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FC Leite Filho*
Nos diversos especiais que a mídia vêm publicando sobre os 50 anos do Golpe de 64 houve poucas e desprezíveis alusões à participação determinante das próprias empresas jornalísticas, dos Estados Unidos e das transnacionais.
As abordagens se concentram em desqualificar o presidente constitucional João Goulart e o líder nacionalista Leonel Brizola, por insistirem estes na implantação de um modelo de desenvolvimento com inclusão. Tal modelo, logicamente, contrariava os interesses dos trustes americanos, afetando seus lucros exorbitantes e remessas ilegais de divisas para o exterior. Como são até hoje, seus verdadeiros sustentáculos, e por isso entraram de sola no Golpe, que iniciou o ciclo das ditaduras militares mais violentas no hemisfério, os grandes jornais TVs e rádios, apelam para o velho truque de confundir, moldar e envenenar a opinião pública contra os líderes progressistas.
Os fatos, não obstante encontram-se devidamente documentados, inclusive em arquivos americanos, e mostram uma situação bem diferente, como analisa o politólogo brasileiro Luiz Alberto Moniz Bandeira, em seu livro recentemente reeditado – e ampliado – “O governo João Goulart Goulart – As lutas sociais no Brasil – 1961-1964?. Segundo o livro, o governo Goulart, que, nos dias finais, exibia uma popularidade de 76%, foi deposto por um choque de desestabilização comandado pela administração americana, através de vultosos financiamentos à mídia, empresariado, parlamentares, governadores e sindicatos, tendo a assessorá-lo um exército de agentes da CIA, os quais, totalizavam 4.968, só em 1962, dois anos antes do desfecho.
Como sempre calcado em documentos e seus devidos números e datas, o também historiador Moniz Bandeira constata: “Esses empresários articulavam o radicalismo de direita e patrocinaram a criação e o funcionamento de entidades como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), em estreito contato com a CIA, que lhes forneceu orientação, experiência e mesmo recursos financeiros, abundantemente, no esforço de corrupção e intrigas, para influir nas eleições, impor diretrizes ao Congresso, carcomer os alicerces do governo e derrocar o regime democrático”.
O IPES, segundo o politólogo, era uma entidade sofisticada, “pretensamente científica”, cuja influência “estendeu-se aos jornais e outros órgãos de divulgação, sustentada não apenas pelas verbas que espalhava, diretamente, como pelo interesse das agências de publicidade, manipuladoras das contas das grandes empresas estrangeiras”.
Já o IBAD criou, em 1962, um ano eleitoral, a Ação Democrática Popular (ADEP), intervindo “abertamente na campanha, subvencionando candidaturas de elementos direitistas, que assumiam o compromisso ideológico de defender o capital estrangeiro e condenar a reforma agrária bem como a política externa independente do governo brasileiro”
O mesmo Instituto também se transformou “em uma holding, coordenando várias subsidiárias, entre as quais se destacavam a ADEP, a Ação Democrática Parlamentar (ADP), a Campanha da Mulher Democrática (CAMDE) e a Frente da Juventude Democrática (FID)”. Seus tentáculos alcançaram o proletariado, com o esforço de constituição da Resistência Democrática dos Trabalhadores Livres (RESDETRAL), no Rio de Janeiro, e do Movimento Sindical Democrático (MSD), em São Paulo, que mantinham estreitos contatos com a AFL-CIO (central operária dos EUA) e funcionavam com base nas Confederações dos Trabalhadores no Comércio nos Transportes Terrestres”.
O governo dos Estados Unidos é igualmente citado pelo historiador, hoje radicado na Alemanha, como tendo transformado seus consulados em todo o Brasil “em bases de operação da CIA”: “O Itamaraty” – diz ele – “sabia que Harry Stone, representante da Motion Pictures, era agente da CIA, da mesma forma que Douglas MacLean, cônsul dos Estados Unidos no Recife. Segundo Joseph A. Page, entre 1960 e 1961, um dos três vice-cônsules naquela capital era agente da CIA, número esse que aumentou para dois, em 1962, e dobrou para quatro, às vésperas da queda de Goulart. O mesmo se passava nas outras cidades importantes, como Porto Alegre, de onde Brizola pediu a expulsão do cônsul Sharp, acusando-o de intrometer-se na política nacional”.
