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Fenômenos dolorosos como a Covid afetam a todos? As ideias de Mariátegui em nosso tempo

Verdadeiro humanista, o escritor construiu laboriosamente um mundo de ideias e conceitos que não só não perdeu vigência, mas que se confirma em nosso tempo
Gustavo Espinoza M.
Diálogos do Sul Global
Lima

Tradução:

Ao comemorar-se em 2020 os 90 anos da morte de José Carlos Mariátegui e os 126 de seu nascimento, constitui quase um dever retornar à sua mensagem, sobretudo em um tempo no qual a crise tem lançado desafios inéditos a homens e povos. Nós o fazemos por esta via, mediante um encontro virtual, diferentemente do que fizemos nas últimas décadas, quando da Casa Mariátegui e da Associação de Amigos impulsionamos diversos e concorridos eventos para dar testemunho de nossa vontade, orientada a perseverar em sua lembrança, aprofundar em sua obra e perpetuar sua memória na consciência dos peruanos.

Para nós, suas ideias são uma verdadeira fortaleza, mas também um manancial fecundo que reproduz sentimentos e vontades; que assinala um caminho e que acode sempre com pronta energia para recuperar a capacidade criadora que anima os povos desta região do mundo e que o próprio Amauta denominara de “Nossa América”.

Verdadeiro humanista, o escritor construiu laboriosamente um mundo de ideias e conceitos que não só não perdeu vigência, mas que se confirma em nosso tempo

Reprodução
Alguns acreditam que fenômenos dolorosos como a Covid-19 afetam a todos.

Na verdade, tem-se escrito e falado muito de Mariátegui, mas se tem buscado, no calor do debate de nosso tempo, incidir em seu perfil político. Ele tem sido fonte constante de reflexões. Com elas se tem buscado precisar os elementos chaves de seu pensamento. Assim, sua trajetória pessoal e humana, seus vínculos com os trabalhadores, sua posição diante do regime Leguiista, suas experiências no velho continente e suas tarefas, cumpridas ao seu retorno, entre 1924 e 1930, têm servido como base de análise e de inspiração para todos. 

Mas ainda há muito que mostrar dessa tarefa. Do que se trata agora é de achar os elementos essenciais que permitam julgar as concepções básicas de Mariátegui como sustento ao ideário de nosso tempo. Para isso, será necessário aludir ao que consideramos as quatro colunas de seu pensamento: o domínio da realidade, o sentimento solidário, a visão internacionalista e a cultura como base. 

A luta no plano das ideias 

A crise da dominação vigente tem se estendido em todos os planos. A luta de classes não tem se limitado à clássica confrontação entre trabalhadores e empresários, suscitada nos marcos da Usina, em voga na sociedade industrialista dos séculos XIX e XX. As mudanças na estrutura produtiva e nos mecanismos vigentes referentes ao processo de acumulação do capital, têm estendido o confronto a todos os âmbitos. E os avanços tecnológicos têm permitido que hoje se coloque a verdadeira batalha de ideias. 

Um latino-americanista cubano e dos grandes, José Martí, nos dizia: “Trincheiras de ideias valem mais que trincheiras de pedra”.  E é verdade. As concepções do Amauta permitem à inteligência de nosso tempo construir verdadeiras trincheiras destinadas a defender as irredutíveis posições de combate de milhões de cidadãos de todos os países, oprimidos e explorados pela sociedade capitalista. 

Em um mundo no qual rangem as estruturas econômicas e sociais, e quando os grandes consórcios olham para o passado e se empenham em resolver suas dificuldades produtivas recorrendo ao negócio das armas e usando as guerras como fonte do ocupação e enriquecimento, as ideias e os valores adquirem uma nova dimensão. Assumi-los, através da mensagem do Amauta constitui um imperioso dever e uma necessidade inescusável. 

E é que José Carlos Mariátegui foi um verdadeiro humanista. Escritor, ensaísta, político, jornalista, homem de cultura; foi um autêntico operário do pensamento. Construiu laboriosamente um mundo de ideias e conceitos que não só não perdeu vigência, mas que se confirma em nosso tempo. Nele, o domínio da realidade é uma constante. 

