Um especial da revista Caras y Caretas dedicado a Estela de Carlotto não estaria completo sem a voz da própria protagonista, cuja trajetória combina compromisso, coragem e persistência.
Referência incontornável no campo dos direitos humanos, presidenta e figura paradigmática das lutas da Associação Avós da Praça de Maio — onde consolidou um legado de resistência que atravessa gerações —, na Argentina, Carlotto encontrou um tempo em sua incansável tarefa — que ainda continua, aos 95 anos — para relembrar uma vida exemplar. Confira:
Adrián Melo – Que lembranças tem de sua vida como professora?
Estela de Carlotto – Era a vida típica de uma mulher de classe média. Meu marido era químico e tinha uma pequena fábrica. Primeiro fui professora primária e depois encerrei minha carreira como diretora de uma escola primária perto de La Plata, onde vim morar: a Escola Nacional de Brandsen. Sou portenha, mas aos dez anos minha família se mudou para La Plata e, desde então, me sinto orgulhosamente platense.
Como era sua relação com as crianças da escola?
As crianças para quem eu dava aula eram do bairro: simples, provenientes de setores populares. Algumas eram atendidas por instituições e organizações do Estado. Isso me dava muita tristeza, porque não conheciam um lar nem um ambiente familiar. Procurava ajudá-los no que podia — em suas tristezas, carências e na tentativa de enfrentar da melhor forma possível as situações de pobreza e abandono. Tinha uma relação tão maravilhosa com eles que muitos ainda mantêm contato comigo. Ali também conheci a solidariedade e a bondade dos setores populares. Finalmente, me aposentei porque veio a etapa mais trágica da minha vida: o desaparecimento de meus entes queridos.
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Primeiro o sequestro de seu marido e depois o de sua filha Laura. Quais foram suas primeiras ações após o terrorismo de Estado exercido sobre sua família?
Me aposentei e me dediquei, junto a outras mulheres que haviam sofrido o desaparecimento de suas filhas e filhos — primeiro em La Plata e depois em Buenos Aires — a nos reunir em nossas casas. Não pensávamos em fundar uma organização formal, e sim em formar um grupo de busca diante da ditadura cívico-militar.
Como foram as primeiras reuniões?
Com as amigas de La Plata, nos reuníamos nas casas de algumas de nós. Depois começamos a nos encontrar em Buenos Aires com outras mães e com as avós, que tinham uma dupla busca: a de seus filhos e filhas desaparecidos e a dos netos que presumíamos terem nascido no cativeiro. Como a maioria vivia em Buenos Aires, viajávamos constantemente e fazíamos reuniões. Não tínhamos sede: nos encontrávamos em confeitarias, fingindo um chá entre amigas. Por telefone, dizíamos: “Vamos nos reunir para comprar flores”. Já na confeitaria — geralmente uma chamada La Florida —, quando o garçom se afastava, tirávamos os papéis para falar com juízes e buscar as estratégias menos perigosas possível. Assim, com companheiras que compartilhavam a mesma dor, fomos formando pouco a pouco esta associação que hoje é reconhecida mundialmente. Daquelas avós, apenas três ainda estamos vivas.
Que papel desempenharam os maridos e os homens da família?
Sempre digo que são os heróis anônimos. A maioria de nós tinha o apoio dos maridos, mas não permitíamos que fossem aos atos, porque corriam mais risco. Os homens eram vistos como perigosos; as mulheres, como tolas. Soube que o discurso dos militares era: “Deixem-nas caminhar e marchar, são mulheres, não valem nada, vão se cansar, vão sentir medo”. Então decidimos pedir aos homens que não participassem das atividades visíveis — nem na Praça de Maio nem na Casa de Governo — para reclamar por nossos filhos. E assim nos deixaram. Já se passaram quase 50 anos e continuamos marchando. A profecia dos militares não se cumpriu: não nos cansamos, seguimos exigindo justiça. Passou meio século e seguimos exigindo justiça.
