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Inglaterra pretede deixar a União Européia. E nós com isso?

Paulo Cannabrava Filho

Tradução:

Inglaterra pretende deixar a União Europeia e tem aprovação de boa parte da população em plebiscito. Se sair, deixa de pertencer a um mercado comum europeu que tem garantido sua sobrevivência para ser uma mera colônia dos Estados Unidos. Se não sair, tampouco muda muito essa situação de cada vez maior dependência e submissão a sua ex-colônia.

Paulo Cannabrava Filho*

Foto: Glória Fluguel
Foto: Glória Fluguel

A velha Inglaterra, saindo ou permanecendo no Tratado de Maastricht de 1992 será, daqui para a frente, uma cunha fincada no tronco da UE, forçando seu rompimento. O fim desse sonho acalentado por muitos séculos, tentado muitas vezes pela força dos exércitos e que esteve quase a ponto de consolidar-se sem utilizar as armas.
images-cms-image-000484575A Europa volta a viver uma situação muito parecida com a que viveu na primeira metade do século passado. Situação de crise extrema, porém, com a diferença de não ter as Panzergrenadier invadindo o território. No lugar da Wehrmacht e da Gestapo tem agora os serviços de inteligência dos Estados Unidos, o comando das grandes corporações transnacionais e os crupiês do cassino global. No lugar das divisões de blindados de Hitler, tem agora os tratados firmados com Estados Unidos, a começar pela OTAN e finalmente, para coroar a submissão, o Tratado de Comércio e Investimento firmado pela UE com os Estados Unidos.
No tempo da expansão da hegemonia alemã propiciada por Adolf Hitler, a América Latina também era um alvo cobiçado e era intensa a presença dos agentes alemães por todo o continente. Hitler fracassou nessa tentativa e quem ocupou os espaços neste hemisfério foram os Estados Unidos. Terminada a guerra, a América Latina ficou refém dos EUA. Aí começou nossa desgraça. Aquele que contrariasse os desígnios do destino manifesto, do sonho de uma América indo do Canadá à Patagônia era invadido, ou ficava à mercê das forças armadas locais, transformadas em tropas pretorianas guardiãs dos interesses do império.
Triste sina a dos povos latino-americanos, condenados a uma recolonização através de uma divisão de trabalho imposta pela potência dominante. Papel periférico de vendedor de matérias primas e importador de manufaturados.
Quando houve reação a essa imposição, houve desenvolvimento, evolução em benefício dos povos.  Na contramão dos interesses hegemônicos atuaram forças internas e organismos multinacionais dedicados a convivência entre os povos, a construção da paz e do desenvolvimento através de uma Nova Ordem Econômica Mundial. A Cepal teve um papel fundamental apontando caminhos para o desenvolvimento com certa autonomia aos países latino-americanos. E houve governos que, apoiados por partidos e movimentos populares, conseguiram avanços extraordinários ao darem feição de Estado a seus países e impulsionado projetos de desenvolvimento. Os casos mais emblemáticos ocorreram na Argentina e no Brasil.
A América Latina caminhou em meio à turbulência da contradição entre desenvolvimento autônomo com soberania e/ou dependência com entrega dos centros de decisão e das riquezas nacionais.
Os anos 1980, a partir do Consenso de Washington, pode ser tomado como marco de uma nova etapa no processo socioeconômico da América Latina. É o começo da ditadura do capital financeiro que começa a ocupar todos os espaços, implacavelmente, até chegar a situação em que estamos hoje.
Lula –“esse é o cara”, disse o presidente Obama, eufórico-. Claro, Lula conseguiu executar o projeto neoliberal sem resistência, ou melhor, com uma pretensa conciliação de classe. Teve muita sorte enquanto durou o boom das commodities e sobravam recursos nos bancos e financeiras globais. Até que os preços das matérias primas despencaram e a banca quebrou.
Paradoxalmente, o setor do petróleo estava no rumo certo. O pré-sal é um sucesso. Em tempo recorde já produz um milhão de barris/dia. Sucesso também a decisão de utilizar equipamentos produzidos nacionalmente, movimentando um parque industrial de alta tecnologia.
Negligenciou-se porém o setor industrial como um todo. Hoje, o parque fabril brasileiro é menor do que era nos anos 1970. E pior, todo o setor mais dinâmico, aquele que produz maior e mais rápido retorno ao capital, está em mãos estrangeiras. E o processo de desindustrialização e desnacionalização da indústria continua.
Negligenciou-se também o setor extrativo mineral à mercê de um saqueio continuo das nossas riquezas. Paralelamente, a agricultura e a pecuária extensiva, bem como a agroindústria, em mãos de megacorporações transnacionais, se expande predatoriamente, matando rios, florestas e gentes sem o menor controle.
O chamado desenvolvimentismo não mudou essa situação. O resultado mais visível é uma dívida pública de 70 por cento do PIB e o pagamento de juros que consomem 47 por cento do orçamento do país.
Essa é a realidade não só do Brasil como de outros países que apesar de tudo convivem com blocos regionais que apostam em outros caminhos para um desenvolvimento. Manter essa porta para um desenvolvimento sustentável é para todos nós muito importante.
O Mercosul, por exemplo, explica a Cepal, é um processo que busca interdependência através da liberalização comercial em geral, porém sem pensar numa divisão de trabalho fundada na complementaridade. Ademais, negligenciado pelos governos, ficou à mercê dos interesses das grandes empresas, a maioria transnacionais. Parece que a vocação hegemônica das oligarquias caboclas ou crioulas impõe a manutenção do status quo por onde seja. Não conseguem ver além do papel do continente como provedor de matérias primas, só que hoje, também essas são propriedades estrangeira. Da mesma forma, toda cadeia produtiva em escala, capaz de atender a demanda interna e ter saldos exportáveis também está em mãos estrangeiras.
