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Controlar a narrativa é ferramenta chave para propagandistas que sabem que o modo como a opinião pública compreenda um conflito externo tem efeito direto e decisivo sobre o comportamento de apoio ou de oposição ao governo.
Então o governo dos EUA sempre cuidou de sanear a Guerra do Vietnã. Mas essa não é questão do passado histórico: tem efeito direto sobre o presente.
Por muitos anos os norte-americanos, depois da Guerra do Vietnã, nos beneficiamos da “síndrome do Vietnã”, segundo a qual presidentes dos EUA sempre hesitariam muito antes de lançar ataques substanciais contra outros países, porque temiam oposição forte, semelhante ao poderoso movimento que ajudou a pôr fim à guerra no Vietnã. Mas em 1991, no final da Guerra do Golfo, George H.W. Bush declarou “Por Deus! Afinal nos livramos da síndrome do Vietnã, de uma vez por todas!”
Com as guerras de George W. Bush contra o Iraque e o Afeganistão, e as guerras de drones de Barack Obama contra sete países de maioria muçulmana, e a escalada que ordenou nas guerras contra Iraque e Síria, aparentemente já andamos bem para trás, para antes da síndrome do Vietnã. Plantando desinformação no campo da opinião pública, o governo dos EUA construiu apoios para ele mesmo para suas novas guerras: exatamente como fez antes da Guerra do Vietnã.
Agora, o Pentágono planeja as comemorações do 50º aniversário da Guerra do Vietnã, lançando um programa de $30 milhões para re-escrever e ‘sanear’ a história daquela guerra. A partir de uma fantasiosa e super interativa página na Internet, o esforço visa a ensinar às crianças de escola uma história inventada daquela guerra. O programa visa a honrar nossos soldados que lutaram no Vietnã. Mas não se vê naquela página [paga com dinheiro público] nem sinal de que houve um potente movimento antiguerra, no coração do qual estava o movimento dos próprios soldados que estavam no Vietnã, o GI movement.
Milhares de GIs participaram do movimento antiguerra. Muitos se sentiam traídos pelo governo dos EUA. Criaram cafeterias e jornais underground pelos quais distribuíam informação sobre a resistência. Durante a guerra do Vietnã, 500 mil soldados norte-americanos desertaram. A força da rebelião daqueles “coturnos em solo” forçou os militares a recorrer à guerra aérea.
Oficialmente, a guerra custou a vida de 58 mil norte-americanos. Número jamais revelado foram feridos e voltaram mutilados e sofrendo da síndrome da desordem pós-traumática. Na mais aterradora das estatísticas, mais veteranos da guerra do Vietnã morreram por suicídio, que na guerra.
Milhões de norte-americanos, muitos de nós estudantes nas universidades, marcharam, fizeram manifestações, discursos, cantamos cantos de protesto e nos manifestamos contra a guerra. Milhares foram presos e alguns, na universidade estadual de Kent e na estadual Jackson, foram mortos. O alistamento militar obrigatório e imagens de vietnamitas mortos galvanizaram o movimento.
Dia 15/11/1969, no que foi a maior manifestação de protesto daquela época em Washington, DC, 250 mil pessoas marcharam para a capital do país, exigindo o fim da guerra. Tudo isso, na página do Pentágono cabe em duas palavras: “protestos massivos.”
Mas não estavam morrendo só norte-americanos. Foram mortos número estimado entre 2 e 3 milhões de indochineses – no Vietnã, Laos e Camboja. Crimes de guerra – como o massacre de My Lai – eram frequentes. Em 1968, soldados norte-americanos massacraram 500 velhos, homens e mulheres, e crianças, na aldeia vietnamita de My Lai. A isso a página do Pentágono chama de “o incidente em My Lai” – apesar de a palavra consagrada para aquela monstruosidade já ser “massacre”.
Um dos mais vergonhosos legados da Guerra do Vietnã foi o uso, pelos militares norte-americanos, de uma arma química de destruição em massa, o mortal agente desfoliante “Agente Laranja”, dioxina. Os militares norte-americanos borrifaram toneladas daquele agente químico mortal sobre grande parte da terra agricultável do Vietnã. Estimados 3 milhões de vietnamitas sofrem até hoje o efeito daqueles desfoliantes químicos. Dezenas de milhares de soldados dos EUA também foram afetados. A dioxina causou má formações fetais e em nascituros em centenas de milhares de crianças, no Vietnã e nos EUA. Hoje, ainda segue afetando a segunda e terceira gerações nascidas de pessoas que foram expostas ao Agente Laranja há décadas.
