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Foto: Alisdare Hickson / Flickr

Farsa judicial pode matar Julian Assange e criminalizar jornalismo em todo mundo

Punir Assange por revelação de crimes de guerra pode gerar espiral perigosa que mina democracia, rumo ao totalitarismo
Fabian Scheidler
Scheerpost
Berlim

Tradução:

Ana Corbisier

“Os que dizem a verdade precisam de um cavalo rápido”, reza um provérbio estadunidense. Ou precisam de uma sociedade que proteja a verdade e seus mensageiros. Mas esta proteção, que deveriam oferecer às nossas democracias, está em perigo.

Como jornalista, Julian Assange (1971-) publicou centenas de milhares de arquivos que documentam crimes de guerra cometidos pelos Estados Unidos e seus aliados no Afeganistão, Iraque, Guantánamo e outros lugares. A autenticidade dos documentos é inquestionável. No entanto, nenhum dos responsáveis foi levado à justiça nem condenado.

Em troca, o mensageiro está há cinco anos encarcerado em uma prisão de segurança máxima em Londres, com problemas de saúde que põem em risco sua vida, depois de ter passado sete anos fechado na embaixada equatoriana. Não foi acusado de nenhum delito no Reino Unido, em nenhum país da União Europeia nem em seu país de origem, a Austrália. 

O único motivo de sua rigorosa privação de liberdade é que o Governo dos Estados Unidos iniciou um processo de extradição acusando o jornalista de espionagem, apelando a uma lei que tem mais de cem anos, da época da Primeira Guerra Mundial (1914-1918): a Lei de Espionagem.

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Nunca um jornalista foi acusado ao amparo desta lei. O processo de extradição, portanto, estabelece um precedente perigoso. Se funcionar, todos os jornalistas do mundo que revelarem crimes de guerra dos Estados Unidos deverão temer enfrentar o mesmo destino que Assange.

Isso suporia o fim da liberdade de imprensa tal como a conhecemos, porque se baseia em poder trazer à luz o lado obscuro do poder, sem medo de represálias. Se esta liberdade acabar, não apenas morre a liberdade dos jornalistas, como a liberdade de todos nós: a que nos livra da arbitrariedade do poder.

Só por este motivo, os tribunais de um sistema jurídico funcional nunca deveriam aceitar o processo de extradição. Julian Assange não foi espião de modo algum, e sim jornalista, e como tal, está sujeito a proteção especial. 

Casualmente, a testemunha chave na acusação de espionagem foi o conhecido chantagista e pedófilo convicto Sigurdur Ingi Thordarson, que admitiu em 2021 ter mentido pelo FBI e ter conseguido imunidade judicial.

Assange não foi espião de modo algum, e sim jornalista, e como tal, está sujeito a proteção especial

Imaginemos o caso com os papéis invertidos: imaginemos que um jornalista australiano tivesse publicado crimes de guerra cometidos pelas forças armadas e os serviços de inteligência russos e buscasse proteção em um país europeu ocidental. Será que os tribunais considerariam seriamente o processo de extradição para Moscou por espionagem, e pior, quando a testemunha chave é um delinquente condenado?

Assange enfrenta uma sentença absurda de 175 anos nos Estados Unidos. É de temer que não sobreviva às duríssimas condições do infame sistema penitenciário estadunidense. Por isso, em 2021, o Tribunal de Magistrados de Londres deteve em primeira instância sua extradição. 

Última oportunidade para Assange

O Governo dos Estados Unidos, então, publicou uns documentos que afirmavam que não submeteriam Assange ao regime de isolamento. Mas, segundo a Anistia Internacional, estas declarações são “papel molhado”, porque a nota diplomática não vinculante reserva o direito do Governo estadunidense de mudar de posição a qualquer momento. Ao Tribunal de Apelações, não obstante, pareceu suficiente o documento para dar via livre à extradição: uma tergiversação da justiça, como diz a Anistia.

A audiência, realizada nos dias 20 e 21 de fevereiro no Tribunal Superior de Londres e cujo veredicto se espera para março, é a última oportunidade de Assange de recorrer da decisão de extradição. No entanto, existe um risco muito alto de que voltem a tergiversar com as leis. Segundo indica a plataforma de pesquisa Declassified UK, um dos dois juízes, Jeremy Johnson, já trabalhou para os serviços secretos britânicos – o MI6 – estreitamente vinculados à CIA e cujas atividades ilegais ficaram conhecidas graças ao trabalho de Julian Assange.

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Para Julian Assange, o próprio processo já se tornou um castigo. Em abril de 2020, o Relator Especial da ONU sobre Torturas, Nils Melzer, concluiu, depois de minuciosas investigações, que Assange estava há anos submetido a tortura psicológica sistemática. O fato de que os Estados Unidos estivessem preparados para ir ainda mais longe veio à luz em setembro de 2021: segundo informações do The Guardian, altos cargos de inteligência, inclusive o então diretor da CIA e posteriormente secretário de Estado Mike Pompeo, planejaram sequestrar e assassinar Assange em 2017.

 Vejamos os antecedentes: Wikileaks publicara naquele ano documentos divulgados como “Vault 7”. Revelam a ingente atividade da CIA no campo da guerra cibernética e demonstram que os serviços secretos intervêm sistemática e exaustivamente em navegadores web, sistemas informáticos de automóveis, smart TV e smartphones, inclusive quando estão desligados. Foi uma das revelações de Wikileaks que mais sensação causou desde as filtragens de Edward Snowden, que mostrou a vigilância ilegal e descomunal que exercia a Agência de Segurança Nacional. 

