NULL
NULL
“Independentemente da sua simpatia ideológico-partidária, pense bem antes de aplaudir condenações dessa natureza”.
Fernando Hideo Lacerda*
João Baptista Pimentel Neto*

Em artigo publicado no Blog Tijolaço, o advogado e professor de Direito Penal Fernando Hideo Lacerda, afirma que não se propõem “a exaurir o tema, nem tampouco entrar num embate próprio das militâncias partidárias”, mas apenas explicitar “suas impressões sobre a sentença do juiz Sérgio Moro que condenou – em primeira instância” – o ex presidente Luiz Inácio Lula da Silva na tentativa de traduzir o juridiquês sem perder de vista as técnicas processuais determinadas no Direito Penal”.
Objeto da condenação:
A “propriedade de fato” de um apartamento no Guarujá.
Diz a sentença do Juiz Sergio Moro: “o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua esposa eram PROPRIETÁRIOS DE FATO do apartamento 164-A, triplex, no Condomínio Solaris, no Guarujá”.
Devemos realçar que embora Moro reconheça que o ex-presidente e sua esposa jamais frequentaram esse apartamento, Sergio Moro fundamenta a sentença no “conceito” de “propriedade de fato”.
Para entender melhor o que isso significa é preciso antes verificar o que é propriedade do ponto de vista estritamente jurídico.
Código Civil – Artigo 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
Portanto, um “proprietário de fato” (na concepção desse juiz) parece ser alguém que usasse, gozasse e/ou dispusesse do apartamento sem ser oficialmente o seu dono.
A fragilidade da tese de Moro é inconteste já que o conceito “proprietário de fato” simplesmente não existe em nosso ordenamento jurídico que para caracterizar tal situação utiliza o conceito de “posse”.
Código Civil – Artigo 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.
Neste contexto, é importante registrar que em sua extensa sentença, Moro sequer mencionou ou demonstrou a existência de elementos juridicamente aceitáveis que comprovem que Lula ou sua esposa Marisa, tenham em algum momento exercido a “posse”, plena ou parcial, do tal triplex, já que não restou comprovado que tenham exercido “algum dos poderes inerentes à propriedade”.
Assim é que Moro fundamenta sua sentença em um único fato concreto: UMA visita do casal ao local para conhecer o apartamento que segundo a defesa “Léo Pinheiro queria lhes vender”.
Isso mesmo, apenas uma visita foi suficiente para fundamentar a sentença de Moro, que afirma ser Lula “proprietário de fato” de um imóvel sobre o qual, em tempo algum, nunca teve sequer a “posse”.
Difícil entender ? Pior que isso? Impossível entender.
Sobre as tipificações penais
A sentença de Moro condena Lula pela prática de crimes previstos em duas tipificações penais: lavagem de dinheiro e corrupção.
A condenação por lavagem de dinheiro fundamentou-se na prática de “ocultação e dissimulação da titularidade do apartamento 164-A, triplex, e – por ter sido Lula – beneficiário das reformas realizadas”. Já a condenação por corrupção foi fundamentada na tese de que Lula teria recebido “vantagem indevida do Grupo OAS em decorrência do contrato do Consórcio CONEST/RNEST – Refinaria Abreu e Silva – com a Petrobrás”.
Lavagem de Dinheiro e as Provas Documentais
As provas documentais apresentadas por Moro para condenar Lula pelo crime de lavagem de dinheiro resumem-se há algumas mensagens trocadas entre o casal Lula da Silva e a OAS/Léo Pinheiro, nas quais negociava-se uma possível compra de um apartamento no condomínio Solaris e há uma matéria do jornal “O Globo”. Só isso, nada mais do que isso. Nenhum registro de propriedade, nem qualquer outra prova documental que indique que o casal tenha obtido sequer a posse do tal triplex.
Aliás, merece registro – e pode até parecer surreal -, mas na sentença de Moro existem nove trechos que mencionam esta matéria do jornal carioca, cujo conteúdo é tratado como se prova documental fosse.
É esse o conjunto de “provas documentais” que Moro apresenta para comprovar que o ex-presidente Lula era o “proprietário de fato” do apartamento. E por isso condená-lo pelo crime de lavagem de dinheiro.
