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Converter indignação social em militância política

Nils Castro

Tradução:

A atual ofensiva da direita evidencia o fiasco da ideia de somar forças mediante a conciliação com elementos da direita econômica e seus representantes políticos. O que faz recordar que o poder do Estado se busca para vencer a classe dominante, não para dormir com ela.
Desenvolver um processo revolucionário implica transformar indignações sociais em movimentos políticos; isto requer a formação de novos contingentes de quadros, promover e mobilizar maiores organizações populares e incrementar a pressão social consciente e organizada. Reconhecer isso é admitir que uma importante porção do povo pobre não responde ao apelo das esquerdas.
Nesse contexto, a direita busca manejar a seu favor as decepções e inconformidades sociais existentes, e seduzir muitos dos “seres humanos lançados na marginalidade, na ignorância e no desespero, para tentar fazer deles uma força de choque selvagem [10] contra os cidadãos conscientes, e não apenas no plano eleitoral. Esta convocação à coação e à violência é um dos traços do fascismo como instrumentos político da estratégia da contrarrevolução preventiva. a contracultura popular deve impulsionar cada trabalhador – e cada marginalizado – a reagir como cidadãos conscientes de seus direitos e de seus deveres de solidariedade.

Nils Castro*
NILSDurante a última parte do século passado, na América Latina foi cancelada, pelo menos para a etapa seguinte, a opção de alcançar mudanças revolucionárias por meio da luta armada. Não obstante, o rechaço social às consequências das políticas neoliberais gerou uma nova onda de movimentos e governos “progressistas” que, nos últimos 15 anos ganhou eleições e abriu outra variável [1]. Isso iniciou uma dupla série de acontecimentos: por um lado, milhões de pobres ganharam cidadania, meios de vida decentes e acesso à educação, saúde e moradia. Por outro, depois do desconcerto inicial, a direita econômica (transnacional e local) e seus operadores políticos e ideológicos, renovou seus anteriores métodos e instrumentos e empreendeu uma contra ofensiva regional nos planos político, mediático, cultural e econômico.
indignados-apatia0Tudo isso modificou o panorama latino-americano. Embora alguns desses governos progressistas tenham sido defenestrados ou tenham tido reveses eleitorais, tudo isso acumulou um acervo de experiências e aprendizagens que seguirão em atividade nestes e nos demais países e nos seus dirigentes. Além disso, nada impede que as organizações e projetos que deram origem aos referidos acontecimentos se refaçam, nem que em diferentes nações do Continente aflorem outras opções de esquerda que também ganhem eleições.
Ainda assim, certos “críticos” alegam que esses reveses significam que o progressismo pereceu, pois estaria terminado o “ciclo” político do qual formou parte, que segundo eles estaria sujeito ao preço das matérias primas. Tal ideologia do “ciclo” pretende que a sucessão dos fatos funciona por si mesmo, à margem da vontade e ações conscientes. Mas o progressismo observado é um processo que continua em desenvolvimento: suas causas continuam se agravando e com elas as respectivas indignações e expectativas sociais, e o clamor de propor alternativas. Sob essas causas atuam os componentes estruturais da crise, que está longe de terminar e, além do mais, ali onde a direita voltou ao governo, ela logo reincide em políticas que provocam indignações adicionais.
No entanto, para avaliar o que efetivamente ocorreu e o que agora é preciso impulsionar, é necessário ver que tais reveses e a força da ofensiva reacionária não se devem apenas às artimanhas e recursos mobilizados pela direita e seus mentores transnacionais. Devem-se igualmente às deficiências e erros dos governos progressistas e das organizações que os apoiam, que enfraqueceram sua capacidade para contrarrestar esse desafio. Isto exige identificar e corrigir essas falhas, incluindo explicar por que motivos quando a esquerda chama à mobilização para impulsionar e defender suas propostas, uma parte da população pobre deixa de responder.

De quem é a responsabilidade?

