Recebi esses dias um texto, sobre Marighella, que anda circulando no WhatsApp assinado pelo comissário de política Aurílio Nascimento (verifiquei que o texto foi publicado no dia 17/02/2019 no jornal Extra, com o título “Lembrando Estela”. Trata-se de uma tentativa de destruir a memória de Carlos Marighella em função da proximidade do lançamento do filme de Wagner Moura sobre o guerrilheiro baiano.
Sou estudioso do Partido Comunista, já orientei uma dissertação de mestrado sobre Marighella, de excelente qualidade, e já fiz parte de diversas bancas sobre o assunto. Já tive encomenda para escrever artigos sobre o comunista e guerrilheiro baiano morto em 4 de novembro de 1969 pelas forças da ditadura, mas nunca tinha sabido que Marighella havia sido um assassino como foi pintado no texto.
Como parece óbvio, o artigo em questão é mais uma dessas mentiradas típicas da fábrica de fake news da extrema-direita brasileira. Dessa vez, fala-se de Estela Borges Morato, uma investigadora que teria sido “vítima do terrorista”. Em aberto apelo sentimental, o artigo trata da investigadora “jovem e bonita” que ao resolver mudar de emprego largou o banco onde trabalhava para seguir carreira na polícia. “Estela foi designada para uma operação de captura de um criminoso, assaltante de bancos. O perigoso marginal, juntamente com seus comparsas, resistiu à prisão. Estela foi atingida na cabeça e morreu dias depois.”
O texto, habilmente, não diz de onde partiu o tiro, mas pelo que vem em seguida, o leitor conclui que foi da arma do “perigoso marginal”, “criminoso” e “assaltante de bancos” Carlos Marighella. Em seguida o texto prossegue: “Estela Borges Morato, a heroína, é quase que totalmente desconhecida dos brasileiros. O marginal, ao contrário, não só é amplamente conhecido como mais um filme foi feito em sua homenagem”. Concluindo pelo absurdo das tentativas de transformar em mártir o “terrorista que lutava para implantar uma ditadura no nosso país”, o texto assegura que o comunista baiano “não queria o bem de ninguém e muito menos mudar o mundo. Queria o poder, o poder exercido a ferro e fogo pelos ditadores”. Acrescentando que Marighella não era um pobre coitado, mas alguém que tinha cursado Engenharia e foi deputado, alguém que, pelas homenagens e a distorção da história, foi transformado em herói, o texto joga peso para desconstruir a memória recuperada depois da redemocratização e das políticas estabelecidas a partir de 2011, com a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
Obviamente que o artigo de Aurílio Nascimento não diz nada sobre quem foi Marighella. Não diz que era filho de uma mulher negra descendente de escravos e de operário um italiano radicado na Bahia; não diz sobre suas prisões nos anos 1930 (1932, 1935 e 1939, esta última que lhe levaria a passar quase seis anos na cadeia, inclusive na Ilha Grande) e das torturas que sofreu no período; não aborda sua eleição como deputado Constituinte em 1945, pelo PCB baiano, nem dos seus discursos e atuação em defesa do povo brasileiro; também não há nenhuma menção à absurda cassação do seu mandato junto com os outros 14 deputados eleitos pelo PCB, além do senador Luiz Carlos Prestes, em 1948, e não há palavra sobre o fato de que precisou viver na clandestinidade quase por toda a sua vida, fugindo dos ditadores, mas também dos democratas de fachada, apenas por ter cometido o crime de professar uma ideologia estranha ao establishmen
Esquerda Online
Carlos Marighella foi assassinado pelas forças da Ditadura Militar. Um guerreiro contra um regime tirano
Mas isso não é o que interessa no texto que circula pelo WhatsApp. De fato, Marighella era um stalinista, e mesmo com todas as diferenças que se tenha, seja com o stalinismo ou com a estratégia guerrilheirista adotada nos anos 1960 pelo comunista baiano, não há como negar que Marighella, como membro do PCB durante mais de 30 anos, lutou por quase toda a sua vida por democracia em seu sentido pleno: com direitos políticos assegurados, mas como extensão de direitos ao campo econômico, portanto por democracia material, com redução das desigualdades e inclusão social dos setores secularmente excluídos. Como dirigente do PCB, Marighella, que era um homem negro, acreditava que o Brasil precisava extirpar os resquícios do feudalismo e desenvolver o capitalismo. Tanto acreditava nisso que foi signatário de vários documentos importantes do PCB, inclusive a famosa Declaração de Março de 1958, cuja redação foi atribuída ao chamado “grupo baiano” (Marighella, Arménio Guedes, Giocondo Dias, Alberto Passos Guimarães – o único que não era baiano, mas havia morado na Bahia – Jacob Gorender e Mário Alves).
