Faz 32 anos que Eric Hobsbawm (Alexandria, Egito, 1917; Londres, 2012) publicou sua História do Século 20, 1914-1991, um livro de peculiar atualidade². Talvez isso se deva ao fato de que o autor soube distinguir com clareza entre o tempo cronológico e o tempo histórico do século ao qual dedicou sua obra. Esta, de fato, não tem como objeto o que ocorreu entre os anos de 1900 e 1999, e sim o período transcorrido entre o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, e a desintegração da União Soviética, em 1991. A esse período ele chama de “século 20 curto”, no qual culmina, por um lado, a primeira fase do processo de criação do moderno sistema mundial a partir do século 18, e se constituem as bases do que chegou a ser a fase culminante do desenvolvimento desse sistema, até chegar à crise existencial em que hoje se encontra.
Essa investigação foi dedicada, ainda, ao que Hobsbawm considerava o sentido fundamental do trabalho do historiador, que não era descrever nem julgar, e sim compreender, a partir da análise do passado, as possibilidades de futuro que se abriam com o transcorrer da ação humana ao longo do tempo. Daí que iniciasse o capítulo final de sua obra afirmando:
Aqueles que presenciamos à distância, como adultos maduros, o atentado contra as Torres Gêmeas de Nova York, em 11 de setembro de 2001, podemos dar testemunho disso.
Isso tem uma importância ainda maior à luz do alerta que o autor faz ao iniciar seu livro. Ali ele nos diz que a destruição do passado, “ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam a experiência contemporânea do indivíduo à de gerações anteriores, é um dos fenômenos mais característicos e estranhos do final do século 20.” (2012:13) Esse traço cultural, que se prolonga em nosso tempo, dificulta o caminho para o terceiro milênio, justamente quando compreender o passado torna-se cada vez mais importante, se o objetivo é construir opções de desenvolvimento humano.
A esse respeito, Hobsbawm apresenta o ponto de partida dessa transição do século 20 curto — depois de seu momento de maior esplendor, entre as décadas de 1950 e 1970 — ao terceiro milênio ainda indeterminado, indicando que, a partir da desintegração da União Soviética e do fim da Guerra Fria,
A fragmentação da organização internacional do sistema mundial, por sua vez, expressava-se no fato de que, se a natureza dos atores da cena internacional “não estava clara, tampouco estava clara a natureza dos perigos que o mundo enfrentava”. Esse contexto favoreceu ainda o que Hobsbawm chamou de “a democratização dos meios de destruição, que transformou as perspectivas de conflito e violência em qualquer parte do mundo”, tanto no que se refere a guerras civis, intervenções militares e à expansão do recurso ao terrorismo, que, por sua vez, foram dando lugar a cenários — e custos — novos no plano da segurança e da defesa, com o que, em suma, “o século finalizou com uma desordem global de natureza pouco clara, e sem nenhum mecanismo para pôr fim a essa desordem ou mantê-la controlada.” (2012:555)
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Nesse plano, Hobsbawm examina em detalhes o panorama daquela fase inicial da transição em que ainda nos encontramos. Presta especial atenção, por exemplo, às crescentes tensões entre os países de maior e menor desenvolvimento econômico, que se tornavam mais complexas devido à formação de economias de grande dinamismo em países de anterior situação colonial, como a Índia e a África do Sul, ou estreitamente vinculados à periferia do mercado mundial, como a China e o Brasil. Nesse panorama geral, destacou que os dois problemas centrais — “e, a longo prazo, decisivos” — da transição ao terceiro milênio já eram “de tipo demográfico e ecológico”.
No primeiro caso, considerava que, se não se cumprisse a previsão formulada por organismos especializados de que a população mundial se estabilizaria em torno dos dez bilhões de pessoas por volta de 2030, “deveríamos abandonar toda aposta no futuro”, pois estaria colocado o problema “até agora não enfrentado em escala global – de como manter uma população mundial […] que flutuará em torno de uma tendência estável ou com um pequeno crescimento (ou decréscimo)”. Diante desse panorama, dizia, “os movimentos previsíveis da população mundial […] aumentarão com toda certeza os desequilíbrios entre as diferentes zonas do mundo.” (2012:560,561)
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Dos problemas ecológicos, dizia que, “embora sejam cruciais a longo prazo, não são explosivos de imediato.” Assim, “ainda que, desde a época em que entraram na consciência e no debate públicos […] tenham tendido a ser discutidos erroneamente em termos de um iminente apocalipse”, parecia-lhe evidente que manter indefinidamente um índice de crescimento econômico “semelhante ao da segunda metade do século 20 […] teria consequências irreversíveis e catastróficas para o entorno natural deste planeta, incluindo a espécie humana que dele faz parte.” Aqui, acrescentava, era essencial vincular o crescimento econômico a um desenvolvimento sustentável “(um termo convenientemente impreciso).” Mas, mesmo se nesse campo “os cientistas podem estabelecer o que é necessário para evitar uma crise irreversível, […] não se deve esquecer que estabelecer esse equilíbrio não é um problema científico e tecnológico, mas sim político e social.” (2012:562, c: gch)
Ao concluir seu percurso pelos acasos e lições da transição ao terceiro milênio, Hobsbawm nos oferece uma reflexão que busca vincular o passado ao futuro. “Vivemos”, diz,
“Não sabemos para onde vamos”, acrescentou, “senão apenas que a história nos trouxe até este ponto e […] por quê.” No entanto, “uma coisa está clara:”
Diante de um desafio como esse, sempre será bom recordar que não estamos sozinhos, nem no tempo nem no espaço, na tarefa de contribuir para a criação das luzes que o mundo demanda. Hobsbawm cumpre ao recordar-nos que é preciso estar na realidade e crescer com ela. E, nessa tarefa, com Martí, poderemos encontrar ânimo e certeza em saber que:
Tudo é música e razão,
E tudo, como o diamante,
Antes da luz é carvão³.
Alto Boquete, Panamá, 10 de outubro de 2025
[1] “Fragmentos” [1885 – 1895]. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975. XXII, 199.
[2] História do Século XX, 1914-1991. Crítica, Barcelona, 2012:16.
[3] “Versos Sencillos”. Poesia Completa. Edição Crítica. Editorial Letras Cubanas, Cidade de Havana, Cuba, 1985, p. 236.
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