Isso tem diversas causas. Para começar, esses governos não resultaram de um auge ideológico como o dos anos 60 e 70 do século passado (inspirado nas proezas da Revolução Cubana, nos movimentos de libertação nacional e na luta pelos direitos civis), mas sim do voto de repúdio à política e aos políticos tradicionais que endossaram as medidas neoliberais. Foram eleitos dentro das limitações previstas pelo sistema vigente (criado para manter o status quo, não para transformá-lo), com o voto de uma maioria ainda receosa das ditaduras militares impostas depois dos passados intentos revolucionários. Por conseguinte, foram eleitos para aliviar a situação com programas moderados, não para iniciar processos revolucionários; ou seja, para administrar o governo e não para tomar o poder.2
Daí deriva a expressão, mais literária que científica, de que esses seriam governos pós-neoliberais, mas não pós-capitalistas, ou seja, dirigidos a subsanar os danos econômicos, sociais e morais causados por um neoliberalismo que está em crise, mas sem o respaldo sócio político suficiente para empreender um “salto” ao socialismo. Expressão enganosa se incluir a suposição de que a crise de 2008 liquidou o neoliberalismo, pois embora academicamente desacreditado, ele continua vigente nos organismos e regulações reitoras das relações econômicas internacionais, e na cultura operativa das burocracias públicas e privadas.
Não cabe empreender um projeto mais ambicioso (pós-capitalista) sem contar com as forças populares necessárias para sustentá-lo e defendê-lo. Para superar essas limitações se requer desenvolver uma nova cultura política e mobilizar bases sociais organizadas que pressionem até transbordá-las, o que deve ser articulado através das organizações políticas e da gestão de governo. Isso é objetivamente possível? Até agora essa não foi a experiência predominante, questão que é preciso explicar porque, e discutir como resolvê-la.
Em uma conferência na Universidade de Buenos Aires, Álvaro García Linera assinalou que responder a isso exige identificar as fraquezas desses governos progressistas, a fim de “avaliar bem onde tivemos os tropeços que estão permitindo que a direita tome a iniciativa”, para superá-los e vencer “mediante a mobilização democrática do povo”3. As principais deficiências assinaladas por ele são as seguintes”
Não foi dada a necessária importância à gestão da economia e aos processos de redistribuição com crescimento. Embora devam ser melhoradas as condições de vida do povo e garantir que disponha de condições de satisfazer suas necessidades básicas, tivemos debilidades em matéria econômica ao fazê-lo sem assegurar que o poder político permaneça nas mãos dos revolucionários. Governar para todos não significa tomar decisões que, por satisfazer a todos, prejudiquem a base social que sustenta o processo revolucionário, que são os únicos que o defenderão. O projeto deve ser cumprido sem incorrer em concessões nem prejudicar o setor popular, já que a direita nunca é leal.
Criar capacidade econômica, associativa e produtiva para os setores subalternos é a chave que vai definir no futuro “a possibilidade de passar de um pós-liberalismo a um pós-capitalismo”. Por isso, a riqueza deve ser distribuída com politização social, pois omiti-la implica criar nova classe média com velho sentido comum4. Nisto coincide com Leonardo Boff, que adverte que melhorar as condições de vida das pessoas com um assistencialismo politicamente vazio “criou consumidores em vez de cidadãos conscientes” 5.
García Linera agrega que isto se realizou sem a devida reforma moral, inclusive com tolerâncias diante do velho mal da corrupção. Isso dá à direita a oportunidade de apropriar-se do tema, apesar do neoliberalismo ser “o cúmulo da corrupção institucionalizada”. A corrupção é um câncer que corrói a sociedade, e nós devemos ser exemplo diário de austeridade e transparência.
Para terminar, acrescentou que houve debilidade para impulsionar a integração econômica regional. Embora se tenha avançado na integração política, a econômica é mais difícil, pois cada participante tende a defender seus interesses. Finalmente, chamou a preparar-se mediante a análise e o debate para empreender uma nova onda de conquistas revolucionárias, pois “os revolucionários nos alimentamos dos tempos difíceis, viemos de baixo, e se agora, temporariamente, temos que nos retirar, para isso somos revolucionários”.