Agentes da CIA
A análise de “O Governo João Goulart” é meticulosa, quando trata da ação da CIA, Central of Intelligence Agency, que “desenvolveu intenso trabalho de espionagem para a desagregação do Brasil, para dividir o território nacional”.
– Realmente, até 1963, o Itamaraty concedera mais de 4.000 vistos e recebera solicitação para mais 3.000, cujo atendimento os militares nacionalistas obstaram. O certo, porém, é que cerca de 4.968 estadunidenses, conforme as estatísticas oficiais de desembarque, chegaram ao Brasil, apenas em 1962, batendo todos os recordes de imigração originária dos EUA e superando quase todos os números registrados durante os anos da Segunda Guerra Mundial, quando eles instalaram, oficialmente, bases militares em diversos estados do Nordeste.
Na realidade, diz Moniz Bandeira, a maioria daqueles estadunidenses eram oficias das Forças Armadas instruídos e treinados em táticas e técnicas militares e paramilitares para o combate à insurgência subversiva. Integravam uma espécie de exército secreto dos EUA, a Special Forces, e se tornaram conhecidos como Green Berets (Boinas Verdes) já a atuarem em cerca de 50 países, inclusive o Brasil, com a tarefa de combater movimentos de esquerda e reprimir intentos e de insurreição.
John Kennedy e a OEA
O livro “O Governo João Goulart” revela que “O Departamento de Estado chegou ao ponto de modificar, sub-repticiamente, o documento aprovado (da OEA sobre Cuba), inserindo opiniões que não foram aceitas, a fim de comprometer todos os países, inclusive o Brasil, com a perspectiva de aplicação de ‘medidas de maior alcance do que as já autorizadas’, caso a situação exigisse”.
– Kennedy prosseguiu – continua – na escalada de pressões, com o objetivo de abater Goulart, forçando-o a transigir cm as pretensões dos EUA. Em outro pronunciamento, aludiu aos “problemas cruciantes” do Brasil, que “preocupavam consideravelmente os EUA, e citou a situação do Nordeste, onde a renda per capta era de US$100,00.
Para o autor, “essa ingerência aberta nos assuntos internos do Brasil, por um presidente dos EUA, era realmente insólita e abusiva. A declaração feita por Kennedy de que outra nação estava em bancarrota não tem precedente nas relações internacionais. Seus efeitos econômicos e políticos seriam evidentemente desastrosos para o Brasil, em especial para o seu crédito, considerando que a atuação partira do chefe do maior centro capitalista mundial”.
-Kennedy, sem a menor cerimônia, alinhou-se à oposição interna ao governo Goulart, como qualquer político brasileiro, a incentivar sua desestabilização.
Irmão de Kennedy
Outro ponto abordado pelo livro foi quando John Kennedy, no final de 1962, “mandou seu irmão Robert, secretário de Justiça dos EUA, entrevistar-se com Goulart, com o objetivo de extorquir-lhe concessões, mediante pressão e ameaças”.
– Esta súbita viagem de Robert Kennedy a Brasília, sem que houvesse convite do governo brasileiro, gerou inevitavelmente diversas especulações na imprensa e nos meios políticos. Noticiou-se que ele fora condenar a propalada infiltração comunista no governo, defender os negócios da Hanna (transnacional de minérios), cobrar indenizações pela desapropiação da AMFORP e ITT (expropriada por Brizola quando governador do Rio Grande do Sul 1959-1963) e exprimir o desagrado de Washington ante o crescimento do comércio do Brasil com os países do Leste Europeu, sobretudo à base de moeda-convênio, uma vez que se opunha a que o Brasil comprasse petróleo à URSS ou helicópteros à Polônia em troca de café.