Constata-se, hoje, que o progressismo é apenas uma variável do neoliberalismo, principalmente no Brasil e na Argentina.
Mais avançada que a do MERCOSUL é a proposta da Alba-TCP. Ela põe ênfase na colaboração e complementação política, social e econômica entre as nações. Proposta por Venezuela e Cuba, na América do Sul só Venezuela, Equador e Bolívia integram. Na América Central, está a Nicarágua e no Caribe, Cuba, Antigua e Barbuda, Dominica, Granada, San Cristobal e San Vicente e Granadinas. A Alba tem como compensar as assimetrias seja através de fundos compensatórios ou os acordos comerciais.
Na contramão desses espaços e esforços de integração, os EUA meteram uma cunha no tronco latino-americano, integrador-bolivariano, com a Aliança para o Pacífico, que tem a adesão do Chile, Peru, Colômbia e México.
Os Brics constituem das mais importantes associações com objetivo claro de propiciar o desenvolvimento para os países membros. Esta prevê, além de fundos compensatórios, um Banco de Desenvolvimento.
E há também a UNASUL, criada em 2008 para substituir o “ministério de colônia dos EUA”, como era chamada a velha OEA nos anos em que referendava as intervenções de Estados Unidos na Nossa América.
A grande tarefa para a Unasul, ou melhor, seu grande desafio, é criar um mecanismo de defesa que livre o continente das garras do TIAR e da JID, o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca e a Junta Interamericana de Defesa, instrumentos subordinados ao Pentágono, na realidade o comando das tropas pretorianas de ocupação do império.
Agora estamos chegando ao ponto central desta reflexão. Esses antecedentes são necessários para entender o para onde vamos, ou melhor, para onde nos estão levando.
Em 2015, o Senado de EUA aprovou a Lei de Promoção do Comércio, que da “via rápida” para Washington negociar tratados comerciais. Tratados como o TTP, já com onze países: Austrália, Brunei, Canadá, Chile, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Singapura e Vietnã.
Mais recentemente, o Tratado de Comercio e Investimento entre a UE e Estados Unidos. Aqui é que a porca torce o rabo. Já denunciamos que isso foi negociado na calada da noite, entre Bruxelas e Washington, reveladas pelo WikiLeaks.
Todos esses tratados firmados com Estados Unidos têm cláusulas que atam os países às regras do tratado, mesmo que violem as leis internas e mesmo a soberania.
No TCI, por exemplo, há cláusula que torna inamovível qualquer liberação acordada, ou seja, liberou hoje, nunca mais pode voltar atrás.
As prestações de serviço também ficam condicionadas às regras dos tratados.
As divergências entre a UE e EUA serão reguladas e arbitradas por tribunais próprios, excluindo as competências e as legislações de cada país.
Com relação aos fluxos de investimentos, são para favorecer as transnacionais e as soluções de divergências devem privilegiar as empresas. Praticamente elimina a Justiça dos Estados.
A Europa, como já ocorre nas Américas, terá que aceitar os agrotóxicos da Monsanto e os pequenos agricultores que garantem segurança alimentar na França, por exemplo, estão ameaçados.
Esses tratados, seja Aliança do Pacífico ou o TCI entre a União Europeia e Estados Unidos, têm algo em comum que é o de subordinar as regras do comércio e da prestação de serviços às normas estabelecidas nos acordos. São tratados que institucionalizam a dependência e a subordinação ao poder das transnacionais e dos bancos e financeiras globais, tudo a serviço da expansão da hegemonia estadunidense.
A saída do Reino Unidos da União Europeia ao mesmo tempo em que se firma o tratado de comércio e investimento entre a UE e EUA situam-se no mesmo contexto em que com os tratados Transpacífico e as bases militares Estados Unidos vão cercando Rússia, China e Índia, principalmente a Rússia.
Na Nossa América, a vitória de Macri na Argentina, de Kuczynski no Peru, assim como a deposição de Dilma no Brasil, servem aos mesmo propósitos. Decretos e discursos deixam claro a disposição de contrariar os tratados regionais e favorecer acordos com EUA. O que era uma cunha espetada a ameaçar os esforços de unidade e integração latino-americana agora é um imenso bulldozer preparado para derrubar tudo quanto se construiu.
É de uma torpeza que chega à imbecilidade pensar que o modelo de subordinação possa resolver as necessidades do país, Se vê na Europa, se vê entre nossos vizinho que só agravará a dependência e com ela a brecha entre os ricos, cada vez mais ricos, e o pobres, cada vez mais pobres, a ausência de moradias, de emprego, de boas escolas e serviços de saúde.
Reações possíveis, claro que há e está havendo. Porém, é preciso que não se desperdice munição. É uma guerra de guerrilhas contra a super-potência mais armada do planeta e suas tropas pretorianas em cada país. Mas é uma guerra que se há de travar principalmente no campo das ideias.
É preciso ter clareza sobre quem é o inimigo e o que ele pretende, quem são seus agentes e como atuam. Mais que tudo, é preciso ter um projeto de nação, discutir que Estado queremos, que democracia queremos, como construir essa democracia. Urge recuperar o sentido de classe para o movimento sindical para que se incorpore ao lado das organizações do povo na construção de um projeto de desenvolvimento alternativo ao modelo atual. O que defendemos sempre é que é a soberania que está ameaçada, é preciso formar uma grande frente de salvação nacional. Como recuperar o poder sobre os centros de decisão e construir uma nação soberana que privilegie sobretudo as pessoas e a natureza. Não nos faltam recursos, o Brasil é infinito e temos gente para isso.
*Jornalista, editor de Diálogos do Sul
 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1967. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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