As observações de García Linera dão base para começar esta análise, à qual deveremos somar outros aspectos. Entre eles, o da capacidade efetiva que cada governo progressista demonstrou para resolver as velhas travas ao desenvolvimento das forças produtivas, além do esforço para melhorar a distribuição da riqueza.
E, sobretudo, a capacidade de cada movimento progressista de aglutinar o bloco social que no respectivo momento reivindica o interesse geral da nação. Ou seja, que representa os interesses e objetivos compartilhados pela frente ou aliança das classes e frações de classe capazes de romper a ordem vigente e dar sentido à seguinte etapa do desenvolvimento nacional.
Obviamente, este progressismo nasceu das indignações sociais agravadas pelo neoliberalismo e não de algum aumento de preço das matérias primas. A atual depreciação dessas matérias ocasiona problemas aos países que as exportam  (aos seus produtores, seus comerciantes e ao fisco), qualquer que seja o signo político dos respectivos governos. Problema que não elimina, mas redobra as causas geradoras de progressismo, que seguirão ativas em suas velhas e novas formas, que as esquerdas têm que prever.
O tema é oportuno para recordar outro assunto. Um bom aproveitamento da elevação de preço das matérias primas facilitou a vários governos progressistas custear projetos de desenvolvimento, sem exigir maiores contribuições impositivas às diferentes frações da burguesia. Essa prática, de intenção politicamente apaziguadora, permitiu ignorar – ou melhor, postergar – confrontações, mas não ajudou a diversificar e fortalecer a capacidade produtiva de seus respectivos países, nem seu mercado interno, como tampouco criar reservas para quando viessem piores tempos, como aconteceu desde que a crise aflorou em 2008.6
Pelo efeito de sua natureza “pós-neoliberal” e não “pós-capitalista” – e por isso mais assistencialista que revolucionaria – da maior parte dos governos progressistas, algumas ações indispensáveis para assegurar a continuidade do processo, como as necessárias reformas agrárias, trabalhistas e tributárias, deixaram de ser realizadas. Além disso, a maioria tampouco realizou a requerida reforma política e eleitoral, nem a do campo e dos meios informativos. Estas omissões – cometidas por acomodamento ideológico, falta de decisão política ou insuficiente apoio social para superar as travas judiciais ou parlamentares – contribuíram significativamente para desacreditar ou intimidar a liderança progressista e desanimar suas bases de apoio.
A falta dessas reformas enfraqueceu a base social do progressismo. A suposição de que para se reeleger basta “comprar” gratidão popular satisfazendo necessidades coletivas e incrementando o poder aquisitivo, além de desrespeitar os necessitados, foi um fracasso: o consumismo e os shopping centers foram seus maiores beneficiários.
A atual ofensiva da direita evidencia o fiasco da ideia de somar forças mediante a conciliação com elementos da direita econômica e seus representantes políticos. O que faz recordar que o poder do Estado se busca para vencer a classe dominante, não para dormir com ela.
As limitações estabelecidas pelo velho sistema político só podem ser superadas se o processo conseguir formar bases populares que demandem avançar mais e que defendam as iniciativas que desbordem essas limitações. Em um regime democrático isso implica, além do mais, captar novos contingentes eleitorais para ultrapassar as direitas sem incorrer em concessões oportunistas que desdigam o projeto de esquerda. Isso exige somar forças adicionais e sustentar a pressão social, tarefas cuja natureza corresponde mais às organizações  de esquerda do que às instituições governamentais, que legalmente devem servir a toda a sociedade.
A suposição de que avançar depende de sucessivas reeleições dentro do sistema existente subestima a capacidade das direitas e seus mentores estrangeiros. Embora tenham perdido uma ou mais eleições, conservam seu poder econômico, o controle dos grandes meios de comunicação e sua influência cultural. Antes da campanha seguinte, realinham suas ideias e recursos e investem tanto em renovar sua própria imagem como em corroer a imagem moral e política da esquerda que a havia vencido. 7
Não é possível avançar sem reformar profundamente o sistema político para conseguir sua democratização efetiva, posto que o atual modelo de democracia restrita foi instalado para legitimar e reproduzir periodicamente o status quo instaurado pela classe dominante, e não para mudá-lo.

