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Drama sanitário, disputa comercial, estigmatização de minorias e guerra perdida contra os narcóticos são os satélites que orbitam o fentanil (Imagem ilustrativa: IA / Freepik)

Fentanil: droga campeã de overdoses nos EUA acende alerta para América Latina

O fentanil matou mais pessoas nos EUA em 2024 do que as guerras no Vietnã, Afeganistão e Iraque juntas; a droga já chegou na Argentina, onde o desmonte das condições sociais abre um terreno fértil para a dependência

Nicolás G. Recoaro
TIEMPO ARGENTINO
Buenos Aires

Tradução:

Ana Corbisier

Um fantasma percorre as ruas dos Estados Unidos, Canadá e de quase toda a Europa há vários anos: o fantasma do fentanil. A droga zumbi é uma praga no hemisfério norte, e acendem-se os alarmes por seu uso ilegal nestas terras do sul.

A droga em formato legal foi manchete na mídia argentina nos últimos dias. Os hospitais de todo o país estão em alerta em razão do fentanil distribuído pelo laboratório HLB Pharma e sua fábrica em Ramallo, que já foram interditados pela Administração Nacional de Medicamentos, Alimentos e Tecnologia Médica (ANMAT) devido a irregularidades nos fármacos — o que resultou, até o momento, em pelo menos nove mortos e dezenas de feridos. Trata-se do pior surto de infecção associada a medicamentos da história recente do nosso país.

Ainda que o centro deste episódio seja o setor sanitário, a expansão da droga na sociedade, a falta de controle oficial (em um contexto de promoção da desregulamentação e da ausência do Estado) e a proximidade do laboratório envolvido com a rota para Rosario deixam pontas soltas numa onda onde a palavra-chave começa a se repetir com maior (e perigosa) frequência: fentanil.

Aprendendo sobre as drogas

O fentanil é um opioide sintético 50 vezes mais potente que a morfina e que sua irmã, a heroína. Dois miligramas — o equivalente a cinco a sete grãos de sal — são considerados uma dose letal.

Segundo os frios números oficiais do Centro Nacional de Estatísticas de Saúde dos EUA, overdoses de drogas mataram cerca de 87 mil estadunidenses em 2024 — mais vidas perdidas que nas guerras do Vietnã, Afeganistão e Iraque juntas. Ainda assim, o número de mortes caiu significativamente em relação ao pico de quase 114 mil no ano anterior. O fentanil foi responsável por quase 75% das mortes por overdose ao norte do rio Bravo. Ominoso é seu apelido: “injeção letal”.

Os reels do inferno da abstinência são consumidos sem pudor nas redes sociais e na mídia sensacionalista. Postagens sombrias do presente que parecem saídas de um quadro gótico de Bruegel, o Velho. Homens e mulheres se arrastando pelas ruas dos subúrbios dos subúrbios das potências ocidentais. Desesperados, buscam o cachimbo ou a picada salvadora, em Portland, São Francisco, Berlim, Toronto…

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Drama sanitário, disputa comercial, estigmatização de minorias e guerra perdida contra os narcóticos são os satélites que orbitam o fentanil. Modelo puro e sem cortes do capitalismo selvagem do século 21.

Oferta e demanda

A história do vício em fentanil é econômica. Era uma vez, em meados dos anos 1990, uma matilha de empresas farmacêuticas sem escrúpulos que, com uma agressiva campanha de marketing médico, inundaram consultórios e boticários dos Estados Unidos com uma pílula “milagrosa” chamada OxyContin.

Suas andanças e desandanças são narradas na série Painkiller (2023). Prometiam eliminar dores num piscar de olhos, com “baixíssimo” risco de dependência e pacientes aliviados… puro marketing. Clink, caixa registradora. Quando caiu a oferta desse derivado do ópio, centenas de milhares de dependentes tomaram as ruas americanas em busca de substitutos mais acessíveis, como a heroína. Por volta de meados da primeira década dos anos 2000, veio a onda inicial da epidemia de opiáceos no norte. Nesses anos, o fentanil entrou em cena — uma droga que poucos conheciam fora dos centros cirúrgicos.

O segundo embate veio em 2014, quando os traficantes começaram a misturar a droga com cocaína e metanfetamina. Por esses tempos, os cartéis mexicanos entraram em cena com laboratórios a poucos passos da fronteira estadunidense. Os consumidores não tinham ideia do que estavam usando ou injetando. Dizem que os vendedores multiplicaram seus lucros. Assim como se multiplicou o número de dependentes. Se você tivesse a sorte de escapar de uma overdose, ficaria preso para o resto da vida.

Em duas décadas, o fentanil apagou a existência de dezenas de milhares de anônimos e de algumas estrelas distantes como Prince, Tom Petty, Mac Miller. Em uma passagem pela Califórnia em 2019, vi cenas dantescas em Skid Row, periferia da nada angelical Los Angeles. Desde a miserável pandemia, não se fala mais em ondas isoladas. É um tsunami.

