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A decisão do presidente Donald Trump de suspender os repasses da Agência para o Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (Usaid), demitir a maioria de seu pessoal e integrar o trabalho da agência dentro do Departamento de Estado gerou aplausos e condenações em Washington e ao redor do mundo. Mas alguns temem que a intenção de Trump possa ser retornar a agência às suas origens como uma ferramenta da CIA e da guerra encoberta que, entre outras coisas, ajudou a capacitar forças contrarrevolucionárias no Laos e técnicas de tortura para a repressão política no Vietnã e no Uruguai, entre outros países.
Até o momento, a única declaração concreta de Trump é que deseja “fechar” a Usaid. O impacto imediato da ordem executiva de Trump em janeiro foi a suspensão de programas que, entre outras coisas, forneciam alimentos, medicamentos e apoio financeiro a centenas de milhares de pessoas ao redor do mundo, além da cessação de milhares de contratos. Após protestos iniciais contra essas medidas, o governo de Trump afirmou que os programas humanitários da agência poderiam continuar, mas a interrupção dos fundos já provocou o fim de alguns projetos. Na semana passada, um juiz federal ordenou uma “pausa” no esforço do governo de Trump de suspender 2.200 funcionários permanentes como um primeiro passo para suas demissões.
Os 100 milhões em programas da Usaid no México, a maioria baseada em acordos negociados com o governo mexicano durante os últimos seis anos, foram congelados, confirmou um ex-funcionário do governo estadunidense ao La Jornada. Os programas da Usaid para o México são só uma parte do total de dois bilhões de dólares em assistência estrangeira outorgada à América Latina e ao Caribe manejado pela entidade e pelo Departamento de Estado, valor que está quase totalmente congelado agora.
Ao pausar o financiamento e tentar demitir a maioria do pessoal da Usaid, Elon Musk – o homem que Trump designou para liderar seus esforços de redução do tamanho do governo federal – afirmou que a maioria das atividades e financiamentos da Usaid são um desperdício. Como exemplos, a Casa Branca destacou projetos como o apoio a uma ópera transgênero na Colômbia e uma história em quadrinhos sobre transgêneros no Peru, além de dinheiro para “mudanças de gênero” e “ativismo LGBT” na Guatemala.
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Dois ex-funcionários da Usaid entrevistados pelo La Jornada afirmam que essas descrições não são verdadeiras. Uma avaliação do Washington Post sobre um documento da Casa Branca sobre a Usaid indicou que 11 das 12 descrições eram enganosas ou incorretas.
A assistência estrangeira não é popular nos EUA, e a Usaid é um alvo fácil para o esforço de redução do governo liderado por Musk. O plano inicial é demitir a maioria dos 10 mil funcionários da agência e transferir apenas cerca de 600 para continuar trabalhando em alguns dos projetos como parte do Departamento de Estado.
Mas as consequências da maneira como essa reforma está sendo implementada já se manifestam ao redor do mundo, especialmente em áreas de apoio humanitário. A Etiópia já demitiu mais de 5 mil trabalhadores da saúde recrutados graças ao financiamento dos EUA, e o Quênia está se preparando para suspender cerca de 40 mil trabalhadores da saúde pelo mesmo motivo, relatou o New York Times. A Organização das Nações Unidas informa que os EUA são o maior doador de assistência humanitária do mundo. Portanto, mudanças ou retiradas de apoio nessa área têm um impacto quase imediato. Um ex-funcionário da Usaid comentou ao La Jornada que, se os programas não forem restaurados rapidamente, 1,06 milhão de pessoas perderão acesso a tratamentos para AIDS e 880 mil crianças gravemente desnutridas perderão acesso à assistência alimentar.
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Mais da metade de toda a assistência externa dos EUA em 2023 foi dedicada a programas de desenvolvimento, assistência humanitária e saúde. Outros 22% do total foram destinados a programas de “paz e segurança”, e apenas 5% foram dedicados a programas de promoção de “democracia, direitos humanos e governança”.
No México, os 100 estadunidenses e quase 200 mexicanos empregados da Usaid trabalham a partir da embaixada dos Estados Unidos e em nove consulados. Aproximadamente a metade do total de 100 milhões em financiamentos da agência no México se destina a programas de “democracia, direitos humanos e governança”, com outros 25% dedicados a temas de “paz e segurança” e o resto em apoio a iniciativas de energia e ao setor privado. O financiamento inclui programas em vários estados para localizar mulheres desaparecidas, esforços para “apoiar ao governo do México”, outorgar maior acesso a serviços de justiça e cerca de 5 milhões dedicados a esforços contra a corrupção.
Fundos sob o título de segurança pagam, entre outras coisas, cães treinados para localizar drogas ilícitas, doados ao governo do México, e programas de tratamento de dependência química. “Com o apoio dos EUA, o Instituto Mexicano de Seguro Social emitiu módulos online para capacitar e certificar conselheiros, oficiais de saúde pública, pessoal de emergência e psicólogos para identificar e tratar o abuso de substâncias”, explica o Departamento de Estado em uma descrição do programa apoiado com fundos da Usaid. Ele acrescenta que “a assistência dos EUA ajudou seis estados mexicanos a adotar modelos de justiça alternativa, desviando infratores de drogas de baixo nível de prisões superlotadas para programas de reabilitação. Nove estados planejam adotar modelos alternativos de tratamento em seus tribunais em 2024. Também apoia o sistema de justiça cívica focado na prevenção…”.
Essa assistência dos EUA é regida pelo Entendimento Bicentenário sobre Segurança, Saúde Pública e Comunidades Seguras entre México e Estados Unidos, lançado em 2021, com foco em saúde pública, prevenção de crimes transfronteiriços e combate a redes criminosas.
Grande parte dos fundos que os EUA gastam no México não são canalizados através da Usaid. Entre 2019 e 2024, o Departamento do Trabalho dos EUA investiu cerca de US$ 34 milhões em projetos de sindicatos estadunidenses e outras organizações para apoiar a aplicação dos direitos trabalhistas e a melhoria da segurança no trabalho, tudo em acordos aprovados, segundo documentos do Departamento do Trabalho, pelo governo federal do México.
Outros grupos no México que receberam fundos da Usaid no período entre 2018 e 2021 (os últimos dados disponíveis, já que os mais recentes estão inacessíveis em razão do fechamento dos portais da agência) incluem as organizações Mexicanos Contra a Corrupção e a Impunidade (US$ 2,3 milhões), Instituto Mexicano para a Competitividade (US$ 1,58 milhão) e Cidadãos para a Transparência (US$ 635 mil). Uma das maiores doações foi para o Centro Internacional de Jornalistas (US$ 6 milhões) para apoiar “a transparência da corrupção no México mediante o fortalecimento de habilidades investigativas de jornalistas”.
Outro grupo que também distribuía fundos dos EUA no México é o National Endowment for Democracy (NED), que, por enquanto, também suspendeu suas atividades temporariamente. Ele concedeu bolsas significativas a grupos de promoção da democracia e dos direitos humanos.
Ainda dentro do governo dos EUA, há discordância sobre quão eficazes foram os programas da Usaid no México. “O governo dos EUA não pode demonstrar que está alcançando suas metas no México e que seus investimentos, de mais de US$ 3 bilhões desde 2008, foram gastos de forma eficaz”, relatou o Escritório de Responsabilidade Governamental (GAO, centro de investigações do Congresso) em uma avaliação do programa entre 2008 e 2021, publicada em setembro de 2023.
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