Do ressentimento cego ao neofascismo

Desenvolver um processo revolucionário implica transformar indignações sociais em movimentos políticos; isto requer a formação de novos contingentes de quadros, promover e mobilizar maiores organizações populares e incrementar a pressão social consciente e organizada.
Reconhecer isso é admitir que uma importante porção do povo pobre não responde ao apelo das esquerdas 8. Esse tema precisa ser estudado, porque avançar exige integrar forças adicionais. Ou seja, demanda melhor capacidade para tirar de sua prostração os setores da população pobre com pouca ou deformada consciência de classe, e conseguir que maiores contingentes dessa população enfrentem seus problemas com crescente participação social e política.
Desde sempre, um dos principais desafios da esquerda é atingir a consciência dos explorados e dos marginalizados que deixam de se somar às mobilizações proletárias ou que, pior ainda, deixam-se seduzir pelo histrionismo “antipolítico” da nova direita, enlouquecidos por personagens como Fujimori, Le Pen ou Trump. O fato de que ainda faça falta alcançar essas consciências demonstra que os meios organizativos e de comunicação utilizados para isso não são apropriados.
Após as experiências enfrentadas pelas esquerdas em fins do século XX e da hegemonia liberal, na América Latina a crise cultural e moral avançou mais do que a produção de novas propostas político-ideológicas de esquerda e modos de partilhá-las. Depois de tantos anos de decepções as pessoas estão fartas, sem que isso signifique que já são conscientes de alternativas. A irritação ante a desigualdade, o emprego precário e as carências convivem com o descrédito dos sistemas políticos, partidos e lideranças conhecidas. Além disso, com a sensação de temor disseminada pela frustração de passadas expectativas e a insegurança, nas diversas acepções do termo. 9
Estamos ante uma direita reciclada que agora disputa o campo político com renovados instrumentos, articulada orquestração continental, predomínio mediático massivo e por sua vez segmentado para públicos específicos, e um repertório de consignas esquematizadas com uma brutal simplificação das ansiedades populares. Entre essas, a de apresentar candidatos supostamente apolíticos ou “anti políticos”. A natureza elementar desses clichês facilita penetrar populações já domesticadas pelo “sentido comum” que a classe dominante semeou por décadas entre aqueles que ela explora e marginaliza.
Assim como seus mentores transnacionais, esta direita o faz com clareza de objetivos: não pretende apenas voltar ao Palácio, mas assumir o poder real para eliminar as conquistas que o movimento popular acumulou desde o século passado, e não apenas durante essa onda progressista. No contexto global da crise, o capital transnacional e as burguesias locais têm urgência em recuperar o controle dos recursos de cada país e região, intensificar a exploração do trabalho e incrementar a taxa de lucro de seus capitais, e sua acumulação.
Nesse contexto, a direita busca manejar a seu favor as decepções e inconformidades sociais existentes, e seduzir muitos dos “seres humanos lançados na marginalidade, na ignorância e no desespero, para tentar fazer deles uma força de choque selvagem”10 contra os cidadãos conscientes, e não apenas no plano eleitoral. Esta convocação à coação e à violência é um dos traços do fascismo como instrumentos político da estratégia da contra revolução preventiva.