De papoulas e heroínas

“O fentanil é um opioide, fármaco derivado da morfina que pode ser natural, semissintético ou sintético, sempre levando em conta sua origem. O fentanil é sintético. Sua origem é belga; foi sintetizado pelo laboratório Janssen em 1960. A FDA, o órgão que regula os medicamentos nos Estados Unidos, autorizou seu uso em 1968. Buscava-se um opioide que tivesse o efeito analgésico da morfina, mas com menor potencial de causar dependência”, me explicou no ano passado Miguel Miceli, experiente anestesista e chefe da cátedra de Farmacologia da Universidade de Buenos Aires (UBA).

Disse o médico: “vêm da papoula, uma planta oriunda da Ásia Menor, a mesma região de onde vem a maconha. Os babilônios e os assírios a utilizavam, há referências de 3.000 antes de Cristo. Depois chegou ao Egito e posteriormente foi introduzida na Europa. No final do século 19, foi possível identificar o princípio ativo da papoula: a morfina e a codeína. Eram usadas como analgésicos. Acalmavam a dor e controlavam a diarreia. Ajudavam em intervenções cirúrgicas, onde se usavam esponjas soporíferas com ópio, meimendro e mandrágora. Provocavam uma espécie de sono. Em uma guerra, se o paciente fosse sofrer uma amputação, ficava meio embriagado, como adormecido. O risco da morfina é a adição, por isso se trabalhou em laboratório para diminuí-la ou eliminá-la”.

O tiro saiu pela culatra quando surgiu a heroína semissintética. A Bayer começou a comercializá-la em 1895 sob o slogan “substituto não aditivo da morfina”. Nos loucos anos 20, o “cavalo” superou sem esforço a taxa de dependência da morfina. Com altos e baixos, a epidemia de “Brown Sugar” continua até os dias de hoje.

Foto: Eliana Obregón / Télam

Miceli acrescentou capítulos à história: “Mais tarde tentou-se identificar a molécula da morfina e sintetizar o composto químico; aí começaram a surgir os opioides sintéticos — há aproximadamente 50. O fentanil é um deles e não tem origem natural. É um analgésico muito eficaz, com alto poder de adição como a morfina, mas tem certas características que, para os médicos, são fundamentais. O início do efeito é muito mais rápido, a intensidade é muito maior, mas a duração é menor. É extremamente potente. Para se ter uma ideia, 10 miligramas de morfina equivalem a 50 microgramas de fentanil.”

Sobre o consumo recreativo da substância, com um imaginário próximo ao ópio, refletiu o anestesista: “Essa sensação de orgasmo, que é abdominal e genital. Você viu o filme Trainspotting? Eles se reuniam, mas não estavam conectados, cada um adormecido em seu próprio mundo. Depois dessa sensação de orgasmo vem um relaxamento — é isso que se busca com o consumo. Mas quanto mais você consome, mais precisa. Isso pode levar à morte”.

O papel do Estado

Na Argentina, não se produz fentanil. Os laboratórios da China são os principais fabricantes. Acrescentou Miceli: “O fentanil vem de fora. É importado por certos laboratórios, que depois fabricam os adesivos ou as cápsulas que usamos. As agências reguladoras estabelecem as normas para adquiri-los. Não é qualquer um que pode comprar. É preciso estar registrado, ter receituários triplos oficializados pela Anmat, que são os que uso com meus pacientes quando atuo na medicina da dor. Se há consumo recreativo, é por meios non sanctos. Tráfico ilegal, entra no país por meios que desconheço, ou talvez haja desvio dentro do setor médico. Há preocupação no nosso meio”.

Com o Estado argentino em retração e os órgãos de controle sendo serrados pela motosserra de Milei (ao mesmo tempo em que se promovem anistias para dólares sem necessidade de justificativa — terreno ideal para o narcotráfico), o fentanil promete más notícias para o futuro.

O tema vem escalando nos últimos anos. Basta um exemplo do passado: em 2 de fevereiro de 2022, 24 pessoas morreram e 80 foram internadas após consumir cocaína misturada com carfentanil — opioide 30 vezes mais potente que a “droga zumbi” — nos estreitos corredores de Porta 8, uma favela marginalizada do partido de 3 de Fevereiro. “Guerra de traficantes” e “Mexicanada”, estamparam os jornais. Foi uma notícia efêmera.

Um mês depois, fui até o bairro. O Estado marcava presença com um patrulheiro caindo aos pedaços e um monumento de Evita. Os moradores me contaram do medo do abandono e do esquecimento. Venenos sempiternos cuspidos pelas autoridades. Quando se está desesperado, esquecido, sem nada a perder, aumentam os consumos problemáticos. As periferias sabem disso.

O cenário global é preocupante quanto ao consumo de opioides e aos altíssimos números de overdoses por fentanil no hemisfério norte. O novo ópio dos povos neste vale de lágrimas.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Nicolás G. Recoaro Licenciado em Ciências da Comunicação, jornalista e professor universitário, contribui para Rolling Stone, Página 12, Jallalla! e Página Siete, com sede em La Paz. Publicou os livros "Los chongos de Roa Bastos", "De la tricolor a la wiphala", "Alta en el cielo" e "27.182.414". Suas crônicas aparecem nas antologias “Bolívia a toda costa”, “Por los caminos del Che” e “Hora boliviana”.

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