Mas então veio o golpe de 31 de março de 1964 e os sonhos de Marighella começaram a se desfazer junto com a expectativa de transformar o Brasil por vias pacíficas. No próprio dia do golpe, Marighella foi caçado pela polícia. Em fuga, mesmo baleado, entrou num cinema e resistiu com bravura à prisão, pois já conhecia os métodos da tortura. Sobre o episódio, e iniciando seu balanço que o levaria à ruptura com o PCB, Marighella escreveu Por que resisti à prisão, um livro de 1965 que constitui uma importante reflexão sobre o país e as limitações das lutas empreendidas pelo seu partido: “Por uma ironia da história, os comunistas, agora acusados de subversão, defendiam a democracia burguesa, interessados que são na permanência de um clima de liberdade e na conquista da legalidade para o Partido Comunista”, anotou. (Por que resisti à prisão, São Paulo: Brasiliense, Salvador, EDUFBA, 1995, p. 105)
Após o golpe, o PCB seguia defendendo na luta de massas, a democracia burguesa e a via pacífica ao socialismo, mas Marighella não tinha mais ilusões. Em 1967, depois de participar na Conferência da OLAS (Organização Latino-Americana de Solidariedade), em Havana, Cuba, o dirigente comunista, que já vinha desenvolvendo estudos e uma aproximação com os métodos da guerrilha, entrou em rota de colisão com o seu partido, vindo a ser expulso poucas semanas depois do evento. Em setembro de 1968, com outros companheiros, Marighella fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN), a organização guerrilheira mais importante no período da ditadura, e pouco mais de um ano depois Marighella já estava morto, executado numa emboscada preparada pelo temível delegado e torturador Sérgio Paranhos Fleury, chefe do Dops de São Paulo.
A ALN organizou muitas ações no contexto da ditadura. A mais importante dessas ações foi o sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke-Elbrick, junto com um grupo de estudantes da Dissidência Comunista da Guanabara que, no curso da ação, assumiu o nome de uma organização que tinha sido desbaratada pouco antes, o MR-8. Apesar da participação da ALN no sequestro, Marighella não teve envolvimento direto na ação, visto que o grupo atuava através de células que quase não tinham contato uma com as outras.
No dia 04 de novembro de 1969 foi preparada a emboscada para Marighella. Nela estavam presentes, além de Fleury, muitos outros agentes do DOPS, incluindo Estela Morato. Há alguns livros e muitos artigos que descrevem com precisão o que ocorreu naquele dia na alameda Casa Branca, em São Paulo. Uso aqui a descrição feita pelo jornalista Mário Magalhães, no excelente livro Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo (Companhia das Letras, 2012, p. 552-553). Apesar de escrito de maneira romanceada, a obra de Magalhães é fruto de vários anos de pesquisa e narra cuidadosamente a cena da tocaia que vitimou Marighella e o fato de que o dirigente da ALN não teve tempo de reagir. Sua única iniciativa, após a abordagem dos policiais, foi a tentativa de pegar a cápsula de cianureto que carregava para o caso de ser capturado vivo. Segundo Magalhães, após ser abordado quando chegava num Fusca com os freis dominicanos Ivo e Fernando, dois de seus companheiros (que foram arrancados para fora do automóvel), Marighella se abaixou para tentar abrir uma pasta que se encontrava próximo do seu banco: “Tarde demais: atiram à queima roupa, e a fuzilaria sacode a alameda Casa Branca. Uma bala perfura as nádegas e provoca quatro ferimentos. Outra, calibre 45, aloja-se no púbis. A terceira penetra e sai pelo queixo (…) Até que, de uma janela do Fusca, acertam-no no tórax, lesionam a aorta e ele não se mexe mais”.