Da situação crítica ao projeto crítico

A consciência e a solidariedade de classe não se formam espontaneamente nem com rapidez. Ao desgosto coletivo é necessário induzir certo sentido. No seio do povo explorado e ressentido amadurece uma transição cultural que é preciso alentar e dar-lhe um propósito, já que deixada à espontaneidade pode extraviar-se. Na contramão da ofensiva diária que a reação lança sobre essa massa social, para impregná-la com uma subcultura funcional aos seus interesses, corresponde promover a contracultura expressiva das reivindicações e expectativas populares.
A observação de Lenin segundo a qual “a cultura dominante é a cultura da classe dominante” não significa que a burguesia deseje que cada trabalhador pense como um empresário, mas que essa cultura estabeleça os respectivos papéis sociais: o burguês educa seu filho como um executivo sagaz, e ao operário e sua prole como servidores dóceis e cumpridores. Na contramão, a contracultura popular deve impulsionar cada trabalhador – e cada marginalizado – a reagir como cidadãos conscientes de seus direitos e de seus deveres de solidariedade.
É com base nisso que se forma a independência crítica do pensamento popular ante a agenda temática, as interpretações e mitos dos grandes meios e demais instrumentos de inseminação ideológica da classe dominante. Desenvolver essa contracultura possibilita que os explorados se emancipem da cultura hegemônica opondo a ela seus próprios temas e valores. Para os grupos envolvidos, o processo vai de uma percepção da realidade objetiva de sua atual situação até uma projeção subjetiva de sua própria força social.
Ser parte da população menos favorecida e inconformada não necessariamente leva cada um a buscar alternativas revolucionárias. Até pode induzir ao ressentimento depredador, ao fiasco moral e a saídas individuais de curto prazo, principalmente ao faltar uma opção confiável e factível. A contracultura popular aponta a superar solidariamente as rotas do delito e da degradação, do oportunismo político ou da alienação evangélica, funcionais ao sistema estabelecido, que o neoliberalismo acentua. Para escolher uma opção moral e politicamente acertada é preciso ter acesso a uma proposta crível e integradora, que promova a atuação comum para fins de ampla projeção.
Para cada sujeito – individual e coletivo – a questão é “como passar de uma situação crítica a uma visão crítica e, em seguida, alcançar uma tomada de consciência”11. Isso implica enfrentar a dura existência da pobreza e da injustiça como um fato real, e ao mesmo tempo como um paradoxo: o de aceitar esta realidade para poder sobreviver nela, mas ao mesmo tempo, dar-se capacidade de resistir e poder pensar e atuar para transformá-la, lutando coletivamente por outro futuro. Propiciar que este salto se realize demanda desenvolver uma pedagogia popular, para reconstruir ideias e propostas, bem como formas de organização que ajudem os diferentes setores do “proletariado” a assumir essa visão e projeto confiáveis. 12
A cultura dominante dispõe do poderoso suporte dos meios de comunicação de massa da classe que os controla. No entanto, para superá-la não basta criar meios alternativos nem sonhar em dispor de instrumentos comparáveis aos dos burgueses. A criatividade popular deve aprender a contrapor suas próprias mensagens às dos grandes meios, sem concessões a sua cultura, mas sim a partir de sua própria contracultura.
Se uma e outra vez fazemos a mesma coisa, recaímos em iguais resultados. Se as esquerdas insistem em comunicar-se nas formas de sempre com os setores do “proletariado” que não escuta seus apelos, isso prova que é necessário criar outros modos de fazer isso, que provavelmente não serão iguais para cada distinto sector.
A esse respeito, João Pedro Stédile diz que o primeiro passo é impulsionar aquilo “que eleve o nível de consciência política e ideológica de nossa base social”, pois urge “formar grandes contingentes de militantes da nova geração jovem que foi confundida pelo neoliberalismo e pelos meios de comunicação burgueses”. E agrega que isto exige produzir novas formas de comunicação de massa, nas quais compartilhar e “aprofundar o conhecimento e articular forças em torno de um novo projeto de desenvolvimento popular”.
Stédille agrega que igualmente “devemos construir novos modos de luta de massas”, pois “as formas clássicas como [as] greves, paralisações ou marchas são insuficientes, e por isso necessitamos ser criativos”, pois “se requer desenvolver novos instrumentos de luta que motivem as pessoas, aglutinar a juventude e dar um sentido de esperança a nossas lutas”. Por isso também “necessitamos organizações políticas e sociais de novo tipo”, e para consegui-lo “há que trabalhar sem fórmulas ou modelos predeterminados”.13

