UOL - O melhor conteúdo
Pesquisar
Pesquisar

Entenda como Uruguai falhou na tentativa de regulamentar e democratizar sua mídia

Em entrevista, Gustavo Gomez lamenta que a Lei de Meios não tenha alcançado os grandes conglomerados de comunicação do país
Igor Carvalho
Brasil de Fato
São Paulo (SP)

Tradução:

Aprovada em 2014, mas aplicada a partir de 2015, a Lei de Meios uruguaia foi pensada após episódios seguidos de cenas de violência na TV do país em nome da audiência. O que começou como uma forma de poupar a infância de imagens grotescas evoluiu para uma tentativa do governo do presidente José “Pepe” Mujica (2010-15) de melhorar as telecomunicações uruguaias como um todo, tornado-as mais democráticas.

A Lei de 200 artigos previa, por exemplo, uma descentralização dos meios, evitando monopólios – como os que existem no Brasil onde poucas famílias controlam a imensa maioria da nossa mídia.

Continua após o anúncio

Em entrevista ao Brasil de Fato, um dos responsáveis pela redação da lei uruguaia, Gustavo Gomez, chefe da Diretoria Nacional de Telecomunicações (Dinatel) no governo de Mujica, explica porque o projeto não foi em frente e que a situação pode piorar ainda mais. 

É que o governo federal, agora comandado pelo presidente Luis Alberto Lacalle Pou, enviou ao parlamento um projeto para substituir a lei atual, um texto que agrada os empresários do setor. Estes, há anos, reclamam das limitações impostas pela legislação de Gomez e Mujica. 

Continua após o anúncio

“Essa nova lei recupera o privilégio que tinham os grandes meios como não pagar pelo sinal que recebem. Segundo, permite que concentrem mais empresas. Atualmente eles podem ter três licenças de televisão e a nova lei prevê até oito”, explica Gomez.

Em entrevista, Gustavo Gomez lamenta que a Lei de Meios não tenha alcançado os grandes conglomerados de comunicação do país

Foto: Arquivo Pessoal
Gustavo Gomez, autor da Lei de Meios, explica o que deu errado após 5 anos de sua entrada em vigor

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: É verdade que os programas policiais influenciaram o governo de Mujica a preparar a Lei de Meios uruguaia?

Gustavo Gomez: Os jornais televisivos cobriam, também, temas policiais. O problema surgiu exatamente dessa cobertura, imagens de roubos com armas, de violência, morte, tudo isso filmado com câmeras internas de lojas. Ocorreu o caso de um trabalhador de uma pizzaria que estava trabalhando e foi assassinado por jovens.

Continua após o anúncio

Os jornais televisivos passaram as imagens durante o dia e de maneira excessiva. Isso gerou uma reação do governo, precisávamos tomar alguma medida para proteger a infância da exposição dessas imagens. Porém, essa discussão se prolongou e ganhou mais profundidade, ficou mais ampla e se tornou a Lei de Meios.

Essa foi a origem da discussão, significou que o governo convocou o Comitê Técnico Construtivo (CTC) com ampla participação de organizações estatais, sociais e empresários da televisão para discutir uma regulação democrática.

Houve um impacto na criminalidade?

A lei nunca teve como objetivo reduzir a criminalidade, mas proteger crianças e adolescente de certas imagens. Como a quantidade de informações policiais impacta a percepção da população sobre a segurança.

Continua após o anúncio

A criminalidade aumentou e os programas seguiram noticiando temas policiais, dando espaço para essas notícias, mas sem as imagens. Em todo esse tempo, não vimos mais um braço cortado, assassinatos. O que limitamos foram as imagens, das 6h até 22h.

A Lei de Meios uruguaia fez cinco anos agora. Acredita que ela cumpriu o que o senhor desejava quando a implementou?

Não. O último governo da Frente Ampla quase não aplicou a lei. Houve um trabalho de educação, que não puniu, mas advertiu as televisões. Já os outros aspectos da lei não foram aplicados.

A lei buscava reduzir a concentração, isso não ocorreu, temos a mesma concentração que antes, porque o governo não obrigou esses grupos a devolver um só dos meios que concentram.

