Dizem que a Justiça é cega. Mas, no Brasil, ela enxerga muito bem — e seleciona a dedo quem deve sentir o peso da Lei. Fernando Collor de Mello, condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, teve sua estadia no cárcere abreviada com a delicadeza que só os privilegiados conhecem. Em poucos dias, a toga teve compaixão: prisão domiciliar. A Justiça brasileira tem olhos, sim! E são olhos treinados para enxergar cor de pele e saldo bancário antes de qualquer crime. É por isso que o preto pobre vai preso antes mesmo de ser julgado. E o branco rico continua solto mesmo depois de condenado. Não é coincidência. É projeto do Estado brasileiro.
Os Tribunais brasileiros funcionam, em grande parte, como palcos de encenação burguesa. A toga pesa mais contra quem vem da favela. O Código Penal nunca foi neutro, mas desenhado para manter intactas as estruturas da Casa Grande. O Judiciário — com seus ritos pomposos e sua linguagem inacessível — não é instrumento de equilíbrio, mas uma arma de controle. Negros são 56% da população brasileira, mas ocupam 68% das celas. Isso não é acaso estatístico. É racismo sistêmico incontestável! Um país que prende sua juventude negra em massa está dizendo claramente: “não há espaço para vocês”. É necropolítica com carimbo institucional.
Enquanto isso, os donos do poder — de ternos finos e sobrenomes compostos — continuam desfilando sua impunidade nos salões do Congresso, nos gabinetes dos tribunais, nos jatinhos fretados com dinheiro público. Quando são pegos com malas de dinheiro ou em conversas escandalosas, são acolhidos com afeto judicial: “prisão domiciliar”, “regime semiaberto”, “razões de saúde”. A Justiça reconhece “os seus”! Na favela, no entanto, não tem colarinho: tem algemas. E estas chegam antes do mandado. Como escreveu Vera Malaguti Batista, “o sistema penal serve para reafirmar a desigualdade e criminalizar os pobres”. A função da justiça punitiva brasileira não é proteger a sociedade, mas salvaguardar sua elite; o que se chama de “combate ao crime” é, na prática, uma política de exclusão social, racial e territorial.

Seletividade como política editorial
E a mídia — como sempre cúmplice — ajuda a manter esse status quo. Mostra o preto algemado com destaque, mas cobre o rosto do empresário branco com a mão na frente da câmera. Um é “suspeito”. O outro, “cidadão de bem”. Ela escolhe o enquadramento, a manchete, o adjetivo. Decide quem é “suspeito” e quem é “criminoso”, quem é “jovem promissor” e quem é “bandido perigoso”. A imprensa brasileira, com raríssimas exceções, não noticia a justiça — ela a fabrica. E a fábrica tem dono, tem cor, tem classe.
Quando um adolescente negro é preso por furto, por exemplo, a TV corre para exibir o rosto, o nome, o histórico escolar, o endereço. Toda uma espetacularização: um corpo preto criminalizado é sempre bom para audiência. Mas, quando o criminoso veste terno, tem sobrenome forte ou foi ex-ministro, ex-governador ou ex-presidente — como Fernando Collor —, a linguagem muda. A lente suaviza. É como se a culpa tivesse vergonha de aparecer. A mídia brasileira é seletiva. E essa seletividade não é erro, mas política editorial. É pacto com o poder. Como diria Lélia Gonzalez, “a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante”. E quem domina também escreve as notícias. A imprensa que criminaliza a pobreza é a mesma que silencia os crimes da elite. Ela não omite por distração — omite por escolha.
Onde está a cobertura indignada sobre os 40% de presos provisórios que apodrecem sem julgamento nas cadeias? Cadê o escândalo sobre os 68% de pessoas negras nas prisões brasileiras? Onde está a manchete em caixa alta dizendo que político branco corrupto cumpre pena em casa enquanto preto favelado cumpre pena antes mesmo de ser julgado?
Quando Fernando Collor foi para casa, poucas manchetes questionaram. Poucas análises — a maioria nas mídias alternativas progressistas — chamaram pelo nome: privilégio de classe e de raça. Preferiram dizer “benefício concedido pela Justiça”, como se fosse mérito, não favorecimento. Como se fosse igual para todos. Em país onde a verdade também tem dono, informar virou exercício de poder. E quem detém o microfone escolhe quem merece compaixão e quem merece punição. A imprensa, no Brasil, não só cobre o rosto dos criminosos ricos — ela cobre o sistema que os protege. Collor não está só em casa — ele está onde sempre esteve: no seio de uma Justiça que o reconhece como parte legítima do poder. Aos pretos e pobres, resta a cela, o esquecimento, a sobrevivência. A um, a poltrona do lar; ao outro, o chão frio da prisão. Ambos no mesmo país, mas em realidades opostas que não se tocam nem sob o mesmo Código Penal. Tudo isso com a conivência da mídia.
Fernando Collor de Mello é apenas mais um entre tantos que, mesmo condenados, seguem “blindados” pelo sobrenome, pela rede de poder, pelos códigos não escritos da branquitude rica. Paulo Maluf, ladrão de colarinho nobre, também cumpriu pena em casa por “razões médicas”. Geddel Vieira Lima, o homem das malas com R$ 51 milhões, passeia entre cômodos, não entre grades. Roberto Jefferson, chefe do partido que aplaude a bala, também recebeu a indulgência do regime domiciliar.
Enquanto isso, a juventude negra do Brasil apodrece nas masmorras modernas do Estado. Não importa se são inocentes ou culpados — são pretos, pobres e periféricos. E isso basta para lhes decretar a morte civil. “A favela é o lugar da necropolítica”, dizia ainda Lélia Gonzalez. É onde o Estado não se omite: ele atua com precisão para manter as hierarquias. É a confirmação de que o sistema de Justiça penal é uma máquina de exclusão racial. A prisão preventiva virou sentença. O sistema penal brasileiro pune primeiro e julga depois — se julgar. Uma “máquina de moer carne preta”: assim chamou Abdias do Nascimento.
A cadeia é o destino forjado para corpos indesejados, enquanto os verdadeiros saqueadores da República seguem livres, blindados por toga, por amizade, por status social.