Corrupção e a Prova Testemunhal
Já a condenação pelo crime de corrupção obrigou Moro a “malabarismos” ainda maiores. Primeiro era necessário estabelecer uma conexão entre o processo sobre a “propriedade” do tal triplex – originado por uma denúncia apresentada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo – e a Operação Lava Jato que apura apenas crimes afetos a Petrobrás. Sem esta conexão Moro não teria qualquer poder decisório sobre o referido processo, no qual – registre-se – a tese defendida por Moro é refutada pelo MP Paulista.
Neste contexto é fundamental registrar que a conexão – e também a condenação – foi estabelecida sem a existência de uma única prova documental e fundamenta-se apenas nos testemunhos dos delatores premiados Léo Pinheiro e um outro ex-diretor da OAS que “juram” que Lula era o “proprietário de fato” apartamento e que na reforma foram utilizados recursos provenientes das “negociatas” criminosamente praticadas por ambos envolvendo a Petrobrás.
Portanto, registre-se, não há nenhuma prova documental para comprovar essas alegações, apenas as declarações extorquidas pelos procuradores da Operação Lava Jato durante “negociações” de acordos de delação premiada – que no caso como veremos adiante foi um “acordo informal” de delação premiada.
A tipificação do crime de corrupção é prevista no artigo 317 do Código de Direito Penal Brasileiro, como se segue:
Artigo 317 – Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem
Portanto, para condenar alguém pelo crime de corrupção é basicamente necessário comprovar que ocorreram uma solicitação, aceitação de promessa ou efetivo recebimento de vantagem indevida e que efetivou-se uma contrapartida – no caso, do funcionário público.
Neste sentido, segundo Moro, Lula estaria sendo condenado “pelo recebimento de vantagem indevida do Grupo OAS em decorrência do contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobrás”.
Neste contexto e tendo por base o determinado pelo referido artigo 317, a condenação deveria apresentar como pressuposto mínimo a comprovação “do recebimento de vantagem” – que na sentença é fundamentada na convicção de Moro de ser Lula o “proprietário de fato” do triplex – e que para receber tal vantagem, Lula teria oferecido como contrapartida à OAS o contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobras.
Como não para além de não ter sequer comprovado ser Lula “proprietário de fato” do tal triplex, não existe no processo nenhuma prova comprovando ter ocorrido qualquer contrapartida (salvo declarações “extorquidas” de delatores), praticando mais um de seus “malabarismos”, Sergio Moro afirmou que para comprovar o crime de corrupção praticado pelo ex presidente “Basta a configuração que os pagamentos sejam realizadas em razão do cargo ainda que em troca de atos de ofício indeterminados, a serem praticados assim que as oportunidades apareçam.” – Uma verdadeira pérola, que certamente entrará para a história da Justiça brasileira.
Não satisfeito, Moro prossegue – praticamente reconhecendo o equívoco da sua tese – afirmando que: “Na jurisprudência brasileira, a questão é ainda objeto de debates, mas os julgados mais recentes inclinam-se no sentido de que a configuração do crime de corrupção não depende da prática do ato de ofício e que não há necessidade de uma determinação precisa dele”.
Ou seja, segundo o magistrado como não se tem como saber em troca de que a OAS teria concedido a Lula a “propriedade de fato” do triplex, pode-se afirmar com absoluta certeza que os benefícios foram dados a Lula por conta do cargo por ele exercido que lhe permite cobrar vantagens “assim que as oportunidades apareçam”.
Coroando o texto da sentença pelo crime de corrupção, mais uma pérola: Este “foi, portanto, um crime de corrupção complexo e que envolveu a prática de diversos atos em momentos temporais distintos de outubro de 2009 a junho de 2014, aproximadamente” e “Não importa que o acerto de corrupção tenha se ultimado somente em 2014, quando Luiz Inácio Lula da Silva já não exercia o mandato presidencial, uma vez que as vantagens lhe foram pagas em decorrência de atos do período em que era Presidente da República”.
Haja triplex para tanta vantagem…não é? E haja crédito para receber vantagens até 4 anos depois do fim do mandato…
Lavagem de Dinheiro
Se a condenação por corrupção se baseia em provas inexistentes, a pior parte da sentença é a condenação pelo crime de lavagem de dinheiro.
