as ditaduras da Segurança Nacional semeadas no Cone Sul nos anos 70. Apesar disso, a figura de Haddad, o candidato do Partido dos Trabalhadores, impôs-se com força nesse país.

Diante desta situação resultam banais algumas análises sobre as eleições, já que se violentou antecipadamente a vontade popular, que se inclinava, sem dúvida alguma por Lula, que, além do mais havia ganho respeito e prestígio no exterior e havia sido um dos presidentes mais importantes na conformação dos novos modelos de integração, imprescindíveis para alcançar a unidade de toda a América Latina e o Caribe.

O trio de mandatários conformados por Hugo Chávez Frías na Venezuela, Lula da Silva no Brasil, Néstor Kirchner na Argentina, foi a chave do resgate do Mercado Comum do Sul (Mercosul) para transformá-lo em um verdadeiro modelo político-social-cultural de integração junto a Uruguai e Paraguai. Depois ingressaria a Venezuela, e a Bolívia era um associado que postulava seu ingresso.

Dali se avançaria para a União de Nações Sul-americanas (UNASUL), até chegar à Comunidade de Nações Latino-americanas e Caribenhas (CELAC) em 2011, conformada por 33 países, constituindo-se em um importante bloco na diversidade, marcando etapas históricas.

Sem dúvida alguma isto desafiava o projeto geoestratégico de recolonização da América Latina, como pré-anunciam os próprios documentos estadunidenses elaborados para sua relação com nossa região no século 21.

É impossível não recordar a invasão de dezenas de Fundações e milhares de Organizações Não Governamentais (ONG), dependentes das Fundações mães dos Estados Unidos que começou em meados dos anos 80, e os milionários envios de dólares com a finalidade de quebrar toda possibilidade de resistência em nossos países, enquanto iam infiltrando as estruturas judiciais no nível continental, cooptando juízes, advogados, o empresariado jovem, produtores e membros de partidos políticos para criar coalizões sob seu controle, tentando ganhar sindicalistas, profissionais,  organizações juvenis e de todo tipo, com falsas promessas democráticas e libertárias e também mediante a corrupção.

Estas Fundações cumpriram suas tarefas de inteligência e manipulação para abrir o caminho aos novos golpes do século XXI. Os governos neoliberais dos anos 90 cumpriram, por sua vez, também os planos de enganar grandes setores sociais e populares na região para confundir e desaculturar.  
Mas, no entanto, o neoliberalismo exagerado foi derrotado no continente, com o surgimento de novos movimentos sociais e políticos em toda a região. Foram fatos históricos de resistências do quais surgiram, via eleitoral, os governos progressistas, uns mais avançados que outros, que proporcionaram os melhores anos para os povos da região, depois de um século XX onde se sofreu um verdadeiro genocídio, produto da feroz dependência de nossos países, salvo Cuba, liberada em 1959.

Por outra parte a dispersão do Comando Sul desde fins dos anos 90, transferido de sua sede na ocupada Zona do Canal do Panamá a Florida, Estados Unidos,  significou um novo projeto de militarização de toda América Latina, como foi e é a dispersão de bases militares e estabelecimentos estadunidenses em nossos países, o que é parte do seu plano geoestratégico de recolonização, agora em  pleno apogeu.

Por trás de cada uma das eleições regionais está a sombra brutal do poder imperial, e é evidente no Brasil onde além de haver dirigido operações contra- insurgentes de Baixa intensidade para desestabilizar os governos de Lula e Dilma até chegar ao golpe de agosto de 2016, colocaram seus assessores em todos e cada um dos ministérios que manejam os fios da justiça, os meios de comunicação, forças de segurança, incluindo os parlamentos, entre outros, durante o governo de fato.

Dificilmente iam querer perder o que ganharam com estes golpes de Estado “brandos” ou golpes pós-eleitorais, como pode ser considerado o governo de Mauricio Macri na Argentina ao trair todos os programas prometidos e submeter-se aos planos de Washington para controlar a região, destruindo o Estado nacional, levando o país a uma crise sem saída. Também arrasando com a soberania nacional ao subordinar a nação, entregando o controle da Economia ao FMI e convalidando a política intervencionista dos Estados Unidos em toda a região, além de conceder-lhes a instalação de bases militares em lugares estratégicos. Muito semelhante ao que fez Temer no Brasil.

Este é o marco geral das eleições presidenciais ocorridas em 7 de outubro, convocadas pelo governo golpista de Temer. O povo deverá, em um segundo turno, eleger sob diversas ameaças o ultradireitista Jair Bolsonaro, do Partido Social Liberal (PSL), cujo discurso é o mais próximo ao de um fascista ultra primitivo e  Fernando Haddad, eleito como candidato do PT, ante a impossibilidade de Lula, detido para impedir sua candidatura.

Atrás do programa de Haddad, ex-prefeito de São Paulo e ex-ministro da Educação durante os governos de Lula e Dilma do PT entre os anos 2003-2015 e que realizou uma extraordinária campanha em apenas alguns dias, estão as grandes conquistas alcançadas por ambos os ex-presidentes, reconhecidas no nível mundial, por haver tirado da pobreza uns 35 ou 40 milhões de habitantes, conseguindo mediante cancelamento da dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI) estabilizar a grande potência da região.

São inquestionáveis as conquistas dos governos do PT, mas também o programa de recuperação e ampliação de tudo o que foi perdido nestes dois últimos anos apresentado no projeto de Haddad que contrasta radicalmente com a oferta ditatorial de Jair Bolsonaro.

As declarações de Bolsonaro impactaram pela extrema violência que expressa seu discurso racista, homofóbico, machista, especialmente brutal com relação à população afro-brasileira. Sua exaltação da tortura seria castigada legalmente em qualquer país do mundo, já que viola os direitos humanos e são comparáveis aos discursos dos mais perversos ditadores, como o general Augusto Pinochet no Chile.

O teólogo Leonardo Boff adverte sobre o desprezo de Bolsonaro pela democracia, e menciona “sua saudade da ditadura militar instaurada no país em 1964” ao elogiar publicamente “o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (já falecido) responsável por torturar Dilma Rousseff durante a ditadura.”

Tão grave é isso como sua advertência de que não vai reconhecer uma derrota, mencionando os militares, deixando entrever que poderiam agir se ganhar Haddad, o que é uma grave ameaça e uma forma de aterrorizar uma população submetida a um verdadeiro bombardeio midiático.

Sobre todo este relato, está a realidade que é impossível desconhecer e ignorar: Os Estados Unidos são o verdadeiro e poderoso convidado de pedra nesta eleição que transcorre nada menos que no maior país da América Latina, na sexta ou sétima potência mundial, onde sua posição avançou como nunca antes, mediante um presidente como Temer, antigo confidente do Comando Sul, como foi demostrado por documentos e telegramas do WikiLeaks. É impossível desconhecer o perigo da ingerência dos Estados Unidos em um país como o Brasil, chave para seus novos planos de recolonizar e controlar o continente.  
*Colaboradora de Diálogos do Sul, de Buenos Aires, Argentina


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Stella Calloni Atuou como correspondente de guerra em países da América Central e África do Norte. Já entrevistou diferentes chefes de Estado, como Fidel Castro, Hugo Chávez, Evo Morales, Luiz Inácio Lula da Silva, Rafael Correa, Daniel Ortega, Salvador Allende, etc.

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