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Utopia comunista

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

Liam Barrington-Bush e Jen Wilton*

marinaleda-mapa-nytVilarejo com pouco mais de 2.700 habitantes no Sul da Espanha tornou-se referência por governo coletivo e participação ativa da população na resolução dos problemas da cidade, sem a presença da polícia. Uma verdadeira “Utopia Comunista”.

No sul da Espanha, a rua é a sala de estar coletiva, onde vizinhos se juntam para conversar sobre os acontecimentos do dia até tarde da noite. No verão, o ca­lor chega facilmente a superar 40 graus centígrados e o cheiro de frutos do mar emerge de cozinhas e restaurantes à me­dida que começa a se aproximar o horá­rio tardio do jantar.

rosto-de-Che-Guevara_Rural-CA cena acima descreve bem Marinale­da, na região de Andaluzia. A princípio, a comunidade não se distinguiria de vá­rias outras localidades vizinhas nas mon­tanhas de Sierra Sur, no Sul do país, não fosse por alguns sinais reveladores: os nomes de suas ruas (Ernesto Che Gueva­ra, Solidariedad e Praça Salvador Allen­de, por exemplo); o grafite (foices e mar­telos desenhados à mão ao lado de “As” envoltos em um círculo); ou o rosto enor­me de Che adornando a parede externa do estádio esportivo local.

Farol de esperança

Marinaleda vem sendo chamada de “utopia comunista” da Espanha, embora a variante local tenha pouca semelhança com o modelo soviético comumente as­sociado à frase. O tecido social da cida­de tem sido costurado de modo muito di­ferente do restante do país desde a que­da da ditadura franquista em 1975. Uma fábrica de azeite de oliva de propriedade cooperativa, casas construídas pela e pa­ra a comunidade e um famoso saque de um grande supermercado, liderado pelo ex-prefeito da cidade, em que o total ar­recadado foi doado para depósitos comu­nitários de alimentos, são alguns dos fa­tos que ajudaram a posicionar Marinale­da como um farol de esperança.

A economia espanhola continua em sua derrocada pós-2008, com a taxa na­cional de desemprego a 26% e metade dos jovens sem conseguir arranjar tra­balho. Ao mesmo tempo, Marinaleda se orgulha de manter um quadro modes­to, mas constante de empregos, no qual a maioria das pessoas tem pelo menos al­gum trabalho e os que estão desemprega­dos possuem uma forte rede de assistên­cia para se manter.

Ação direta

marinaleda copyMarinaleda tem uma moeda raramen­te encontrada, a não ser em grupos ati­vistas ou comunidades indígenas que lu­tam contra projetos destrutivos de de­senvolvimento: a moeda da ação direta.

Em vez de se apoiar exclusivamente em dinheiro para que as coisas funcio­nem, os marinaleños vêm entregando seu sangue, suor e lágrimas coletivas pa­ra a criação de uma gama de sistemas al­ternativos neste canto do mundo.

Quando o dinheiro não está imedia­tamente disponível, os marinaleños se apoiam uns nos outros. Às vezes, isso significa ocupar coletivamente terras de propriedade da aristocracia andaluza e fazer com que sejam utilizadas a servi­ço da cidade; em outras, significa sim­plesmente compartilhar a carga da co­leta do lixo.

Assembleias

Mesmo operando com certo grau de autoridade central, o conselho municipal entregou o poder nas mãos das pessoas a quem serve. Assembleias gerais são con­vocadas regularmente para que os mora­dores da cidade possam tomar parte das decisões que afetam suas vidas. As as­sembleias também criam espaços em que as pessoas possam se unir para organizar o que a comunidade necessita, por meio de ação coletiva.

“A melhor coisa que temos aqui é a as­sembleia geral”, diz Manuel Gutierrez, veterano servidor público no conselho da cidade. “A assembleia é um lugar para as pessoas discutirem problemas e encon­trar soluções”, diz, observando que mes­mo pequenos delitos são analisados cole­tivamente via assembleia, já que a cidade não tem sistema judicial ou polícia desde que o último policial local se aposentou.

Em seu período como prefeito, Juan Manuel Sánchez Gordillo [que adminis­trou a cidade entre 1979 e 2014] conse­guiu alavancar considerável apoio finan­ceiro do governo regional – um feito que Gutierrez atribui à trajetória coletiva de ação direta da cidade. “Se você vai em frente com o apoio do povo, isso é muito poderoso”, diz ele.

Como resultado, a pequena cidade se orgulha de ter amplas instalações espor­tivas e um jardim botânico lindamen­te conservado, bem como uma gama de necessidades mais básicas. “Para um pe­queno vilarejo com pouco mais de 2.700 pessoas, temos uma porção de instala­ções”, diz Gutierrez.