A CIA não ia perdoar o golpe a Assange e não tardaram em classificar Wikileaks de “serviço de inteligência hostil não governamental”, um neologismo que permitia declarar jornalistas inimigos do Estado. Quando Pompeo se tornou secretário de Estado em 2018, o Governo dos Estados Unidos iniciou o processo de extradição. Esta jogada substituía o plano original de Pompeo de sequestro e assassinato, mas o objetivo continuava o mesmo: acabar com um jornalista inoportuno.

Altos cargos da inteligência nos EUA planejavam sequestrar e assassinar Assange em 2017

As revelações de informantes como Edward Snowden e Chelsea Manning e de jornalistas como Julian Assange mostraram que, à sombra da denominada guerra ao terrorismo, surgiu um vasto universo paralelo nas últimas décadas. Este universo está obcecado com a espionagem ilegal de seus próprios cidadãos e o encarceramento, tortura e assassinato arbitrários de adversários políticos.

Este mundo escapa em grande medida ao controle democrático e, mais ainda, está solapando a ordem democrática a partir de dentro. No entanto, o desenrolar dos acontecimentos não é de todo novo.

Em 1971, algumas filtragens revelaram um programa secreto do FBI para espionar movimentos de direitos civis e contrários à guerra, infiltrar-se neles e arrebentá-los, conhecido como COINTELPRO. Naquele mesmo ano, The New York Times publicou “Os arquivos do Pentágono”, filtrados pelo informante Daniel Ellsberg.

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Esses documentos demonstravam que quatro administrações consecutivas dos Estados Unidos mentiram sistematicamente a seus cidadãos acerca do alcance e da motivação da guerra do Vietnã e dos numerosos crimes de guerra cometidos pelo exército estadunidense.

Em 1974, Seymour Hersh revelou os programas secretos da CIA para perpetrar magnicídios contra dirigentes de Estados estrangeiros e a operação clandestina para espionar centenas de milhares de opositores à guerra, que operaram com o nome em código de Operação CAOS.

Estimulado por estas informações, o Congresso dos Estados Unidos convocou em 1975 o Comitê Church, que fez uma análise exaustiva das operações secretas, o que levou a um maior controle parlamentar dos serviços.

Julian Assange faz parte desta venerável tradição jornalística e contribuiu de maneira determinante para seu renovado florescer. No entanto, há uma diferença importante com os anos setenta: hoje, o jornalista investigativo mais importante de sua geração está sendo abertamente perseguido, criminalizado e privado de liberdade.

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Quando os Estados declaram delituosa a investigação de crimes, a sociedade cai em uma perigosa espiral, no fim da qual podem surgir novas formas de totalitarismo. Já em 2012, Assange afirmava, em relação ao aumento do domínio das tecnologias de vigilância: “Temos todos os ingredientes para um Estado totalitário e carcereiro”.

Se as autoridades estadunidenses conseguirem condenar um jornalista por revelar crimes de guerra, haveria outra consequência grave. No futuro, seria ainda mais difícil e perigoso expor a sórdida realidade das guerras, sobretudo das guerras que os governos ocidentais gostam de vender como missões civilizatórias com a ajuda de jornalistas adeptos da causa.

Se não conhecermos a verdade das guerras, torna-se muito mais fácil travá-las. 

A verdade é a ferramenta mais importante para a paz. Se não conhecemos a verdade das guerras, fica muito mais fácil travá-las

Julian Assange ainda não foi extraditado nem condenado. Ao longo dos anos, criou-se um movimento internacional extraordinário por sua libertação e a defesa da liberdade de imprensa. Muitos parlamentares em todo o mundo também estão se pronunciando.

O Parlamento australiano, por exemplo, apoiado pelo primeiro-ministro Anthony Albanese, aprovou uma resolução por ampla maioria exigindo a libertação de Assange. Um grupo de mais de oitenta membros do Parlamento alemão somaram-se a ela.

Ainda assim, o Governo alemão se nega a exercer pressão significativa sobre o Governo de Joe Biden, que continua perseguindo Assange. A ministra de Assuntos Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, que como candidata a chanceler do Partido Verde tinha se manifestado a favor de libertar Assange, evita constantemente perguntas sobre o tema desde que participa do Governo.

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Seu Ministério passa meses sem responder às perguntas dos deputados sobre o caso, para depois limitar-se a formular desculpas retóricas e esquivas. Os políticos destacados da coalizão alemã de governo, que gostam de apresentar-se com estardalhaço como os guardiães da democracia e do estado de direito, têm que se posicionar de uma vez por todas neste assunto de justiça política e exigir inequivocamente a libertação de Julian Assange antes que seja demasiado tarde.

Mas claro, isso exigiria superar a atitude medrosa para com o padrinho em Washington e defender de verdade os valores tão cacarejados da democracia.

Scheerpost via Rebelión


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Fabian Scheidler Escritor autônomo e trabalha para Berliner Zeitung, Le Monde diplomatique, Taz Die Tageszeitung, Blätter für deutsche und internationale Politik entre outras publicações. Em 2009 ganhou o prêmio de Jornalismo Crítico Otto Brenner.

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