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Estados Unidos vivem tragédia do "estado profundo" enquanto aliança entre Rússia e China ganha força

Os Estados Unidos perseguem sonhos de equilíbrio de poder desde 1900; e agora enfrentam a ruína econômica
Pepe Escobar
Paris

Tradução:

Henry Kissinger, 97, Henry ‘o K.’, é pensador estrategista padrão oráculo de Delfos, para seus íntimos; ou criminoso de guerra comprovado, para os não acolhidos como tão íntimos.

Atualmente, parece ter tirado folga de seu estoque habitual de Dividir para Governar – e tem aconselhado o combo que se move por trás do presidente dos EUA, também conhecido como Torso para Teste de Colisão Frontal – a emitir esporádicas pérolas de sabedoria de realpolitik.

Num recente fórum no Arizona, referindo-se ao confronto putrefato China/EUA, maior que a vida, Henry ‘o K.’ disse que “É o maior problema para os EUA; é o maior problema do mundo. Porque, se não pudermos resolver esse problema, o risco é que em todo o mundo se desenvolverá uma espécie de guerra fria entre China e EUA.” 

Os Estados Unidos perseguem sonhos de equilíbrio de poder desde 1900; e agora enfrentam a ruína econômica

Flcikr
Henry Kissinger, 97, Henry "ok" é pensador estrategista ou criminoso de guerra comprovado.

Em termos de realpolitik, essa “espécie de guerra fria” já está em curso; em toda a Beltway, a China é unanimemente vista como a principal ameaça à segurança nacional dos EUA.

Kissinger acrescentou que a política dos EUA para a China tem de ser um misto de destacar “princípios” dos EUA, para exigir respeito; e diálogo para encontrar áreas de cooperação: “Não estou dizendo que a diplomacia sempre levará a resultados benéficos (…) Temos essa tarefa complexa a cumprir (…) Ninguém até agora conseguiu cumpri-la completamente.” 

Henry ‘o K.’ na verdade deve ter perdido algum capítulo da trama – diplomática. O que o ministro de Relações Exteriores da China Wang Yi e o ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergey Lavrov fazem atualmente, em tempo integral, é demonstrar – sobretudo ao Sul Global – que a “ordem internacional baseada em regras imposta pelos EUA” tem absolutamente nada a ver com lei internacional e com respeito à soberania dos povos. 

De início, arquivei essas platitudes de Henry ‘o K.’, como estorvo. Mas foi quando alguém que teve posição estelar no topo do estado profundo [“estado permanente”] dos EUA mostrou que andava dedicando muita atenção às tais mesmas platitudes.

Essa personalidade – digamos, “Mr. S.” – tem sido uma das minhas fontes mais valiosas, digna de toda a confiança, desde o início dos anos 2000s. Mútua confiança sempre foi chave. Consultei-o, para saber se me autorizava a publicar passagens seletas de sua análise, sem nomes. Respondeu que sim – com pesar. Assim sendo, apertem os cintos.

Dançando com Mr. S. Mr. S. – e é bastante intrigante – parece expressar visões coletivas de gente extremamente qualificada. Para começar, minha fonte mostra como as falas de Henry ‘o K.’ explicam o atual triângulo Rússia-China-Irã.

O primeiro ponto aí é que não foi Kissinger quem criou políticas para Nixon, mas o estado profundo. Kissinger foi só o garoto de recados. Na situação de 1972, o estado profundo queria cair fora do Vietnã, política posta em ação como força de contenção de China e Rússia comunistas. Estávamos lá baseados na teoria do dominó.

E prossegue:

O estado profundo queria alcançar vários objetivos ao abordar o Timoneiro Mao, que era antagonizado pela Rússia. Queria aliar-se, em 1972, com a China contra a Rússia. Com isso, o Vietnã ficou sem sentido, porque a China se tornaria força de contenção da Rússia, e o Vietnã já nada significava. Queria jogar a China contra a Rússia. A China não era grande potência em 1972, mas podia drenar a Rússia, forçando-a a pôr 400 mil soldados juntos às próprias fronteiras. E a política de nosso estado profundo funcionou. Nós, do estado profundo, concebemos tudo, não Kissinger. 400 mil soldados russos na fronteira chinesa drenaram o orçamento deles, como depois o Afeganistão, com mais de 100 mil soldados, e o Pacto de Varsóvia e outros 600 mil.

E isso nos leva ao Afeganistão:

O estado profundo quis começar um Vietnã para a Rússia no Afeganistão em 1979. Pessoalmente, me opunha, porque o plano faria do povo afegão bucha de canhão, sem necessidade, e não seria justo. Fui voto vencido. Aqui, Brzezinski – outro zero superestimado, que só fez levar recados – brincava de Kissinger. O estado profundo também decidiu derrubar o preço do petróleo, medida que enfraqueceria economicamente a Rússia. E funcionou, em 1985, levando o preço a oito dólares o barril, o que devorou metade do orçamento russo. Então, basicamente demos permissão a Saddam Hussein para invadir o Kuwait, como complô para enviar nosso exército avançado para derrubá-lo e demonstrar ao mundo nosso armamento superior, o que muito desmoralizou os russos; e encheu de medo da ira divina o petróleo islâmico. Então inventamos a ficção Guerras nas Estrelas. Para nossa surpresa, a Rússia descontrolou-se e colapsou.