Hipótese condenatória: lavagem de dinheiro “envolvendo a ocultação e dissimulação da titularidade do apartamento 164-A, triplex, e do beneficiário das reformas realizadas”.
Ou seja, o ex-presidente Lula teria recebido uma grana da OAS na forma de um apartamento reformado e, como não estava no nome dele, então isso seria lavagem pela “dissimulação e ocultação” de patrimônio.
Isso é juridicamente ridículo.
Lavagem é dar aparência de licitude a um capital ilícito com objetivo de reintroduzir um dinheiro sujo no mercado. Isso é “esquentar o dinheiro”. Exemplo clássico: o cara monta um posto de gasolina ou pizzaria e nem se preocupa com lucro, só joga dinheiro sujo ali e esquenta a grana como se fosse lucro do negócio.
Então não faz o menor sentido falar em lavagem nesses casos de suposta “ocultação” da grana. Do contrário, o exaurimento de qualquer crime que envolva dinheiro seria lavagem, percebem ?
Não só corrupção, mas sonegação, roubo a banco, receptação, furto… Nenhum crime patrimonial escaparia da lavagem segundo esse raciocínio, porque obviamente ninguém bota essa grana no banco !
Delação Informal (ilegal) de Léo Pinheiro
Nesse mesmo processo, Léo Pinheiro foi condenado a 10 anos e 8 meses (só nesse processo, pois há outras condenações que levariam sua pena a mais de 30 anos).
Mas de todas as penas a que Léo Pinheiro foi condenado (mais de 30 anos) ele deve cumprir apenas dois anos de cadeia (já descontado o período de prisão preventiva) porque “colaborou informalmente” (ou seja, falou o que queriam ouvir) mesmo sem ter feito delação premiada oficialmente.
Ou seja, em um inédito acordo de “delação premiada informal”, ganhou o benefício de não reparar o dano e ficar em regime fechado somente dois anos (independentemente das demais condenações).
Detalhes da sentença:
“O problema maior em reconhecer a colaboração é a falta de acordo de colaboração com o MPF. A celebração de um acordo de colaboração envolve um aspecto discricionário que compete ao MPF, pois não serve à persecução realizar acordos com todos os envolvidos no crime, o que seria sinônimo de impunidade.” –> delação informal
“Ainda que tardia e sem o acordo de colaboração, é forçoso reconhecer que o condenado José Adelmário Pinheiro Filho contribuiu, nesta ação penal, para o esclarecimento da verdade, prestando depoimento e fornecendo documentos” –> benefícios informais
“é o caso de não impor ao condenado, como condição para progressão de regime, a completa reparação dos danos decorrentes do crime, e admitir a progressão de regime de cumprimento de pena depois do cumprimento de dois anos e seis meses de reclusão no regime fechado, isso independentemente do total de pena somada, o que exigiria mais tempo de cumprimento de pena” –> vai cumprir apenas dois anos
“O período de pena cumprido em prisão cautelar deverá ser considerado para detração” –> desses dois anos vai subtrair o tempo de prisão preventiva
“O benefício deverá ser estendido, pelo Juízo de Execução, às penas unificadas nos demais processos julgados por este Juízo” –> ou seja, de todas as penas (mais de 30 anos) ele irá cumprir apenas dois anos em regime fechado…
Traumas e prudência
Cereja do bolo: o juiz diz que “até caberia cogitar a decretação da prisão preventiva do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva”, mas “considerando que a prisão cautelar de um ex-Presidente da República não deixa de envolver certos traumas, a prudência recomenda que se aguarde o julgamento pela Corte de Apelação antes de se extrair as consequências próprias da condenação”.
É a prova (agora sim, uma prova !) de que não se julga mais de acordo com a lei, mas pensando nos traumas e na (im)prudência…
_______
Independentemente da sua simpatia ideológico-partidária, pense bem antes de aplaudir condenações dessa natureza.
Eis o processo penal de exceção: tem a forma de processo judicial, mas o conteúdo é de uma indisfarçável perseguição ao inimigo !
Muito cuidado para que não se cumpra na pele a profecia de Bertolt Brecht e apenas se dê conta quando estiverem lhe levando, mas já seja tarde e como não se importou com ninguém…
*Original do blog Tijolaço – http://www.tijolaco.com.br/blog/fernando-hideo-lacerda-disseca-sentenca-de-moro/