Quando o progressismo existe

Criar outros tipos de organizações e formas de luta envolve um importante componente ético, essencial de toda agrupação de esquerda. Se uma liderança propõe transformar o país, mas admite arranjos oportunistas, como negociar condutas políticas com benfeitores financeiros, deslizar para o centro político ou tolerar condutas moralmente duvidosas de seus dirigentes e aliados, destrói a credibilidade que lhe permite permanecer vigente. A confiabilidade enganosa leva ao ceticismo e em seguida à desconfiança popular que conclui que “estes são iguais aos outros”.
Esse fenômeno é assimétrico. Se um partido liberal admite tais atuações ninguém se surpreende, pois sua moralidade nada mais é do que a do regime que representa. Mas se isso ocorre em uma organização que propõe transformar o país e dar a ele outro horizonte ético, aceitar atuações que recordam o repertório moral oligárquico não é só um contrassenso, mas uma aberração. Para a militância revolucionária ser consequente com determinada ética – por cujos princípios está disposta a perder a liberdade e até dar a vida – isso é definitivo. E também para a credibilidade e confiança cidadãs.
Outros vêem da mesma maneira. Ao dirigir-se ao Encontro Mundial de Movimentos Populares, o Papa Francisco destacou que “aqueles que optaram por uma vida de serviço têm uma obrigação adicional que se soma à honestidade com a qual qualquer pessoa deve agir na vida. A vara é mais alta; há que viver a vocação de servir com um forte sentido de austeridade e humildade. Isto vale para os políticos, mas também vale para os dirigentes sociais e para nós, os pastores”. 14
As esquerdas, tanto mais, têm a missão de realizar-se como referente ético e reserva moral do país. Sua consistência cívica não é só um dever de consequência com os valores que a definem, mas de confiabilidade. E também como condição para articular-se com outros setores de similar firmeza ética. Não é em vão que os meios da classe dominante são infatigáveis caçadores de reais ou verossímeis fraquezas da esquerda, porque estas a desqualificam como tal.
Quando os jovens – entre outros grupos – não escutam o chamado das esquerdas, é um erro prejulgar que são social ou moralmente irresponsáveis, ou que foram ganhos pela direita. É mais provável que expressem um rechaço pela política e pelos políticos conhecidos, que não correspondem  a suas expectativas. É uma atitude crítica diante do status quo e se não sabemos orientá-la poderá tomar rumos depredadores. Em vez de deplorar sua atitude é preciso examinar se o problema vem de nossas deficientes formas de interagir com eles, e de oferecer exemplos que permitam ganhar sua confiança.
Paradoxalmente, embora sejamos vítimas de regimes de democracia restrita, hoje são as esquerdas e o progressismo que aparecem como defensores dos princípios e instituições democráticas. Mas essa institucionalidade ainda é aquela que anteriores governos conservadores implantaram para manter e reproduzir o velho país injusto, e impedir a efetiva democratização do sistema. Com seu nome largamente vilipendiado por exploradores e oportunistas, a democracia já não tem o prestígio que dava a convocação a sua invocação. Defendê-la só tem sentido se for exigindo a reforma política que lhe dará sentido e projeção popular e participativa.
Isto exige esclarecer qual é o projeto de novo país que as esquerdas e o progressismo propõem, e exigir que suas demais ações sejam consequentes com esse compromisso. Porque na análise dos acontecimentos que nos rodeiam, tanto como na produção teórica que aportamos, devemos renovar meios eficazes para converter indignação social em militância política, não apenas para derrotar a ofensiva contra revolucionária mas para transformar a nação, como as duas faces do mesmo processo.
O que, por sua vez, demanda intercambiar ideias com os outros grupos sociais inconformados e progressistas, para traduzir essas ideias em força política, fazendo com que as pessoas as incorporem, assim como também reclama formar novos militantes nos âmbitos tanto do trabalho como da convivência comunitária, onde igualmente acontecem os dramas sociais.
O progressismo e as esquerdas só são o que dizem ser enquanto realizam e renovam capacidade para formar novos contingentes sociais e ajudá-los a constituir melhores modos de organização e participação. Enquanto ampliam capacidade para interagir – aprender, aportar, cooperar – com os setores afins em umas ou outras reivindicações comuns. Enquanto demonstram capacidade para contribuir à articulação e ampliação de movimentos e frentes nacionais – junto a outras classes e frações de classes – conducentes a conformar o bloco social das forças que compartilham a vontade e o projeto de construir um novo país. Projeto e bloco que derrote a ofensiva de direita no campo das ideias e no da prática política, ao coordenar a parte mais progressista da nação, entendida como âmbito da unidade e luta de classes na produção do seguinte acontecer histórico.
Na medida em que expressa a esse bloco social e seja capaz de aportar contingentes e iniciativas adicionais, o progressismo existe, E quando deixa de fazê-lo, deve ser sacudido e renovado, Porque a luta continua.
*Nils Castro é escritor e catedrático panamenho. Colabora com a Revista Diálogos do Sul
 

