Assim como meus admirados Burning, lembro, quando criança, do surgimento do cabelo comprido, daqueles primeiros garotos que abandonaram o corte militar que caracterizou a longuíssima pós-guerra, lá por meados ou final dos anos 1960. Lembro que muitos velhotes os chamavam de porcos e mandavam que se lavassem, já que se supunha que aquela cabeleira longa e esvoaçante estivesse cheia das lêndeas de antigamente, aquelas onde cresciam e se multiplicavam os piolhos. Eram chamados de drogados, veados e gentinha, enquanto nossos pais nos recomendavam manter distância, não cruzar com suas sombras, para evitar o contágio.
Pouco a pouco, como sempre acontece, aquilo virou moda e todo mundo — uns mais, outros menos — deixava o cabelo ao vento, ainda que isso implicasse em uma bronca dos pais. Havia algo de ruptura, de desafio ao estabelecido, de cansaço com as formas e normas da ditadura religioso-militar; alguns chegaram até a se inspirar em Jesus de Nazaré para justificar o crescimento do cabelo e seu aspecto parecido com aquele que, segundo contam livros não históricos, seria crucificado. Mais de um amigo levou uma surra por causa da impostura, pelo atrevimento. Hoje restam poucos resquícios daqueles cabelos, quando muito sobre uma moto, com uma jaqueta de couro surrada e muitos anos nas costas. Fósseis de outro planeta.
Caminho alegre pelas ruas. Ar festivo, ouvem-se foguetes por toda parte, tocam os sinos, até mesmo o maior, que quase nunca toca. Bandas de música ao longe vão se aproximando, vai amanhecendo, cada vez mais gente, cada vez mais alegria, todos dançando, cantando desde bem cedo. Me emociono ao recordar os dias que sempre me emocionaram. Ao virar uma esquina, encontro um grupo de garotos bem jovens, muito jovens, cantando e pulando, se divertindo. Me detenho para observá-los, não sei se por querer compartilhar da alegria deles ou para lembrar da minha, de algumas décadas atrás, ou da que ainda conservo. Não tinha notado à primeira vista, mas a maioria deles — deviam ser mais de quinhentos — tem o cabelo cortado ao estilo nazista, ou seja, como usava Himmler, como ordenou que usassem os membros da Juventude Hitlerista e das SS: cabelo curto em cima e desbotado até sumir acima das orelhas, formando um bico ao cair sobre a nuca. Imagino que muitos deles não saibam o que esse corte de cabelo simboliza nem o penteado que o acompanha, mas me incomoda profundamente, tanto se sabem quanto se não sabem, porque deveriam saber.
Sob esse cabelo, com esse penteado, milhares e milhares de jovens seguiram as palavras de ordem nazistas, entregaram suas vidas para abolir a liberdade e construíram os campos de extermínio onde assassinaram milhões de judeus, comunistas, republicanos espanhóis, ciganos, pessoas com deficiência e membros da resistência antifascista. O cheiro de carne queimada, o barulho dos tanques esmagando cabeças, os gritos dilacerantes dos torturados, dos famintos, dos acorrentados, foram provocados por homens com esse aspecto, com esse cabelo, com esse penteado que hoje, talvez por influência de algum jogador de futebol da moda, muitos de nossos adolescentes e jovens usam. Não é símbolo de rebeldia, de protesto, de inconformismo — não, de modo algum —, mas um sinal de integração a um sistema nocivo que pretende abolir todas as conquistas democráticas dos últimos tempos.
Os que sabem que estão imitando os nazistas sabem claramente seu objetivo na vida, para si e para os outros; os que não sabem, revelam sua ignorância e a de um sistema educacional que nem sequer foi capaz de ajudá-los a identificar onde está o terror, onde está a parte mais sombria da trajetória humana, onde está o sofrimento mais intenso e persistente que alguns homens foram capazes de infligir a outros que não conheciam de nada, e dos quais, com toda certeza, só souberam o número que lhes foi atribuído ao entrarem no campo de concentração.
Muitos de nossos jovens e adolescentes, aqui na Espanha e no resto do mundo, se identificam com a estética nazista. Isso não quer dizer que sejam nazistas, mas sim que acham essa estética admirável, algo que combina com sua personalidade e com a do grupo em que convivem. A estética quase nunca anda sozinha, e a determinado tipo de estética normalmente corresponde uma ética, um comportamento: estilos uniformizados, sérios, paramilitares, narcisistas levam a uma determinada maneira de pensar e agir.
Em 5 de maio comemorou-se o 80º aniversário da libertação do campo de concentração de Mauthausen pelas tropas ianques. Ao chegarem ao campo onde estavam encarceradas mais de 100 mil pessoas, entre elas vários milhares de republicanos espanhóis, os soldados aliados foram recebidos por bandeiras republicanas espanholas e um enorme cartaz que dizia: “Os Antifascistas espanhóis saúdam as forças libertadoras”. Mauthausen não era apenas um campo de extermínio, mas um complexo onde os prisioneiros eram obrigados a fabricar bombas, venenos, gases mortíferos até ficarem extenuados. Era um impressionante campo de tortura e dor no qual milhares de pessoas morreram em fornos, com gás ou esquartejadas, porque assim haviam decidido os homens que usavam o cabelo raspado acima das orelhas, tal como o usam muitíssimos jovens dos nossos dias. Não parece um modelo a ser imitado, embora os tempos atuais não imitem apenas penteados e cortes de cabelo, mas também governos e formas intolerantes de relações políticas e humanas.
Hoje, são muitos os povoados da Espanha que têm uma placa reconhecendo os espanhóis que morreram nos campos nazistas, embora pareça que ninguém se dê conta. No entanto, são bem menos os que recordam os espanhóis que morreram em campos de concentração espanhóis — dos quais houve mais de duzentos —, nos quais foram cometidas todo tipo de atrocidades, a tal ponto que Franco e seus homens, ao perceberem que a queda do nazismo era inevitável por volta de 1943, decidiram não apenas desativá-los, mas apagar qualquer vestígio deles, destruindo muros, galerias, edifícios de comando e quaisquer restos humanos. Tratava-se de não deixar traço algum desse horror, de apagá-lo, inclusive eliminando os milhares de fotografias que ali foram feitas, de olho em um futuro entendimento com os aliados, que sabiam seriam os vencedores da guerra.

Apagaram-se os vestígios, embora estejam sendo recuperados em campos como o de Albatera; morreram os que os sofreram, e sem imagens, manter viva a memória daquela atrocidade se torna cada vez mais difícil. Ver crianças, adolescentes, jovens com o aspecto dos membros das Juventudes Hitlerianas, ver meninos raspados como quando eu era um moleque de calças curtas obrigatórias, ver a desmemória, a falta de respeito às vítimas do fascismo e o enaltecimento da estética nazi-fascista é algo que eu não esperava ver, que acreditava ter desaparecido para sempre.
Mas acontece que não: os ovos da serpente estavam por toda parte, que as redes sociais vieram apenas para banalizar seu veneno, para legitimar o terror, o brutalismo, a ignorância empoderada. Pode até ser uma moda passageira, como tantas outras, mas não creio, pois esta, que vem de anos atrás, coincide no tempo com uma guinada política radical rumo à ultradireita em todo o mundo. Primeiro se monta o cenário, o decorado, depois entram os atores, por fim, sai o autor.