Casos de canceres, diabetes, spina bifida e outros defeitos congênitos podem ser rastreados até a exposição direta ao Agente Laranja. E as armas químicas de destruição em massa destruíram grandes áreas do meio ambiente natural do Vietnã. O solo em vários “pontos quentes” próximos a ex-bases militares dos EUA continua contaminado até hoje.
Nos Acordos de Paz de Paris, assinados em 1973, o governo Nixon prometeu contribuir com $3 bilhões para curar as feridas da guerra e para reconstruir o Vietnã pós-guerra. Até hoje, os EUA ainda não cumpriram esse compromisso.
Apesar de o dano provocado pelo Agente Laranja continuar até hoje, a página do Pentágono só faz uma rápida referência à “Operação Mão no Rancho” [orig. Operation Ranch Hand]. Diz que entre 1961 e 1971, os EUA borrifaram 70 milhões de litros de produtos químicos sobre 20% das selvas naturais do Vietnã do Sul e 36% de suas áreas de mangue. Mas a página do Pentágono nada diz sobre os efeitos devastadores do uso dessa arma química.
A história incompleta e mal contada que se lê na página Internet do Pentágono levou mais de 500 veteranos do movimento pela paz nos EUA contra a Guerra do Vietnã a assinar uma petição, dirigida ao tenente-general Claude M. “Mick” Kicklighter. Pedem que a página oficial “inclua pontos de vistas, depoimentos e materiais educativos que representem reflexo real, justo e completo das questões que dividiram os EUA durante a Guerra no Vietnã, Laos e Camboja.”
O documento lembra “os muitos milhares de veteranos” que se opuseram à guerra; “os que resistiram ao recrutamento obrigatório, muitos milhares de jovens norte-americanos”, os “milhões que exerceram seus direitos de cidadãos norte-americanos e marcharam, rezaram, organizaram paralisações, escreveram cartas ao Congresso” e “todos que foram acusados e processados pelo governo dos EUA por desobediência civil ou morreram nos protestos.”
E, prossegue o documento, “muito importante, não podemos esquecer tampouco os milhões de vítimas da guerra, militares e civis, que morreram no Vietnã, Laos e Camboja, nem os que morreram ou foram feridos depois da guerra, em explosões de minas, munição não explodida, Agente Laranja ou na fuga de refugiados.”
Entre os ativistas antiguerra que assinaram aquela petição estão Tom Hayden e o homem que revelou os “Pentagon Papers”, Daniel Ellsberg. “Todos nós lembramos que o Pentágono nos empurrou para aquela guerra por causa daquela sua versão da verdade” – disse Hayden numa entrevista ao New York Times. “Não se pode admitir que os mesmos que fazem a guerra sejam encarregados de narrá-la” – completou.
Os Veteranos pela Paz [orig. Veterans for Peace (VFP)] estão organizando um evento alternativo para fazer lembrar a Guerra do Vietnã. “Uma das nossas principais preocupações” – disse ao Times Michael McPhearson, diretor dos VFP – “é que, se não conseguirmos fazer lembrar uma narrativa completa, o governo usará a sua própria narrativa inventada para continuar a inventar guerras pelo mundo: como ferramenta de propaganda.”
É verdade. Assim como Lyndon B. Johnson usou o incidente inventado do Golfo de Tonkin como pretexto para escalar a Guerra do Vietnã, George W. Bush usou armas de destruição em massa perfeitamente inexistentes para justificar sua guerra contra o Iraque, e a “guerra ao terror” para justificar a invasão contra o Afeganistão. E Obama justifica sua guerra de drones repetindo considerações de segurança nacional, embora Obama esteja criando mais inimigos para os EUA, quanto mais milhares de civis ele mate e mande matar.
ISIS e Corassão (do qual ninguém na Síria jamais ouvira falar até há três semanas) são os novos inimigos que Obama está usando para justificar suas guerras contra o Iraque e a Síria, por mais que já tenha tido de admitir que nenhum desses seja ameaça aos EUA. A síndrome do Vietnã foi substituída pela “Guerra Permanente”.
Não é clichê que os que ignorem o passado estão condenados a repeti-lo. A menos que alguém trate de construir relato honesto da desgraçada história da guerra dos EUA contra o Vietnã, estaremos cada dia mais mal equipados para protestar contra guerras atuais e futuras que são feitas em nosso nome. *****
* Marjorie Cohn é professora da Faculdade de Direito Thomas Jefferson e ex-presidente da Ordem Nacional dos Advogados dos EUA [orig. National Lawyers Guild]. Seu livro mais recente, Drones and Targeted Killing: Legal, Moral and Geopolitical Issues [Drones e Assassinatos premeditados: questões legais, morais e geopolíticas] foi lançado em outubro.