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A única via para uma ordem global verdadeiramente equitativa passa por desmantelar as estruturas coloniais do direito internacional (Foto: Flickr)

EUA e Israel atacam Irã pois função do direito internacional é subordinar Sul Global

Nessa estrutura, o Sul Global não apenas é vigiado, como também definido por outros: sua legalidade, sua racionalidade e seus limites de ação estão sujeitos ao julgamento das potências ocidentais

Xavier Villar
HispanTV
Teerã

Tradução:

Ana Corbisier

Em 22 de junho de 2025, os Estados Unidos bombardearam instalações nucleares iranianas em um ataque coordenado com Israel que pôs fim a qualquer ficção sobre a natureza da ordem internacional.

Longe de constituir uma ação isolada ou reativa, o bombardeio coroou uma campanha continuada de pressão que, sob o disfarce da diplomacia, encobria uma estratégia de asfixia e provocação. Assim como a guerra iniciada por Israel em 13 de junho, o ataque estadunidense careceu de justificativa legal ou estratégica legítima. Foi, por todas as suas características, um ato de agressão planejado e não provocado.

A ofensiva, que concentrou um poder destrutivo inédito sobre as instalações de Fordow, Natanz e Isfahan, não apenas violou o princípio de soberania consagrado na Carta das Nações Unidas, como também rompeu de forma flagrante o regime de não proliferação nuclear. Os três complexos atacados estavam sob supervisão da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), e não havia qualquer indício de que o Irã estivesse desviando seu programa nuclear para fins militares. Ainda assim, Washington e Tel Aviv decidiram agir unilateralmente, corroendo não só a legalidade internacional, como também os últimos vestígios de confiança nos mecanismos multilaterais.

Uma agressão anunciada

Para aqueles que acompanharam de perto o expediente iraniano, a ofensiva não foi uma surpresa. Há meses, os Estados Unidos vinham intensificando sua retórica sobre a “ameaça iraniana”, enquanto a própria AIEA confirmava o caráter pacífico do programa nuclear. A diplomacia estadunidense, apresentada como um esforço para evitar a escalada, revelou-se — em retrospectiva — uma operação calculada de dilação. Cada rodada de negociações, cada gesto de aparente distensão, não passava de uma tática para ganhar tempo enquanto se planejava o ataque.

A coordenação entre Washington e Tel Aviv foi evidente desde o início. As operações israelenses de 13 de junho, que marcaram o início de uma nova fase de hostilidades contra o Irã, funcionaram como uma sondagem para medir a capacidade de resposta iraniana e preparar o terreno para a intervenção estadunidense. A narrativa de “resposta legítima” construída por ambos os governos é tão previsível quanto cínica: as potências nucleares atuam como juízes, fiscais e algozes em um cenário global projetado por elas mesmas.

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A instrumentalização do direito

O direito internacional proíbe expressamente o uso da força, salvo em legítima defesa diante de um ataque armado ou mediante resolução do Conselho de Segurança da ONU. Nenhuma dessas condições foi cumprida. O ocorrido não é uma exceção, mas parte de um padrão histórico de uso instrumental do direito por parte das potências hegemônicas. Nesse contexto, as normas não são universais, mas maleáveis: aplicam-se com rigor aos inimigos e são ignoradas quando afetam os aliados ou os próprios autores das ações.

O sistema legal internacional foi moldado, desde o início, para servir aos interesses do poder. O regime de não proliferação, que impõe rígidas restrições a países do Sul Global enquanto permite às potências nucleares manter seus arsenais sem compromisso sério de desarmamento, é uma das expressões mais evidentes dessa assimetria. A classificação de Estados em categorias morais — democracias responsáveis versus regimes perigosos — legitima uma legalidade diferencial, uma lógica neocolonial que reproduz a velha ordem imperial com novas linguagens.