Marighella morreu sem disparar um único tiro, mas a versão montada por Fleury foi a de que ele havia resistido à prisão disparando contra os policiais e atingindo Estela Borges Morato, a investigadora “esquecida da história” motivo do artigo de Aurílio Nascimento, que teria sido morta pelo “terrorista”. Mas de onde partiram os tiros que mataram Estela?
Em seu livro, Mário Magalhães afirma que os policiais viram o último suspiro de Marighella depois de o arrastarem para a calçada, com hemorragia interna. Também apreendem o frasco de cianureto que estava na pasta que o guerrilheiro tentou abrir. Todavia, um fato inusitado ocorre: o protético alemão Friedrich Adolf Rohmann, desafia a barreira policial e cruza a alameda Lorena com seu Buick preto, avançando pela Casa Branca interditada. “Tomam-no como membro retardatário de um fantasioso aparato de segurança de Marighella. (…) Dessa vez disparam também com metralhadoras. Matam Rohmann e seu carro para. Essa segunda fuzilaria deixa outros feridos, alvejados pelos próprios parceiros. Tucunduva, baleado na perna esquerda no meio da rua; e Estela Morato, na cabeça dentro do Chevrolet. O sangue jorra do delegado, mas ele se safará. A investigadora falecerá em três dias” (p. 553)
Ou seja, quem matou Estela Morato foi o fogo amigo das forças da repressão comandadas por Fleury, fato este atestado pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade: “Também, constatou-se não ter havido troca de tiros, pois todos os disparos observados partiram de fora para dentro do veículo e a arma encontrada com Marighella estava no interior de uma pasta, sem ter expelido nenhum tiro” (p. 448).
De acordo com Mário Magalhães, o Dops “costurou sua ficção histórica” em torno dos acontecimentos na alameda Casa Branca, mas alguns jornais, como o Diário de Notícias, do Rio, nem mesmo esperaram a versão oficial para estampar em sua capa: “Marighella matou Estela”, uma versão que foi depois endossada pelo torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, que preparou uma lista das “vítimas do terror” na qual incluiu Rohmann e Estela Morato, “eternizando o embuste”, escreveu Magalhães (p 558).
A história não é uma ciência exata, há inúmeras controvérsias sobre muitas coisas, mas a história que se presta à falsificação não é história, mas ficção no interesse dos poderosos. Há historiadores sérios que trabalham debruçados sobre documentos e estribados em hipóteses consistentes que vão sendo testadas diante das evidências que surgem. Para a maioria esmagadora desses historiadores, o Brasil viveu um golpe civil-militar em 1964 e uma ditadura entre 1964 e 1985. Os historiadores não procuram heróis ao contar suas histórias, mas invariavelmente se deparam com vítimas e com algozes sobre os quais tendem a tomar partido. Tomar partido, contudo, não é escrever contra as evidências que foram descobertas, que constituem provas daquilo que aconteceu. Quem escreve contra as evidências, falsifica a história, tornando-se um revisionista ou negacionista, que por motivações políticas distorce ou falsifica as evidências. Há no Brasil de hoje um forte movimento revisionista que não parte de historiadores, mas daqueles que estão interessados em modificar a versão dos fatos, simplesmente porque ocupam o poder. Se esse movimento lograr êxito, corremos o risco de perder uma parte da frágil memória histórica que a duras penas se construiu sobre o passado recente do país. Parafraseando Walter Benjamin, se o inimigo vencer, nem mesmo os nossos mortos estarão em segurança. Por isso, precisamos lutar pelo estabelecimento da verdade e lutar pela verdade é salvaguardar a memória de Marighella, de Marielle Franco e de todos aqueles que tombaram lutando por um país melhor, o que significa, também, um país capaz de se apropriar do passado em sua plenitude.