Moniz sustenta que a conversa foi “um pouco dura”, conforme Goulart, “que repeliu a investida de Robert Kennedy, a propósito da alegada penetração comunista no governo, a redarguir-lhe que o problema sindical era de foro interno e não comportava interferência de nações estrangeiras.
Apoio da mídia
Na série de especiais da grande imprensa, iniciada com 44 páginas da revista Veja, edição 2.366, datada de 26/03/2014, o material, sem assinatura de qualquer repórter, a não ser a citação do nome da jornalista Vilma Gryzinski, como coordenadora, chega a justificar a participação das empresas jornalísticas no Golpe de 64, ao afirmar que o presidente João Goulart “foi alijado do poder pelos militares com amplo apoio popular, dos intelectuais e da imprensa”.
Nenhuma palavra sobre a dinheirama que receberam, como revela o livro de Moniz Bandeira, da CIA, das empresas transnacionais, da embaixada e do próprio governo dos EUA. Tampouco há referência à posição do diretor do jornal O Estado de S. Paulo, Júlio de Mesquita Filho, membro da cúpula golpista, que chegou a pedir a intervenção militar dos Estados Unidos no Brasil. É importante transcrever este trecho de “O Governo João Goulart”, para se ter a dimensão do envolvimento da mídia, esta mesma que acusa de ditadores governos progressistas da atualidade, como os da Argentina, Venezuela, Bolívia et.:
“No dia 18 de novembro (de 1963), falando perante a Sociedade Interamericana de Imprensa, em Miami, o jornalista Júlio de Mesquita Filho, diretor de O Estado de S. Paulo, concitou abertamente os EUA a intervirem no Brasil, como Lacerda (Carlos) antes o fizera, na entrevista ao Los Angeles Times. Segundo ele, “existe o perigo de o Brasil se converter em outro bastião comunista, como Cuba (…) Se o Brasil chegar a ter uma ditadura esquerdista, isto significará a guerra atômica. Se chegar a estabelecer-se uma cabeça-de-ponte russa no Brasil, os EUA terão de aceitar tal guerra e então será o fim”.
O especial de Veja limita-se a desqualificar Goulart, Brizola, Darcy Ribeiro e outros membros proeminentes do governo deposto:
– Jango era o “Presidente acidental, hesitante, demagógico e aplicado no mau hábito populista de dividir os brasileiros entre os bons e os maus;
– No governo Jango, comerciantes eram presos por especulação, sob aprovação popular, e o trecho mais aplaudido do discurso que ele fez no Comício da Central do Brasil, quando pretendeu mudar as regras do jogo em assuntos vitais, tratava do congelamento de aluguéis.
Sobre Leonel Brizola, a revista Veja diz:
– “planejava um golpe institucional que levaria, na sua concepção, à instauração de uma república sindicalista (bordão cunhado pela CIA que nem a própria revista consegue acreditar)”;
– “Brizola havia liderado a Campanha da Legalidade, em 1961, que garantiu a posse do vice Jangoe a defesa do plebiscito, em 1963, que devolveu ao cunhado (Brizola era casado com Neusa, irmã de Goulart) os poderes do presidencialismo. Não à toa, ele se sentia um pouco, ou talvez até muito dono da Presidência”.
O reacionarismo da revista, que perseguiu Brizola desde que este chegou do exílio em 1979 até sua morte em 2004, vai ao requinte de atacar até o CIEPs, os centros de escola integral que o líder trabalhista inaugurou no Rio de Janeiro, em seus dois governos (1983-1987 e 1991-1994). Numa apreciação sobre Darcy Ribeiro, chefe da Casa Cil de Jango e secretário de Educação de Brizola, Veja afirma: “Colou em Leonel Brizola… e se notabilizou como criador dos CIEPs, a delirante, por impagável e inadministrável, tentativa de dar educação integral mais comida e atendimento de saúde a todas as crianças pobres”. É a velha mídia, inescrupulosa e totalitária, enfim, fiel à sua tradição golpista e um perfil todo voltado para defender os interesses multinacionais e não o Brasil, onde vive e se locupleta.
*Colaborador de Diálogos do Sul