Nas palavras de Mr. S., tudo que se lê acima – o modo como o “comunismo saiu, e entrou o cristianismo” – foi “maravilhoso”:

Quisemos então acolher a Rússia na comunidade de nações cristãs, mas o estado profundo quis desmembrá-las. Mais uma estupidez, porque acabariam por oscilar e pender para a posição contra a China, pelo menos do ponto de vista Mackinder daquelas nações. Foi ingenuidade de minha parte esperar um retorno do cristianismo, dado que o ocidente andava a passos largos rumo à total desintegração moral. Enquanto isso, a China nossa aliada continua a crescer, e nós não completamos o desmembramento da Rússia; e os conselheiros que enviamos à Rússia destruíram toda a economia nos anos 1990s, apesar das minhas objeções. Os 78 dias de bombardeio contra Belgrado finalmente fizeram a Rússia acordar, e os russos começaram sua remilitarização massiva, uma vez que já era óbvio que a intenção final era bombardear Moscou até arrasá-la completamente. Mísseis de defesa tornaram-se essenciais. Daí os S-300, S-400, S-500 e rapidamente os S-600s. Cuidei de alertar o estado profundo em nossas reuniões, para o fato de que bombardear Belgrado em 1999 levaria a Rússia a se remilitarizar; mas não fui ouvido. Belgrado foi bombardeada por 78 dias. Para nos vingar de Hitler, bastaram-nos dois dias de bombardeio. E a China não para de crescer.

Por que o equilíbrio do poder não funciona. E isso nos leva a uma nova era – que, na prática, começou com o anúncio, pelos chineses, em 2013, das Novas Rotas da Seda; e com Maidan, em Kiev, em 2014:

A China desperta para tudo isso, ao começar a se dar conta de que foi usada, e de que a frota norte-americana controla suas rotas comerciais; e decide aproximar-se da Rússia, em 2014, bem a tempo de assistir à derrubada da Ucrânia, na praça Maidan. Aquela derrubada foi organizada pelo estado profundo, quando aquelas pessoas começaram a compreender que haviam perdido a corrida armamentista, e sequer sabiam o que estava acontecendo. O estado profundo queria jogar a Rússia outra vez num Vietnã, na Ucrânia, para exauri-la e outra vez derrubar o preço do petróleo, o que foi feito. Pequim estudou o caso e viu a luz. Se a Rússia for derrubada, o ocidente controlará todos os recursos naturais russos, os mesmos de que a China precisa para se tornar economia gigante, maior que os EUA. E Pequim começa a abrir uma relação calorosa com Moscou, procurando obter recursos naturais terrestres, e petróleo e gás natural da Rússia, para evitar o mais possível os mares como fonte de recursos naturais. Enquanto isso, Pequim acelera massivamente a construção de submarinos armados com mísseis capazes de destruir frotas norte-americanas.

Assim sendo, onde, nisso tudo, encaixa-se o Kissinger no Arizona? 

Ora… Kissinger reflete a angústia do estado profundo, hoje, quanto ao relacionamento Rússia-China. E quer com todas as forças quebrar esse relacionamento. É interessante o modo como Kissinger aqui encobre essa questão. 

Não quer dizer a verdade sobre as realidades do equilíbrio de poder. Descreve aquelas realidades como se fossem “nossos valores”, quando os EUA já não têm quaisquer valores, além de anarquia, saque e destruição de centenas de cidades. 

Biden tem esperanças de comprar todas essas massas desamparadas, ao ritmo frenético com que imprime moeda. E voltamos a Kissinger chocado com a nova aliança russo-chinesa. É preciso separar Rússia e China. 

Não concordo com o equilíbrio dos intrigantes do poder, para os quais aquela tal moralidade ou os tais nobres valores – não o poder – deveriam governar as relações internacionais. 

Os EUA perseguem sonhos de equilíbrio de poder desde 1900; e agora enfrentam a ruína econômica. Essas ideias não funcionam. Não há razão pela qual os EUA não possam ser amigos de Rússia e China e trabalhar as diferenças. Mas ninguém pode chegar à primeira base, se considerações sobre equilíbrio do poder dominam tudo. Essa é a tragédia de nosso tempo.

Deep State (lit. “Estado Profundo”). Já há algum tempo temos optado por traduzir essa expressão como “Estado Permanente”, cuidando sempre para que essa questão tradutológica não se sobreponha ao tema discutido em cada ocorrência da expressão.

Depois de muito discutir, chegamos a um consenso: “É fato que o dito Deep State (i) não é ruim por ser profundo: é ruim por ser eterno, permanente, imutável, impermeável, impenetrável, inalcançável pelas instituições e forças da democracia; além disso, (ii) nem ‘profundo’ o tal Deep State é: ele vive bem à tona, tem logotipos, marcas, griffes e nomes e sobrenomes, na superfície da vida social; mesmo assim, se autodeclara “profundo”, talvez porque se deseje invisível, talvez porque a ‘profundidade’ dá-lhe uma quase respeitabilidade, que o estado permanente aspira a ter, mas não tem. Não. Ele que se autodeclare o que queira. Nós o declaramos o ‘estado profundo’, “Estado Permanente” (e anotamos nossa formulação e nossos motivos, aqui, em nota dos tradutores [NTs]).


* Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Pepe Escobar Pepe Escobar é um jornalista investigativo independente brasileiro, especialista em análises geopolíticas e Oriente Médio.

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