  1. 1. A história latino-americana do século XX recorda sucessivos movimentos desse gênero, com as particularidades de cada época e região. Entre eles, os relacionados com as revoluções liberais, a revolução mexicana, o sandinismo, as revoluções guatemalteca e boliviana, as revoluções cubanas de 1933 e 1959, com processos associados ao calvinismo, o primeiro aprismo, o movimentismo boliviano, a algumas expressões do peronismo e do trabalhismo brasileiro, o torrijismo, etc.
  1. 2. De governos constituídos dessa forma não cabe esperar atuações comparáveis às dos provenientes de uma revolução. Em 1917, quando da revolução russa, em 1959 com a cubana ou em 1979 com a nicaraguense, o exército, a polícia e as instituições básicas do Estado, e seus operadores, debandaram. Os líderes revolucionários reorganizaram o Estado segundo seus respectivos projetos, sem ter que negociá-los com o regime anterior.
  1. 3. Na “La revolución es continental o mundial o es caricatura de revolución”, conferência proferida em 20 de setembro de 1016. Ver http://www.marcha.org.ar/garcia-linera-larevolucion-continental-.mundial…
  1. 4. García Linera define sentido comum como os conceitos íntimos, morais e lógicos, com os quais a pessoa organiza sua vida.
  1. 5. “Dez lições possíveis após a destituição de Dilma Rousseff”, em boffsemanal@servicioskoinonia.org, de 25 de setembro de 2016.
  1. 6. Nesse contexto se costuma criticar o extrativismo atribuído aos governos progressistas. Embora seja deplorável que um governo de esquerda admita tais práticas, essa crítica camufla o fato do problema vir do capitalismo “selvagem” e dos regimes conservadores, e que foi exacerbado pelas políticas neoliberais, ainda antes dessa onda progressista. Pelo contrário, o progressismo geralmente procurou submeter essas atividades a melhores regras sociais e ambientais.
  1. 7. Disso já falei anteriormente e não faz falta repetir-me aqui. Ver “Una coyuntura liberadora… ¿y después?” em Rebelión de 23 de julho de 2009, “Una liberación por completar” em Alai de 17 de agosto de 2009 e, em particular, “¿Quién es la “nueva” derecha?” em Alai de 14 de abril de 2010 e “Rebelión del siguiente día”.
  1. 8. Por exemplo, na iminência do golpe parlamentar no Brasil, Lula da Silva assinalou que enquanto uma parte da população se manifestava, outra ficava vendo televisão. Esse tema requer um exame, porque avançar demanda integrar forças adicionais.
  1. 9. Como incerteza e insegurança, sobre a subsistência, a integridade pessoal e o futuro pessoal e familiar, sobre as crenças e a confiança cívica e política, sobre a convivência comunitária, sobre a sobrevivência do país e do mundo, etc.
  1. 10. Ver Luis Bilbao, “América Latina no gira a la derecha”, em ALAI, América Latina em movimento, 11 de fevereiro de 2010.
  1. 11. Ver Milton Santos, Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Ed. Record, Rio de Janeiro, 2007, p. 116 (original em português, cursivas de NC).
  1. 12. Uma das tarefas de toda esquerda é desenvolver essa pedagogia, que na América Latina teve valiosos precursores, desde os tempos de Paulo Freire.
  1. 13. Ver “Los desafíos de los movimientos sociales latinoamericanos”, América Latina en movimiento, Agencia Latinoamericana de Información (http://alainet.org), 4 de dezembro de 2006.
  1. 14. Discurso do Papa Francisco no Encontro Mundial de Movimentos Populares, em 5 de novembro de 2016. Ver http://movimientospopulares.org/el-discurso-completo-de-papa-francisco-a….

*Colaborador de Diálogos do Sul, da Cidade do Panamá


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.
Nils Castro Um dos mais prestigiados intelectuais da região. É autor do livro “As esquerdas latino-americanas em tempo de criar”

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