Embora o Peru tenha mudado como consequência da modernização do capitalismo, a essência da sociedade não mudou. Continua sendo uma sociedade elitista na qual uma pequena e poderosa minoria impõe suas regras, retendo em suas mãos as rédeas do Poder. 

Um cenário dilacerante 

Todas as iniquidades postas a desnudo pela pandemia que afeta hoje nosso povo, são sequela e expressão de um regime social imposto como sistema de dominação, em detrimento das maiorias nacionais. E todas as ações do Grande Capital são justificadas com um só propósito; perpetuar um “modelo” incompatível com o interesse das maiorias nacionais. 

Mariátegui nunca foi alheio a cenários como estes. Em “La Escena contemporánea” ou na “Historia de la crisis mundial”, e em muitas de suas crônicas da época, falou das iniquidade do capitalismo, mas também da especulação financeira que os grandes proprietários usavam para eludir seus compromissos ficais, super explorar os trabalhadores e obter enormes lucros. Fenômenos similares acontecem no nosso tempo. Daí surge a visão solidária à qual aludimos. 

Mas este não é um fenômeno exclusivamente peruano. Podemos percebê-lo, em uma ou outra dimensão, em cada um dos países do nosso continente e do mundo. Em toda parte o processo de acumulação das grandes fortunas se aninha no sofrimento e na morte de milhões de pessoas nas zonas urbanas cheias de tugúrios e nas regiões rurais mais deprimidas. A pandemia que hoje afeta o mundo o confirma. 

A acumulação de fortunas e a polarização social toma dimensões siderais em nosso tempo. Não é um segredo o fato de que houve aqueles que se aproveitaram das ajudas públicas para multiplicar seus lucros e arredondar seus negócios. 

O Greenpeace, alheio a qualquer qualificação política, mostrou que alguns empresários usaram a crise para ordenhar o Estado, salvando seus interesses. Richard Branson, por exemplo, deixou de pagar por 14 anos seus impostos à Grã Bretanha, mas agora exige que seu país salve sua linha aérea, a Virgin Atlantic. Mas esta é apenas uma pérola. Nos últimos meses se produziu uma mudança irreversível em três elementos essenciais em nosso tempo: a economia mundial, o marcado de trabalho e a desigualdade da riqueza. Nunca como antes, os pobres passaram a ser mais pobres; e os ricos, mais ricos. Jeff Bezzos, o homem da Amazon registrou duzentos bilhões de dólares como lucro nesse pequeno período da vida mundial; enquanto Warren Buffett e Lavry Edison obtiveram entre maio e junho 101 bilhões e 700 milhões de lucro. O mesmo poderia ser dito dos criadores do Facebook e de outros grandes consórcios elaborados para a exploração das redes e da comunicação humana. 

A voracidade dos monopólios 

Os especialistas asseguram que se esta tendência não se detiver, os Estados Unidos da América do Norte poderiam se converter em um país medieval e feudal. “Haverá uma oligarquia de elite dirigindo o país, apoiada por um grupo de advogados, contadores e gerentes de alto nível; e na base da pirâmide estará situada a classe trabalhadora desempenhando os empregos menos valorizados por um salário baixo e pondo e risco sua saúde”, disse recentemente a imprensa norte-americana. Para entender tudo isto, é preciso assumir a visão internacionalista do Amauta. 

O Peru não é, em absoluto, alheio a esta preocupante realidade. Os informes asseguram que Carlos Rodríguez Pastor, dono do Grupo Intercorp e cuja fortuna a Forbes estima em 4 bilhões e 200 milhões de dólares, ou seja 14 bilhões e 700 milhões de soles – um montante equivalente a quase a metade dos fundos dispostos pelo governo na primeira etapa do Reativa Peru – tem se beneficiado diretamente com os programas do Estado. Em lugar de acudir a empréstimos regulares, aporte de capital ou liquidar ativos de sua organização, 18 subsidiárias de seu império se acolheram a este fundo estatal e conseguiram empréstimos de 152 milhões de soles, equivalentes a 3,6% de sua riqueza privada. 