A ordem que se desintegra

Os ataques contra o Irã não apenas violaram princípios fundamentais do direito internacional; também aceleraram a crise estrutural da ordem global. O Tratado de Não Proliferação (TNP), pilar central do sistema de segurança coletiva, foi esvaziado de conteúdo. Se cumprir com as inspeções da AIEA não protege um Estado de ser atacado, que incentivo resta para respeitar as normas?

As consequências são profundas:

  • Deslegitimação do TNP: A agressão demonstra que aderir ao tratado não garante proteção nem reconhecimento.
  • Incentivo à dissuasão nuclear: Diante de uma legalidade sem garantias, o desenvolvimento de capacidades dissuasivas torna-se uma opção racional para os Estados do Sul Global.
  • Erosão do multilateralismo: As ações unilaterais substituem os mecanismos institucionais, transformando a segurança internacional em um jogo de poder sem regras.

O direito como tecnologia imperial

O direito internacional contemporâneo continua ancorado em uma arquitetura colonial. Suas instituições, linguagem e mecanismos de validação respondem às lógicas de poder surgidas após a Segunda Guerra Mundial e consolidadas durante a Guerra Fria. Nessa estrutura, o Sul Global não apenas é vigiado, como também definido por outros: sua legalidade, sua racionalidade e seus limites de ação estão sujeitos ao julgamento das potências ocidentais.

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A classificação do Irã como um “perigo” ou “desestabilizador” não nasce de fatos verificáveis, mas sim de um dispositivo discursivo que o inscreve na figura do Outro incontrolável. Diante dessa matriz, a resposta iraniana — contida, estratégica e legalmente fundamentada — não apenas rompe com os estereótipos impostos, como também evidencia que a verdadeira ameaça à ordem mundial não vem das margens, mas sim do centro.

O Irã responde: legalidade e resistência

Apesar da brutalidade do ataque, o Irã optou por uma resposta calculada. Conforme indicaram fontes governamentais, as instalações-chave haviam sido evacuadas dias antes, diante da crescente suspeita de uma agressão iminente. Esse fato confirma que Teerã não foi surpreendido, mas agiu com previsão e responsabilidade, evitando escalar o conflito além do que estabelece o direito à autodefesa consagrado na Carta da ONU.

Mas, para além da dimensão militar, a resposta iraniana aponta para um campo mais profundo: a batalha pela legitimidade. Ao denunciar a agressão perante instâncias internacionais e invocar princípios jurídicos universais, o Irã desloca o debate do terreno da força para o da justiça. A possibilidade, mencionada por analistas iranianos, de fechar o estreito de Ormuz não deve ser compreendida como uma ameaça irracional, mas como uma contramedida legítima diante da violação de sua soberania.

Sob a perspectiva de um Sul Global historicamente vulnerado, esse tipo de resposta representa um ato de dignidade política. Não se trata de romper as regras, mas de expor seu caráter arbitrário. A violência, como demonstram os ataques dos Estados Unidos e de Israel, não é um desvio do sistema, mas uma de suas condições estruturais.

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Conclusão: o espelhismo da legalidade

O ataque ao Irã não deve ser analisado em termos de proporcionalidade ou tática, mas como expressão de uma lógica mais profunda: a de um sistema internacional que perdeu toda capacidade de arbitrar de forma justa entre seus membros. A intervenção estadunidense, longe de ser uma ação desesperada, foi uma decisão consciente e premeditada, sustentada na convicção de que a força continua sendo a linguagem final da política global.

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Enquanto Washington e Tel Aviv agirem com impunidade, e enquanto o direito continuar sendo uma ferramenta dos fortes, a segurança internacional não passará de um espelhismo. A única via para uma ordem global verdadeiramente equitativa passa por desmantelar as estruturas coloniais do direito internacional e substituí-las por marcos jurídicos inclusivos, que reflitam não apenas os interesses dos poderosos, mas também a dignidade dos povos historicamente silenciados.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Xavier Villar

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