Ocupações

Em 1979, Sánchez Gordillo foi elei­to prefeito da cidade pela primeira vez. Ele comandou uma ampla campanha pa­ra mudar o rumo de Marinaleda, que co­meçou com a ocupação de terras subuti­lizadas. Envolvido na “lucha” desde o co­meço, Manuel Martín Fernández expli­ca como a comunidade decidiu, por meio do processo de assembleia geral, que al­go precisava ser feito para conter o êxodo de moradores da cidade. Eles ocuparam um reservatório próximo do vilarejo pa­ra convencer o governo regional a conce­der-lhes água suficiente para irrigar uma extensão de terra.

Depois que tiveram sucesso com es­sa ação, passaram, então, a ocupar 1.200 hectares da terra recentemen­te irrigada, que na época era proprie­dade de uma família aristocrática. Em 1991, o lote foi oficialmente expropria­do e entregue para uso local. “Levamos 12 anos para conseguir as terras”, ex­plica Martín Fernández, definindo a vi­tória como “uma conquista”.

Hoje, extensos campos de olivais, alca­chofra, feijão e pimenta formam a espi­nha dorsal da economia local. A terra é administrada coletivamente pela coope­rativa El Humoso e uma fábrica de enla­tados foi montada na periferia da cida­de. Como o ex-prefeito Sánchez Gordillo contou ao jornalista britânico Dan Han­cox, autor de um livro sobre Marinaleda, “nosso objetivo não era obter lucro, mas empregos”, explicando por que a cidade escolheu priorizar culturas de uso inten­sivo de mão de obra para criar mais em­prego para os moradores.

Emprego sazonal

Como a maior parte dos empregos agrícolas, seja nos campos ou nas fábri­cas, o trabalho é sazonal e varia de ano para ano. Mas ao contrário de muitas pe­quenas cidades agrícolas, Marinaleda di­vide o trabalho entre as pessoas que pre­cisam dele.

Dolores Valderrama Martín sempre viveu em Marinaleda e trabalha na fá­brica de enlatados Humoso há 14 anos. Do escritório ela explica que se 200 pes­soas estão procurando trabalho, mas a empresa só precisa de 40 trabalhado­res, todas são admitidas. “Formamos grupos de 30 a 40 pessoas, e cada gru­po trabalha por dois dias.” Mas ela aler­ta: “Quando não há nenhum trabalho, ficam todos desempregados, como em qualquer outro lugar”.

Grande parte dos moradores da cida­de critica a relativa falta de trabalho, mas a rede de seguridade social erguida com base nos princípios de ação direta e ajuda mútua faz com que, ao contrário de ou­tras partes do país, dois meses de salário sejam suficientes para manter o morador à tona durante o ano.

Moradia

A abordagem da cidade para a habi­tação é um dos exemplos mais claros de como o esforço coletivo pode preencher o vácuo deixado por uma economia es­tagnada.

Para a maioria das pessoas em sua pri­meira incursão no mercado imobiliário, o dinheiro costuma ser o maior obstá­culo. Dar entrada em um imóvel signifi­ca sempre uma soma considerável, mes­mo em mercados relativamente estáveis. Em Marinaleda, graças à combinação de subsídio estatal em materiais de constru­ção para moradias, mão de obra sem cus­to para a construção e terras dadas pela cidade, a habitação tem sido parcialmen­te removida do livre mercado. Em vez disso, membros da comunidade se unem com os planos arquitetônicos entregues pelo conselho para construir um bloco de casas, que se tornam parte de uma coo­perativa habitacional. Os moradores pa­gam prestações mensais de 15 euros [cer­ca de 48 reais] por cada unidade.

Enquanto o capitalismo enquadra nos­sos relacionamentos em uma série de transações econômicas de interesse indi­vidual, Marinaleda se apoia em um mo­delo de ajuda mútua, já que os morado­res trabalham juntos para satisfazer ne­cessidades compartilhadas, com bem menos dinheiro circulando.

A ação direta na cidade está enraizada em interesses comuns e explora aspectos práticos do que precisa ser feito, com ba­se em quem está lá para fazer, eliminan­do a divisão consumidor-provedor. Isso faz com que o dinheiro se torne um in­termediário desnecessário, já que aque­les que querem que alguma coisa seja fei­ta e os que as fazem se tornam um só.

Embora Marinaleda tenha suas fa­lhas, ela nos mostra que modelos econô­micos alternativos não só são possíveis como já existem. Em um grafite na prin­cipal rua da cidade, figura o desenho de um filtro de sonhos sobre uma foice e um martelo. A mensagem que o acom­panha nos instiga: “Agarre seus sonhos – a utopia é possível”.

Tradução: Maria Teresa de Souza.

Matéria original publicada na Contributoria, revista digital mensal com foco em direitos humanos


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
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