Aos fundos do estado recorreram praticamente todas as empresas. Companhias de aviação, consórcios mineiros, bancos, grande meios de comunicação, escritores de advocacia, todos certamente solventes. Todos reclamaram a teta do Estado, o mesmo Estado que eles querem subsidiário, relegado e secundário para todos os efeitos, mas muito importante para  operações denominadas impudicamente de “resgate financeiro”. Para as maiorias nacionais apenas choveram esquálidos bônus que chegaram tarde, mal, ou inclusive nunca aos bolsos dos pobres. 

Contradições que não podem ser ocultadas 

Como se recorda, em sua estadia europeia, Mariátegui pode conhecer de maneira direta o crescimento e desenvolvimento da classe operária. E apreciar sua vontade de luta contra a ascensão do fascismo. Em sua visita às fábricas, percebeu o sentido da consciência operária e a essência da luta de classes. Hoje há quem afirme que ela desapareceu pelo surgimento de fenômenos que vão além das contradições sociais, dado que afetam a humanidade inteira. Vejamos alguns deles. 

Alguns acreditam que fenômenos dolorosos como a Covid-19 afetam a todos. “É um mar tempestuoso no qual todos podemos nos afogar”, asseguram dramaticamente. E é quase verdade. Se esquecem que as furibundas ondas que nos acossam, não nos encontra na mesma situação. Uns a afrontarão em um luxuoso transatlântico, e outros em simples e humildes barcaças, ou somente a nado. Alguns terão solventes seguros de vida, que legarão aos seus no pior dos casos; mas a maioria morrerá sem deixar mais que uma pungente lembrança. 

E é que não há fenômenos à margem das classes. Já antes dissemos que a contaminação ambiental não é gerada pelos povos nem pelos trabalhadores, mas sim pelos grandes consórcios industriais e mineiros empenhados em sugar a riqueza da terra. O aquecimento global, não é, por acaso, consequência direita da ampliação do buraco da atmosfera e do enfraquecimento da capa de ozônio que é produzida precisamente pela contaminação ambiental e o uso de produtos que prejudicam a natureza e o eco sistema? Não é sabido que as catástrofes naturais são consequência das agressões feitas à ecologia? E a falta de água – os degelos do ártico e das zonas nevadas – não são, por acaso outra coisa senão o resultado do aquecimento global? Uma visão elementarmente culta nos permite conhecer a vida e seus problemas. 

Os monopólios desenvolvem uma ofensiva que afeta a humanidade e leva o mundo ao borde da destruição. Por isso, lutar em defesa da ecologia e do meio ambiente, pela proteção dos recursos naturais e da biodiversidade é uma exigência legítima e qualificada de desenvolver a luta de classes, acautelando interesses dos povos e enfrentando a ofensiva do capital. 

Quatro pilares essenciais

Em nosso tempo, então, os fenômenos sociais têm um selo conhecido. E diante deles, as quatro colunas do arquétipo conceitual que nos legara o Amauta, têm plena vigência: o estudo da realidade, a solidariedade como valor inabdicável, o internacionalismo e a cultura, não somente subsistem no tempo, mas se projetam como uma expressão renovada que nos compromete a todos.   

Render homenagem a Mariátegui, neste marco de ideias, reflete a vontade daqueles que abrigamos a melhor intenção de perpetuar sua memória e gravá-la na consciência dos peruanos. 

* Trabalho apresentado ao Simpósio Internacional “90 anos de sua passagem à história”, Lima. 

** Colaborador de Diálogos do Sul de Lima, Peru

Tradução: Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Gustavo Espinoza M. Jornalista e colaborador da Diálogos de Sul em Lima, Peru, é diretor da edição peruana da Resumen Latinoamericano e professor universitário de língua e literatura. Em sua trajetória de lutas, foi líder da Federação de Estudantes do Peru e da Confederação Geral do Trabalho do Peru. Escreveu “Mariátegui y nuestro tiempo” e “Memorias de un comunista peruano”, entre outras obras. Acompanhou e militou contra o golpe de Estado no Chile e a ditadura de Pinochet.

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