Pesquisar
Pesquisar
Imagem ilustrativa: Freepik

Frei Betto | Grandiosidade em público, vilania no privado

Muitas pessoas magistrais, intelectualmente eruditas e socialmente brilhantes em público são o oposto no privado, negando o próprio discurso

Frei Betto
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Observo com frequência pessoas intelectualmente eruditas, socialmente brilhantes, dotadas de insignes títulos acadêmicos e, no privado, irritadiças, destemperadas, emocionalmente infantis. Não suportam críticas e mendigam elogios. Nelas há uma nítida divisão (e conflito) entre o racional e o emocional.

Ao falarem a uma plateia, são magistrais, expressam-se com lógica, arrancam do fundo da memória consistentes citações. Mas, no espaço privado, parecem negar todo o discurso público: tratam os subalternos com indiferença ou superioridade, jamais indagam o nome do taxista ou do garçom, não têm a menor disposição para trocar um minuto de conversa com a faxineira ou a copeira do espaço de trabalho.

E muitas se declaram cristãs, discípulas de Jesus e, no entanto, cegas para a dignidade de uma pessoa em situação de rua. Elas encarnam o ditado: “Façam o que digo, não o que faço”.

Recebi no parlatório do convento a filha de uma senhora endinheirada. Veio contar que a mãe, ao se aprontar para a inauguração de uma galeria de arte, não encontrou sua corrente de ouro com um pingente de esmeralda. Após intensa procura pela casa, pressionou a empregada doméstica, há oito anos na casa, para devolver a joia. A mulher negou o roubo, mas todo o seu choro não foi suficiente para convencer a patroa de sua inocência. Sob uma chuvarada de ofensas, entre as quais abundaram xingamentos racistas, a faxineira foi demitida após a ameaça de que a patroa enviaria a polícia à casa dela.

A patroa em questão é professora emérita de prestigiosa universidade paulista.

Dia seguinte, a mãe contou o episódio à filha que acabara de retornar da Argentina. Perplexa, a moça reagiu: “Mãe, o colar está comigo. Não se lembra que me emprestou para eu ir ao casamento de fulana?”

Freud dizia que “não somos senhores em nossa própria casa”. Referia-se à impotência do eu em relação às pulsões. Se o consciente é racional, o inconsciente é pulsional, movido a emoções.

Frei Betto | Vício em utopia, antídoto à barbárie

Não é fácil manter o equilíbrio entre razão e emoção. A razão habita o território do intelecto; a emoção, o do afeto. A razão pode me dizer que devo economizar dinheiro para gastos futuros. A emoção me induz a comprar algo que me onera, embora realce meu status social. O desafio é evitar que a razão leve a decisões desumanas e que a emoção provoque impulsos de consequências nefastas. O ideal é que a razão conduza a emoção, assim como o dono controla o seu cão.

Todos nós temos um lado apolíneo e outro, dionisíaco. Apolo e Dionísio eram filhos do mesmo pai: Zeus. O primeiro era o deus do bom senso e da razão; o segundo, da loucura e da transgressão. Manter o equilíbrio dessa polaridade é sinal de maturidade. Contudo, nem sempre é fácil casar sonho e realidade, delírio e sapiência, como Dom Quixote. 

Para pessoas excessivamente emotivas que desabafam comigo aconselho a meditação. Conter a imaginação, segurar os impulsos, tentar ver a situação pela ótica do outro, sempre ajuda a não perder a serenidade e o equilíbrio. Já aos excessivamente racionalistas sugiro a música e, em especial, a dança. Dançar é fazer poesia com o corpo.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Frei Betto Escritor, autor de “Cartas da prisão” (Companhia das Letras); “Batismo de sangue” (Rocco); e “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros 74 livros editados no Brasil, dos quais 42 também no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org. Ali os encontrará a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio.

LEIA tAMBÉM

Frei Betto, sobre críticas do Papa Leão XIV “Males do mundo não são produzidos pelos ateus”
Frei Betto, sobre críticas do Papa Leão XIV: “Males do mundo não são produzidos pelos ateus”
Da utopia ao legado as muitas vidas de Pepe Mujica
Da utopia ao legado: as muitas vidas de Pepe Mujica
O marxismo de Pagu, militante do Partido Comunista do Brasil e do Partido Socialista
O marxismo de Pagu, militante do Partido Comunista do Brasil e do Partido Socialista
Engenharia nacional reconhece papel da série Operação Condor para democracia brasileira
Engenharia nacional reconhece papel da série "Operação Condor" para democracia brasileira