A lei também obrigava esses meios a pagarem um imposto para financiar um fundo de promoção do audiovisual, para garantir uma maior diversidade de conteúdo, mas o governo do Tabaré Vázquez (sucessor de Mujica, que governou entre 2015 e 20) não cobrou um só peso de canais de televisão ou rádios em cinco anos.

Já um aspecto que foi aplicado e teve importância foi a determinação de que 30% das músicas tocadas nas rádios sejam de produção nacional, isso significou mais produção de música e mais empregos nas produtoras.

No Brasil, é comum que se confunda regulação dos meios de comunicação com censura. É possível regular os meios de comunicação sem censurá-los? Como se deu esse debate no Uruguai?

É possível, mas há que discutir qual regulação, esse foi o debate que se formou no Uruguai. Desde o começo se plantou a dúvida e a crítica em relação a nossa iniciativa, pois poderia ser uma censura. De fato, muitas vezes a regulação termina em censura.

Para impedir que isso acontecesse, quando apresentamos a lei consultamos os organismos internacionais para assegurar que esse projeto cumprisse as determinações internacionais de Direitos Humanos.

Foi uma regulação e não uma censura. Quando aprovamos, todos os organismos independentes, como Humans Rights Watch ou Jornalistas Sem Fronteira, opinaram que a lei uruguaia era um modelo a ser copiada.

Agora, o governo de Lacalle Pou enviou um projeto ao Parlamento, com uma nova proposta para a regular o mercado de comunicações, que surge após anos de reclamação dos setores privados. Como o senhor vê essa proposta?

O setor privado nunca esteve de acordo com a lei e apresentou 30 recursos de constitucionalidade com a lei. Veja, é uma lei de quase 200 artigos e eles reclamaram contra quase todos. Repare que a Suprema Corte declarou inconstitucional apenas 8 artigos dos 200. Porém, claro, ganha a direita, com quem os meios tem uma proximidade e defendem sua agenda. Apresentaram então um projeto para substituir a lei atual.

É uma proposta que está de acordo com os interesses das grandes empresas de comunicação. Ela recupera o privilégio que tinham os grandes meios e que a lei atual retirou, como pagar algo pelo uso do sinal que recebem. Segundo, permite que concentrem mais empresas, atualmente podem ter três licenças de televisão e a nova lei prevê até oito.

Como devemos lidar as notícias falsas? É um problema que não venceremos?

Sempre houve notícia falsa e vamos viver com elas e agora com as mensagens instantâneas, o alcance é maior. A primeira coisa que temos a fazer é diferenciar uma notícia falsa da desinformação.

Notícia falsa, a fake news, pode ser coisas diferentes. Uma denúncia pode não ser exata, ou algo que denunciamos e que depois de uma investigação se mostra falso. Isso sempre existiu.

Julgo que o problema para a democracia, o que temos que falar, é das estratégias para desinformar, quando uma empresa, um partido político ou o governo, sabendo que algo é falso, usa recursos para promover essa desinformação. Com as notícias falsas, temos que conviver, a desinformação nós combatemos. A notícia falsa se combate com mais jornalismo e não com menos. 

Igor Carvalho, da equipe da Brasil de Fato

Edição: Rodrigo Durão Coelho


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

Veja também


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Igor Carvalho

LEIA tAMBÉM

Equador Luisa González disputa 2º turno sob risco de vida, com novo apoio e líder nas pesquisas
Equador: Luisa González disputa 2º turno sob risco de vida, com novo apoio e líder nas pesquisas
Sem vergonha, mas com pesar, preciso dizer que erramos - editorial (3)
Editorial | Sem vergonha, mas com pesar, preciso dizer que erramos
Esperança de libertação à América Latina, Celac desafia OEA e impulsiona mundo multipolar
Esperança de libertação à América Latina, Celac desafia OEA e impulsiona mundo multipolar
Consenso sobre unidade e flexibilidade é crucial para evitar “brexit do Mercosul”
Consenso sobre unidade e flexibilidade é crucial para evitar “brexit do Mercosul”