A senhora soube que sua filha, no cativeiro, disse: “Minha mãe não vai perdoar os milicos pelo que estão me fazendo. E vai persegui-los enquanto tiver vida”.
Sim. Evidentemente, Laura me conhecia mais do que eu mesma me conhecia. Nunca imaginei que minha vida tomaria este rumo e este compromisso político.
Em que momentos dessa longa e árdua luta sentiu que se cansava, que ia desistir?
Desistir nunca foi uma opção. Certa vez disse a meu marido que não aguentava mais. Ele, longe de aceitar essa afirmação, me convenceu do contrário. E isso que eu deixava marido e filhos para viajar, buscando apoio no exterior. Sua resposta foi clara: “As outras mães precisam de você”. Essa frase me sustentou.
Que sentimentos experimentou nas primeiras marchas?
Tinha muito medo. Na primeira marcha tremia como uma folha, cercada por policiais a cavalo. Também temia pelo resto da minha família. Tive quatro filhos: duas mulheres e dois homens. Todos militavam e participavam da política. O mais novo também foi perseguido: seguiam-no de carro pelas ruas de La Plata e o advertiam: “Carlotto, se cuide”.
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Entre os marcos da história das Avós, como surgiu o Banco Nacional de Dados Genéticos?
A maioria de nós era professora, empregada ou dona de casa. Tivemos que aprender a realizar a busca. No começo, atuávamos de maneira um pouco ingênua. Esperávamos e observávamos as crianças que saíam das escolas, procurando semelhanças físicas. Se alguém nos dizia que havia um menino retirado de forma suspeita, uma de nós se escondia atrás de uma árvore para tirar uma foto e outra disfarçava como se esperasse um neto. Era absurdo, mas era o único recurso que tínhamos. Com o tempo, uma notícia em La Plata mostrou que havia sido comprovada a relação de parentesco entre um pai e um filho por meio de uma análise clínica. Foi então que percebemos que a chave da busca estava no sangue. Surgiu, nesse momento, a figura da geneticista Mary-Claire King, uma amiga profissional que nos ajudou enormemente e a quem honramos de todo coração.
Como continua a luta da Associação Avós da Praça de Maio?
Como as Avós que seguimos vivas somos quase centenárias, passamos o bastão à organização formada por netos e netas recuperados e por irmãos dos desaparecidos. Continuamos trabalhando para que isso nunca mais aconteça e para seguir encontrando. Há pouco tempo anunciamos a recuperação do irmão de uma querida companheira. Ele vivia perto da casa da irmã. Muitas vezes a intuição familiar, esses ditames do coração, ajudou na recuperação.
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Que estratégias políticas persistem em tempos em que as políticas de memória são questionadas no discurso nacional?
É uma luta social. Temos democracia, que é o mais importante, mas parece que querem reduzi-la ao simples ato de votar. Depois é preciso ver o que acontece com o eleito: se governa para todos ou apenas para alguns poucos. Parece que o presidente e sua equipe governam para os que mais têm. Vivemos sob um governo eleito democraticamente, mas que vem perdendo legitimidade por suas ações negativas. Este governo não gosta de nós nem nos apoia. Tampouco ajuda ou protege a maioria do povo, nem os setores mais vulneráveis. É lamentável. Foi eleito democraticamente, mas está levando o país a uma situação terrível.
Que mensagem daria às juventudes?
Os jovens são fundamentais para a luta, mas é necessário que ela seja sem violência. As diferenças políticas não devem nos transformar em inimigos. É preciso buscar caminhos de pacificação para alcançar a paz social. Uma condição básica é o respeito aos idosos. Todas as quartas-feiras, uma velhice que necessita de cuidados do Estado marcha e é agredida pelas forças de segurança. Isso nunca deveria acontecer, e muito menos em uma democracia. Hoje vivemos em uma democracia que, muitas vezes, não parece sê-lo.





